O Tráfico de pessoas é definido pela Organização das Nações Unidas como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”.1
A Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (Asbrad) é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, de caráter social, fundada em 18 de dezembro de 1997, com a finalidade de defender os direitos das mulheres, da infância e juventude; combater e denunciar casos de violência; buscar a responsabilização e punição de perpetradores e mobilizar a sociedade para denunciar violações de direitos humanos.
A luta contra a violência doméstica, no início dos anos 90, foi o combustível impulsionou a dirigente da entidade, a advogada e assistente social, Dalila Figueiredo, e outras mulheres, militantes dos direitos humanos, a organizarem-se para fundar a Asbrad.
Naquela época, o Brasil estava longe de criar um sistema de proteção para as mulheres vítimas de violência. As autoridades entendiam que não deveriam “meter a colher” em briga de marido e mulher e poucos recursos existiam para proteger uma mulher violentada. A Lei Maria da Penha, por exemplo, só foi sancionada em 2006.
Com pouco tempo de atuação, a Asbrad tornou-se conhecida na cidade de Guarulhos-SP e virou referência na prestação de serviços jurídicos e no atendimento psicológico e social de mulheres vítimas de violências.
Por estar próxima do aeroporto internacional de Guarulhos, em meados de 1998, a Polícia Federal contatou a Asbrad para ajudar no atendimento de uma mulher que havia sido deportada da Espanha. Muito abalada psicologicamente, sem recursos financeiros e sem contato com a família há mais de cinco anos, ela narrava uma história de falsa promessa de trabalho e exploração sexual.
Aquele foi o primeiro caso de Tráfico de pessoas atendido pela Asbrad, que na ocasião foi classificado como uma violação ocorrida no exterior. Não se tinha literatura ou protocolos que ajudassem a compreender a questão. A internet ainda estava em processo de implantação e a facilidade dos sites de buscas era algo inimaginável.
Os atendimentos que deveriam ser esporádicos, rapidamente tornaram-se constantes e a Asbrad foi convidada a se estabelecer no aeroporto para realizar um trabalho junto às brasileiras deportadas. O que não ficou restrito a esse grupo e, organicamente, tornou-se um serviço de atendimento aos migrantes (nacionais e estrangeiros), em situação de vulnerabilidade.
No cotidiano do atendimento, a equipe da Asbrad começou a perceber que, apesar de possuírem histórias diferentes, com rotas e cenários distintos, as narrativas das mulheres cisgênero2 e das mulheres travestis e transexuais, apresentavam alguns padrões: falsas promessas de trabalho, exploração sexual, dívidas, sonhos frustrados, entre outros. Após pesquisas e muitas conversas com organizações da sociedade civil na Europa, paulatinamente foi se compreendendo que se tratava de uma questão complexa, fruto de um mesmo fenômeno: o tráfico de seres humanos.
Os casos demandavam uma escuta qualificada e requeriam um atendimento humanizado que permitisse: a construção de uma relação de confiança entre profissional e a pessoa atendida; o respeito ao tempo de reflexão da vítima; a autonomia no processo de reinserção social; o respeito sobre a decisão de realizar ou não denúncias e um cuidado especial para se evitar processos de revitimização.
Dessa escuta qualificada iniciou-se o desenho uma metodologia de Atendimento Humanizado ao Migrante, que 11 anos depois viria a ser consolidada em uma política pública.
A atuação da Asbrad não se restringiu ao atendimento na “ponta” e a entidade passou a atuar juntamente com representantes de outras ONGs (como o Projeto Trama; Só Direitos e Chame) em estratégias de advocacy pela construção de uma agenda nacional de enfrentamento ao Tráfico de pessoas. Como enfretamento entenda-se o conjunto de ações para garantir a prevenção, assistência, repressão e reparação de danos das vítimas desse crime.
No ano 2000, a ONU promulgou o “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de pessoas, em Especial Mulheres e Crianças” (conhecido como Protocolo de Palermo). Esse documento foi um marco, sobretudo, na produção de diretrizes para adoção de Políticas Públicas de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas, numa perspectiva transnacional, colaborativa e pactuada entre os países signatários.
O Brasil ratificou o Protocolo de Palermo em 2004, mas somente em 2006, devido à grande mobilização da sociedade civil, lançou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas (Decreto nº 5.948/2006). Apresentando um conjunto de ações para garantir o enfrentamento desse crime, numa abordagem intersetorial e com participação da sociedade civil.
Nos anos seguintes, buscou-se a implantação da Política Nacional, por meio dos Planos Nacionais de Enfretamento ao Tráfico de pessoas. O primeiro lançado em 2008 e o segundo em 2013, com vigência até dezembro de 2016. Os planos marcaram os ciclos da política pública. Em cada ciclo foi analisado o “estado de arte” da questão, construídas rotas, feitas pactuações e angariadas poucas fontes de dotação orçamentária para o seu enfrentamento. A Asbrad colaborou no processo de construção tanto da Política Nacional, quanto dos Planos Nacionais e, ainda hoje, atua no controle social dessa política.
Em 2009, o Ministério da Justiça deu início a um conjunto de ações para a implementação do Plano Nacional. Uma dessas ações consistiu na adoção da experiência da Asbrad, nos 11 anos que esteve aeroporto de Gurarulhos, em política pública. Adaptando a metodologia de Atendimento Humanizado para outras localidades, por meio da realização de repasses para estados e municípios para a construção dos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante.
De acordo com as orientações do Ministério da Justiça3 os Postos Avançados devem se situar nos principais locais de entrada e saída do Brasil, para a recepção de migrantes. É recomendado que uma equipe interdisciplinar adote a metodologia de Atendimento Humanizado, desenvolvida pela Asbrad, identificando vítimas de Tráfico de pessoas, oferecendo, conforme cada caso, um acolhimento humanizado e a devida interlocução com a rede local. Os Postos estão localizados nos aeroportos internacionais do Rio de Janeiro, Ceará e Pará, no aeroporto de Manaus e em hidroviárias pelo Estado do Amazonas.4
O Posto do aeroporto Guarulhos-SP foi entregue, em 2009, pela Asbrad à prefeitura. Atualmente o equipamento é gerido dentro da estrutura da Assistência Social do município de Guarulhos-SP. Esse é um caso exitoso de um projeto piloto da sociedade civil que se tornou política pública.
Ao longo dos anos, a entidade buscou a interlocução com os mais diversos atores sociais. Tornou-se membro da rede internacional GATTW (Global Alliance Against Traffic in Women), membro do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas (Conatrap); do Comitê Nacional de Combate à Tortura e membro consultivo da Organização dos Estados Americanos (OEA), além de membro de comitês, fóruns e conselhos municipais e do Estado de São Paulo.
Desde o início do seu trabalho, a Asbrad se preocupou em percorrer diferentes regiões no Brasil para conhecer as diversas realidades em que o Tráfico de pessoas se manifesta, o que a permitiu desenvolver estudos, pesquisas e capacitações sobre o tema em diversas partes do Brasil.
Atualmente desenvolve o “Projeto Fronteiras: Atendimento Humanizado às Mulheres vítimas do Tráfico de pessoas e outras formas de violência”, no qual a metodologia de Atendimento Humanizado, produzida no aeroporto de Guarulhos, está sendo aperfeiçoada e qualificada para as regiões de fronteiras. O Projeto Fronteiras abrange os municípios de: Bonfim/RR, Brasileia/AC, Corumbá/MS, Foz do Iguaçu/PR, Jaguarão/RS, Oiapoque/AP, Pacaraima/RR, Ponta Porã/MS, Santana do Livramento/RS e Tabatinga/AM, podendo ser ampliado para outras regiões. Estas cidades foram identificadas pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal como estratégicas para o enfretamento ao Tráfico de pessoas no Brasil.
Em Guarulhos, a Asbrad ainda atua na prestação de assistência direta às mulheres, que passaram por situações de violência, especialmente a violência doméstica e outros conflitos familiares. Nesta frente de atuação realiza cerca de 400 atendimentos ao mês.
Igualmente, presta apoio aos jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto. Promovendo atenção socioassistencial e acompanhamento de liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade, contribuindo para o acesso aos direitos e para a resignificação de valores na vida pessoal e social. Nos últimos quatro anos, a Asbrad atendeu mais de 5 mil jovens em conflito com a lei.
A escuta qualificada faz parte da essência de todo o trabalho da Asbrad, o que permite a construção de um atendimento humanizado e também a identificação de diversas situações em que as violações estão conectadas.
Por exemplo, muitos adolescentes em conflito com a lei, atendidos pela Asbrad, foram aliciados por traficantes para agirem como “mulas” do tráfico de drogas. Foram cooptados por meio de ameaça ou engano. Quando identificadas essas situações a Asbrad atua para reparação de danos e busca demonstrar às autoridades que o(a) jovem é autor (a) e vítima do mesmo crime.
A Asbrad defende que, além do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por ser signatário de diversos tratados internacionais, como a convenção 182 da OIT, que compreende o aliciamento para o tráfico de drogas como uma das piores formas de trabalho infantil, o Estado deve construir mecanismos para compreender a história desses jovens, de maneira integral, e minimamente buscar a responsabilização dos adultos que os aliciaram e exploraram.
Um “simples” caso de violência doméstica também pode esconder uma situação pregressa de Tráfico de pessoas ou indicar a vulnerabilidade da vítima, em aceitar qualquer proposta que a retire daquela condição. Somente por meio da escuta qualificada é possível perceber essas situações. Quando identificadas, a Asbrad atua na prevenção ao Tráfico de pessoas e, de acordo com o caso, na busca pela reparação de danos e acusação dos perpetradores.
Pelo reconhecimento de sua atuação em 20 anos no enfretamento ao Tráfico de pessoas e outras formas de violência, a Asbrad foi contemplada, em 2014, pelo Ministério Público do Trabalho com a destinação de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de empresa flagrada com condições análogas a de escravo, o que permitiu a compra de uma sede própria. Essa foi uma conquista importante que garantiu qualidade no atendimento humanizado a quem precisa, sendo em sua maioria mulheres, adolescentes e crianças vítimas de violência.
A história da Asbrad e do desenvolvimento da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas caminham paralelamente. Algumas conquistas foram realizadas, mas ainda são muitos os desafios que devem ser superados.
No final de 2016, o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas encerrará o segundo ciclo da Política Nacional. O II Plano logrou êxitos no que condiz a produção de conhecimento sobre o tema. Contudo, poucos avanços foram conseguidos no fortalecimento da proteção social às vitimas direitas e seus familiares. O Tráfico de pessoas permanece como uma violação de direitos humanos fortemente presente no Brasil.
Para superar essa questão o país precisa avançar na promulgação urgente de uma Lei Geral do Tráfico de pessoas, que esteja em consonância com o Protocolo de Palermo e de uma Lei de Migrações voltada à proteção dos direitos humanos. Essa garantia jurídica é o alicerce para a consolidação da política nacional de enfrentamento ao Tráfico de pessoas. Sem ela as ações tornam-se paliativas.
O contexto social, político e econômico, em que o tráfico se manifesta, assumiu novas formas nesta década. Os fluxos migratórios são diversos e, hoje, o país não é reconhecido apenas o local de origem de vítimas, mas também de trânsito e destino.
O Brasil iniciou a segunda década do ano 2000 como destino de exploração de migrantes. Muitos oriundos de países vizinhos, que cruzam as fronteiras em busca de trabalho, mas são explorados, em condições análogas a de escravo, em diferentes atividades, como na confecção de roupas e calçados. Muitas mulheres bolivianas e paraguaias procuram a Asbrad e apresentam narrativas de sujeição ao trabalho análogo ao escravo e outras violências, como o assédio e abuso sexual.
O tráfico interno é aquele que possui o maior número absoluto de casos identificados (como na definição do Protocolo de Palermo). O Brasil tornou-se referência mundial nas fiscalizações do trabalho realizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e parceiros. Possui o dado nada animador de mais de 50 mil pessoas encontradas no Trabalho escravo, nos últimos 20 anos.
Contudo, os Planos Nacionais não conseguiram aplacar essa situação e brasileiros e brasileiras seguem como vítimas, aliciadas e exploradas dentro do próprio país. Em sua maioria, trabalhadores (as) do norte e nordeste, são submetidos a condições análogas à de escravo no agronegócio, no meio rural e, em outras atividades, como a Construção Civil, nos grandes centros urbanos do Sudeste.
Existem também rotas de exploração sexual de mulheres adultas, crianças e adolescentes que devem ser combatidas de forma mais severa, especialmente nas regiões de fronteiras.
Outra finalidade de exploração que cresceu consideravelmente, nos últimos anos, e ainda não tem o devido tratamento, enquanto uma situação de Tráfico de pessoas refere-se aos adolescentes (meninos e meninas) que são aliciados e explorados para produção e venda de drogas ilícitas. É necessária a construção de um novo paradigma para compreender esses jovens como vítimas, e não como criminosos. Esse é um desafio que está posto para todos e que impactará no modo como percebemos a existência e a proximidade do Tráfico de pessoas no nosso cotidiano.
A persistência dessas velhas e novas facetas do Tráfico de pessoas cria uma sensação de anacronismo, desafia as leis, as autoridades e a sociedade. É importante que o seu enfretamento avance para o terceiro ciclo da política. Que o tema não se perca na agenda do Estado e desapareça em meio à crise política, econômica e social que o Brasil está vivendo.
A Asbrad segue nessa luta.
A Asbrad localiza-se na Rua Vera, nº 60 – Jardim Santa Mena – Guarulhos (SP) Telefone: +55 (11) 2409-9518 | +55 (11) 2408-6448
E-mail: asbrad@asbrad.org.br
*Graziella Rocha é colaboradora da Asbrad desde abril de 2015.
Notas de Rodapé
- Definição do Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, que Suplementa a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (2000).
- Cisgênero é a terminologia utilizada para se referir a pessoa que se identifica, em todos os aspectos, com o seu “gênero de nascença”.
- Portaria Secretaria Nacional de Justiça nº 31, de 20 de agosto de 2009, define as atribuições dos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e dos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante.
- De acordo com informações do Ministério da Justiça e da Cidadania- http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento. Acesso em: 05/09/2016.