Os três primeiros textos produzidos para esta série de reportagens do Projeto Contracondutas [1, 2, 3] procuraram apresentar elementos históricos que ajudam a entender a violência estrutural praticada hoje contra trabalhadores da construção civil. Na quarta reportagem, apresentada a seguir, a proposta é abrir algumas frentes de discussão sobre a produção da cidade no contexto do capitalismo neoliberal. Esta discussão será dividida em três “atos”, publicados separadamente e contemplando, primeiro, o discurso de quem pensa e planeja a cidade neoliberal, e depois, a vida de quem a constrói e as consequências para quem a consome. Para ler a primeira parte, já publicada, acesse este link.
Segundo Ato: A vida de quem faz a cidade-empresa neoliberal
“Parece uma coisa que não está na nossa realidade, mas isso é nosso dia a dia aqui no sindicato”, diz Ana Paula Tavares de Oliveira, referindo-se a uma denúncia de violência no trabalho que acabava de receber, por telefone, de um operário da construção civil. Oliveira é gerente do departamento de base do Sintracon-SP (Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo), e trabalha coordenando uma equipe de mais de 30 pessoas que saem às ruas todos os dias para apurar denúncias de irregularidades trabalhistas e para realizar assembleias de conscientização sobre leis e direitos sociais com operários nos canteiros em que estes trabalham. A denúncia recebida durante a entrevista dava conta de que 22 operários estavam trabalhando sem alimentação e em condições degradantes de alojamento na obra de um condomínio comercial na avenida Paulista. “Ele contou que de 9 a 12 desses trabalhadores estavam dormindo numa garagem da obra, em papelões, na poeira mesmo. Passam quatro dias trabalhando, inclusive de madrugada, e depois voltam para casa”, relatou a gerente. Por telefone, ela informou ao trabalhador que na manhã do dia seguinte, antes do início do expediente dos operários, uma equipe do sindicato estaria à porta da obra para apurar as denúncias. Ao sugerir ao trabalhador que ele e alguns colegas esperassem pela equipe à porta da obra, ele disse que não poderiam, pois tinham medo de perder o emprego.
“Na atual situação de crise, os trabalhadores acabam se sujeitando a um trabalho muito mais precarizado com a chantagem do ‘você será demitido’. Os empregadores dizem ‘vejam como está a situação; vocês não assistem TV? Vejam quantos desempregados, vocês querem ficar assim? Então não liguem pro sindicato, não denunciem, continuem trabalhando.’ Os empregadores estão se aproveitando da situação”, diz Oliveira. Há casos, segundo a gerente, em que os empregadores dão férias aos trabalhadores, mas sem avisá-los. O trabalhador continua atuando na obra, e quando vai receber, ouve que não será pago porque, afinal, estava em férias e trabalhou porque quis. Há casos em que os operários com salários atrasados tiram dinheiro do próprio bolso ou pedem emprestado para continuarem indo trabalhar, com medo de serem demitidos. Sem dinheiro, alguns chegam a enfrentar problemas na Justiça por falta de pagamento de pensão alimentícia.
Há, ainda, as situações em que o trabalhador, ao reclamar com o empregador sobre a falta de pagamento, é ameaçado fisicamente, inclusive com arma de fogo. Enquanto esta entrevista acontecia, chegaram ao sindicato dois operários haitianos que, ao demandarem pagamentos atrasados, foram agredidos fisicamente pelo patrão – um deles recebeu uma cotovelada na boca. Em sua carteira de trabalho constava um carimbo da contratante dizendo: “Funcionário admitido em caráter provisório, a título de experiência, e contratado para trabalhar em todas as obras da contratante, em território nacional, sem acréscimo de 25%, conforme contrato firmado nessa data”. A medida contraria o que está disposto no artigo 469 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que obriga o empregador a pagar um suplemento de 25% do salário caso transfira o empregado para localidade diversa da que estiver disposta no contrato. 1
Outro abuso contra operários da construção civil que vem se intensificando, informa Oliveira, diz respeito aos “tarefeiros”. O tarefeiro é admitido com registro em carteira recebendo o piso salarial. Mas em um acordo feito por fora com o empregador, ele aceita abrir mão de direitos trabalhistas como férias e décimo terceiro para receber acima do piso, desde que cumpra metas por metro quadrado construído estipuladas pelo empregador. Por exemplo: se a meta estipulada for de R$ 2 mil por mês e o tarefeiro conseguir cumpri-la, receberá os R$ 2 mil. Caso contrário, receberá o piso que está estipulado na carteira. No mês seguinte, se bater a meta, receberá os R$ 2 mil, porém será descontado desse valor o montante do piso salarial que recebeu no mês anterior por não ter cumprido a meta. “Com esse esquema, muitas vezes o trabalhador fica devendo para o empregador. Então ele fica numa loucura de produtividade. Chega cedo, sai à noite, trabalha fim de semana para produzir o máximo e aumentar o salário. Nada disso é oficial, tudo é pago por fora, não tem nada no holerite. O trabalhador fica com problema de saúde, entra em depressão, e depois é o Estado quem paga a conta pelos afastamentos”, explica a gerente da divisão de base do sindicato.
Por mês, o Sintracon-SP recebe de 600 a 700 denúncias por telefone [11 3388-4828] e visitas de operários. Os relatos apontam atraso ou ausência de pagamento de salário, vale-refeição, vale-transporte, férias e outros direitos trabalhistas; denúncias que configuram trabalho análogo ao escravo são cerca de 6 a 8 mensais.
Em 16 de dezembro do ano passado, o ministro do Trabalho e Emprego, Ronaldo Nogueira de Oliveira, assinou a portaria 1.429/16 que institui um grupo de trabalho para “dispor sobre regras relativas ao Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo”. O grupo ainda não foi constituído, mas deve contar com representantes de centrais sindicais e entidades patronais, além do Ministério da Justiça, da Advocacia Geral da União e da Ordem dos Advogados do Brasil.
Retrocessos
Empresários dos meios rural e urbano cujos setores produtivos têm registrado diversos flagrantes de exploração de mão de obra escrava têm se mobilizado para reduzir o conceito que tipifica esse tipo de crime.
Desde 2012, tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 3842/12, do então deputado federal Moreira Mendes (PSD/RO). 2 O objetivo do projeto é mudar a definição de trabalho análogo ao escravo. O argumento, vindo principalmente da bancada ruralista, é que o conceito atual é muito subjetivo e gera “insegurança jurídica”. O texto do PL 3842/12 retira da atual definição os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” e define, por outro lado, o trabalho análogo ao escravo como “trabalho ou serviço realizado sob ameaça, coação ou violência, com restrição de locomoção e para o qual a pessoa não tenha se oferecido espontaneamente.”
Para o jornalista Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil, que atua no combate ao trabalho análogo ao escravo no campo e na cidade, a bancada ruralista vem atuando para afrouxar a definição desse crime desde que a Trabalho escravo, retirando os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho”. Essa mudança diminuiria a capacidade para punir as violações de direitos humanos e exploração do Trabalho escravo contemporâneos.">PEC do Trabalho escravo (Proposta de Emenda Constitucional 57A/1999) foi aprovada em 2014. 3 A PEC prevê o confisco das propriedades onde for flagrada a exploração de mão de obra escrava, e a destinação das propriedades à reforma agrária ou a programas de habitação na cidade.
“É aquela coisa: concordo que se puna assassinato…desde que sejam os cometidos entre 12h e 19h, com arma branca e vestido de Bozo. Ou seja, praticamente condenar só quem usa pelourinho, chicote e grilhões, sendo que os tempos mudaram, a escravidão é outra e os mecanismos modernos de escravização adotados são sutis”, escreveu o jornalista. O PL 3842/12 foi aprovado em abril de 2015 na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados e deve passar ainda pelas comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Na sequência, será votado no Plenário.
Em dezembro de 2014, a chamada “lista suja” das empresas flagradas explorando mão de obra análoga à escrava publicada pelo MTE foi suspensa pela força de uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade). A ação foi protocolada pela Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias). O presidente da associação é Rubens Menin, da MRV Engenharia, empresa flagrada pelo menos cinco vezes por empregar mão de obra análoga à escrava. Entre os demais seis empresários que compõem o conselho da associação, as empresas de quatro deles – Cyrela Brasil, Cury Construtora, Tenda e Brookfield – também foram autuadas pelo mesmo motivo. Em maio do ano passado, a ministra Cármen Lúcia revogou a liminar de 2014. A “lista suja” das empresas pode ser conferida neste link.
De acordo com dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em 2015, o setor de construção civil liderou o ranking de exploração de mão de obra escrava no país em 2014, com 452 trabalhadores resgatados. 4
Números superlativos
Os números da construção civil no país são superlativos. De acordo com o presidente do Sintracon-SP, Antonio de Sousa Ramalho, só a cidade de São Paulo tem pouco mais de 10 mil canteiros de obras; no Estado são cerca de 30 mil; no país o número aproxima-se dos 100 mil canteiros. “São canteiros de todas as naturezas. Alguns com 3, 4 trabalhadores, outros com 5 mil, como nas obras do Rodoanel”, diz Ramalho.
Ele alerta que muitos dos casos de trabalho análogo ao escravo estão em obras públicas, como reformas, manutenção e ampliação de bancos públicos, que são feitas à noite, na maioria das vezes. “O pessoal não tem equipamento de proteção, não tem alimentação, a maioria não tem carteira assinada, são trabalhos temporários, e na construção civil é proibido o trabalho temporário. É dinheiro público que não é aplicado de acordo com a lei”, diz o presidente do sindicato.
No dia em que essa entrevista aconteceu, Ramalho acabava de voltar da paralisação, coordenada pelo sindicato, de uma obra pública de habitação no bairro do Limão, zona norte da capital paulista. Naquele canteiro, gerido por um consórcio de duas construtoras, os operários estavam sem receber alimentação, sem carteira assinada e sem equipamentos de proteção individual. Na obra não havia guarda-corpo para proteger os trabalhadores de eventuais quedas dos patamares do edifício.
“Fomos até lá, paramos a obra. Os empregadores chamaram a polícia pra gente. Não sei qual é a influência que eles [empregadores] têm, porque se você é assaltado e chama a polícia, demora duas, três horas pra aparecer uma viatura. Lá, em três minutos, apareceram várias motos e viaturas. Tentamos falar com o empregador, mas ele ficou ironizando o sindicato. Isso na terceira maior metrópole do mundo, e não é na periferia da cidade, é no centro de São Paulo.” 5
Assim como a gerente do departamento de base, Ramalho também diz que a crise tem sido “aproveitada” por empregadores para precarizar ainda mais as condições de trabalho na construção civil. “De acordo com dados do CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do MTE), em 2011, tínhamos no Brasil 3,620 milhões de trabalhadores. Nos últimos 26 meses, perdemos 900 mil postos de trabalho. Hoje, temos 2,620 milhões de postos, uma redução de quase um terço. Em vez de diminuir o trabalho análogo ao escravo, aumentou. Por quê? Porque os empregadores que agem com má fé aproveitam a crise e começam a terceirizar, quarteirizar.”
O problema da terceirização
A terceirização é, sem dúvida, um dos principais vetores de abusos e violações de direitos dos trabalhadores da construção civil. Construtoras majoritárias contratam empreiteiras para atuarem em seus canteiros de obras. Estas subcontratadas, por sua vez, subcontratam outras empresas, chegando à quarteirização. Os valores pedidos pelas subcontratadas costumam ser abaixo do mercado, uma vez que elas já contam com a “economia” advinda do pagamento de baixos salários e do não pagamento de direitos trabalhistas. “Em alguns casos, as construtoras majoritárias sabem que, pelo preço que fecham os contratos, as empreiteiras subcontratadas não vão conseguir cumprir com suas obrigações [legais e profissionais]. Se você conversa um pouco com alguns empreiteiros logo percebe que eles não têm nenhuma capacidade de gestão financeira, administrativa, de gestão de pessoas, de trato com os trabalhadores, não conhecem legislação e, se conhecem, acham que não serve pra nada. Quando o sindicato chega [para fiscalizar a obra] a construtora majoritária diz que não é responsabilidade dela, e sim da subcontratada”, explica Ana Paula de Oliveira.
No caso de São Paulo, a convenção trabalhista assinada pelo Sintracon-SP e pelo SindusCon-SP (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo), deixa claro que tanto contratante quanto contratada (construtora majoritária e empreiteiras subcontradadas) respondem solidariamente pelas obrigações trabalhistas e previdenciárias dos empregados nos casos em que há omissão do cumprimento dessas obrigações.
Certas de que a Justiça demora a resolver litígios entre empregador e empregado e que, em caso de ganho de causa para o trabalhador, a Justiça parcela em várias vezes o valor devido, algumas construtoras seguem terceirizando e fazendo vistas grossas aos abusos das empreiteiras subcontradas; estas, por sua vez, seguem precarizando mais e mais os trabalhadores.
“Quando o empreiteiro [flagrado cometendo alguma ilegalidade] vem conversar com a gente ele diz ‘olha, se vocês exigirem que eu pague essas coisas, vocês vão me quebrar, aí vai ficar todo mundo desempregado; é o sindicato quem estará demitindo. Vocês acham que os trabalhadores querem isso?’ Eles jogam com isso, mas dizemos que quem está quebrando a empresa são eles. A empreiteira que não registra, que não paga salário em dia, que não paga alimentação, que pega obra com o preço do metro quadrado inferior [ao do mercado] não só prejudica o trabalhador como também ajuda a quebrar empresas que são saudáveis e sérias no mercado”, afirma Oliveira.
A reportagem entrevistou, por email, o vice-presidente de Relações Capital-Trabalho e Responsabilidade Social do SindusCon-SP, Haruo Ishikawa. Confira a seguir trechos da entrevista.
De que maneira o SindusCon-SP vem tratando a questão do trabalho análogo ao escravo na construção civil?
De maneira muito responsável e permanente. Para o SindusCon-SP não há outro caminho se não o de coibir de todas as maneiras essa situação. No Estado de São Paulo temos feito um trabalho grande junto com o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2ª Região), dando orientações para todas as empresas para não terem essa prática. Temos realizado fóruns e apresentações em todo o estado orientando as empresas a implantar a Norma Regulamentadora 18 que trata de segurança e saúde no trabalho (SST) – é parte fundamental de responsabilidade legal e social das empresas e dos trabalhadores. Temos um trabalho de responsabilidade social permanente com a Mega Semana Interna de Prevenção de Acidentes (Megasipat) e com o ConstruSer em diversas cidades do estado para mostrar as responsabilidades dos dois lados e minimizar problemas. Além disso, o SindusCon-SP realiza desde 2010 o Programa de Elevação de Escolaridade para trabalhadores da construção civil. Até o momento foram mais de 105 turmas e 748 trabalhadores atendidos em todo o estado. A iniciativa tem como finalidade combater um dos grandes problemas enfrentados dentro de canteiro de obras, a baixa escolaridade dos trabalhadores. É imprescindível que o setor invista em programas que proporcionem elevação dessa escolaridade para que seja possível garantir níveis mínimos de segurança e produtividade em canteiro de obras. O foco são trabalhadores que não tenham concluído o Ensino Fundamental ou não sejam alfabetizados.Qual o posicionamento adotado pelo sindicato em casos de flagrante de trabalho análogo ao escravo junto às empresas autuadas?
Incentivamos os trabalhadores a denunciar. O principal problema hoje está nos alojamentos. Temos orientado as empresas a verificarem os seus alojamentos e os canteiros de obra, mas também a acompanharem o alojamento externo do subcontratado. Pedimos que a empresa fiscalize e fotografe semanalmente como está esse alojamento.O sindicato produz ou produziu dados sobre trabalho análogo ao escravo na construção civil no contexto de São Paulo? Se sim, quais dados são esses e o que revelam?
Não produzimos dados, mas debatemos o assunto em treinamentos, fóruns e eventos. Trabalhamos pela formalidade do setor e sempre incentivamos isso.Informações do Sintracon-SP apontam aumento de abusos cometidos por empresas da construção civil contra trabalhadores em função da crise. Que soluções o SindusCon-SP propõe para lidar com a questão da precarização da mão de obra?
É importante destacar que nosso relacionamento com o Sintracon-SP é próximo e sempre muito franco. É uma relação de décadas, sempre valorizando o trabalhador da construção civil. A construção civil é a única atividade onde a subcontratação de serviços especializados é legal e indispensável à atividade do setor. A subcontratação na indústria da construção é tão relevante que esta é a única atividade produtiva que tem legalmente assegurado o seu direito de subcontratar, nos termos do artigo 455 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e dos artigos 610 a 626 do Código Civil que tratam dos contratos de prestação de serviços e da empreitada. A nossa orientação é: se o trabalhador visualizar qualquer item relacionado ao trabalho análogo ao escravo, que denuncie. É importante para nós, como sindicato patronal, que exista qualidade do trabalho e lisura na contratação. O SindusCon-SP está junto com os trabalhadores, pois o serviço decente no canteiro de obras fortalece a construtora principal e traz dignidade para essas pessoas. Existe ainda a convenção coletiva. A empresa que não segui-la também está atuando ilegalmente com o trabalhador da construção. Em 2016 fechamos 100% das convenções coletivas em todo o estado de São Paulo e no documento há cláusula orientativa de como subcontratar empresas de serviços especializados, com a definição das responsabilidades de empresas contratantes e contratadas.Qual a posição do SindusCon-SP a respeito do projeto de lei 3842/12 que procura alterar o Código Penal a respeito da definição de trabalho análogo ao escravo?
O projeto torna a definição de trabalho análogo ao de escravo mais objetiva, uma vez que o define como sendo aquele “trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça, coação ou violência, restringindo sua locomoção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”. A atual redação classifica o trabalho escrevo como sendo aqueles “forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Ou seja, os elementos são subjetivos, dificultando o enquadramento no tipo penal.
Terceiro Ato: As consequências para quem consome o produto “imóvel” da cidade neoliberal
Que qualidade pode haver em uma parede erguida por operários com fome? E em uma instalação elétrica feita por um trabalhador que tem apenas noções rudimentares desse tipo de ofício, que qualidade pode haver? Quão bem feito pode ser o acabamento de um piso colocado por um operário que vem trabalhando mais de doze horas há semanas e com poucas horas de sono precário, tirado sobre papelões e poeira, no chão do canteiro?
Apartamentos que custam milhares, às vezes milhões de reais podem apresentar problemas estruturais e de acabamento antes mesmo de serem entregues aos seus proprietários. Isso acontece em função das consequências da precarização da mão de obra na construção civil, que traz prejuízos não apenas para o trabalhador e para o mercado, mas também para o consumidor final dos produtos imobiliários.
“Quando o consumidor compra um apartamento, acredita no apelo de qualidade apresentado pela construtora. Só que o consumidor não entende que aqueles trabalhadores que estão ali dentro do canteiro não têm, necessariamente, o mesmo nível de controle de qualidade daquela construtora, até porque ela, a construtora [majoritária], acha que a qualidade é responsabilidade do empreiteiro que ela subcontratou. E o empreiteiro que está lá não paga direito, coloca um ajudante pra ser pedreiro, um ajudante pra ser eletricista porque ele sabe ‘mexer com elétrica’. Tem pessoas que compram o apartamento e mal sabem que morreu trabalhador acidentado ali dentro. Fomos a uma obra onde o apartamento custava milhões e o trabalhador caiu da cobertura”, conta Ana Paula Tavares de Oliveira, do Sintracon-SP. Reportagem publicada em 2013 com dados da Associação Nacional dos Mutuários (ANM) apontava que havia aumentado, entre 2011 e 2012, as reclamações de novos proprietários sobre defeitos nos apartamentos recém-entregues. Portão de garagem e luzes de emergência quebrados, vazamentos, infiltrações, vidro de janela quebrado, buraco em parede e falta de pintura foram alguns dos problemas apurados pela reportagem. 6
Oliveira sugere que uma das formas que o consumidor tem para se proteger das consequências da precarização da mão de obra no canteiro é atentar para as empreiteiras subcontratadas pela construtora majoritária. Vale perguntar à própria construtora ou procurar a placa com as informações sobre a obra que costuma ser instalada à entrada do canteiro. Pesquisas na internet também podem ajudar a levantar dados sobre a construtora e suas subcontratadas. A “lista suja” do Trabalho escravo também é uma boa fonte de informações.
Epílogo: pessoas-placa
Os tapumes que cercam as obras ocultam das vistas dos consumidores as violências estruturais do canteiro; ocultam as “perversidades”, nas palavras do arquiteto e professor Sérgio Ferro. Há algo, porém, próprio das práticas de exploração máxima da mão de obra feita por algumas empresas do mercado imobiliário no contexto neoliberal, que não consegue escapar à vista de quem tem planos de comprar um imóvel.
São as mulheres e homens parados em faróis e cruzamentos próximos a lançamentos imobiliários anunciando, sobre seus corpos de placa, as qualidades dos empreendimentos. Quanto mais invisível a pessoa por trás do anúncio – mulheres e homens pobres, desempregados, negros, adolescentes e crianças –, mais eficaz a propaganda. A objetificação dessas pessoas, transformadas em cavaletes de carne e osso, não é uma metáfora fortuita do que acontece com os operários nos canteiros. 7 Trata-se da própria lógica de produção da cidade-empresa neoliberal que, para atrair os olhares dos seus clientes e do capital transnacional, precisa esconder dissensos, pobrezas e conflitos. Nesse caso, porém, sendo as pessoas-placa chamarizes para novos clientes, é impossível não ver o que salta aos olhos.
Notas de Rodapé
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm
- http://reporterbrasil.org.br/2015/04/o-brasil-vai-desistir-de-combater-o-trabalho-escravo/
- http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2014/05/27/confisco-de-imoveis-flagrados-com-escravos-e-aprovpelo-congresso/
- http://www2.planalto.gov.br/noticias/2015/05/fiscalizacao-liberta-mais-de-10-mil-trabalhadores-em-situacao-de-escravidao-em-4-anos
- http://www.sintraconsp.org.br/NoticiaDetalhe.asp?pageid=5444
- http://g1.globo.com/economia/seu-dinheiro/noticia/2013/01/crescem-queixas-sobre-defeitos-em-imoveis-novos-veja-direitos-de-cliente.html
- https://medium.com/@cidadetorre/pessoa-coisa-cidade-torre-98828b716ce4#.9xulnc8oz