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16.08.2016

Trabalho escravo no Brasil: reflexões sobre seus alicerces contemporâneos

Graziella do Ó Rocha

Admitir, conhecer e enfrentar práticas como o Trabalho escravo e o Tráfico de pessoas não são tarefas simplórias. Para nós, brasileiros e brasileiras, devido ao nosso passado escravocrata, o reconhecimento da persistência desses fenômenos dá-nos a sensação de um anacronismo: parece que paramos em algum lugar no tempo.

Esses fenômenos ainda são pouco conhecidos e guardam entre si peculiaridades que despertam a descrença: será que existem mesmo? Não se trata de um exagero? Em pleno século XXI, com a popularização da internet, por que uma pessoa ainda pode se encontrar numa situação de escravidão? Perguntas como essas ainda permeiam o senso comum e são construídas em decorrência da falta de conhecimento das matérias em âmbito jurídico e, mais ainda, das suas características enquanto expressão da questão social.

Por mais absurdo que pareça, situações de escravidão ainda existem, mas ocorrem na marginalidade, invisível aos olhos dos cidadãos, das instituições públicas e, muitas vezes, presente nas cadeias produtivas de empresas de diversos setores e atividades.

Dados disponíveis no relatório de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) 1 revelam que, de 1995, quando iniciaram as ações de fiscalização voltadas ao enfrentamento do Trabalho escravo no Brasil, até o 2º semestre de 2015, nada menos que 45 mil pessoas foram retiradas de situação de trabalho análogo ao de escravo (conforme tipificado no artigo 149 do Código Penal de 1940) – entre elas, mulheres, crianças, homens, brasileiros e estrangeiros.

As informações do Ministério do Trabalho2 indicam que o Trabalho escravo atinge mais intensamente o trabalhador no meio rural, em diferentes atividades ligadas à pecuária, à produção de carvão, à extração do látex e de madeira e à produção de cana de açúcar.Nos últimos três anosforam revelados casos significativosnomeio urbano, que empregaram uma nova característica ao fenômeno e demonstram que centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, estão impregnados de trabalhadores explorados em situação análoga à de escravo.

Devido à natureza oculta e à dificuldade de acesso às localidades onde ocorre a exploração é difícil mensurar, com exatidão, quantos trabalhadores estejam, neste momento, escravizados no Brasil. Segundo estimativa da Comissão Pastoral da Terra (CPT), endossada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) 3, aproximadamente 25 mil pessoas ainda estariam sujeitas a essas condições. Ressalta-se que esse número é uma estimativa adotada, mas de difícil comprovação.

Para se compreender a persistência do Trabalho escravo como um fenômeno contemporâneo é preciso observá-la como uma questão complexa e queestá alicerçada, ao menos, em quatro pilares: falta de oportunidades,a busca pelo lucro fácil,padrões culturais que naturalizam a desumanização do trabalhadore a certeza da impunidade.

As vítimas diretas e indiretas (familiares) do Trabalho escravono Brasil do século XXI encontram-se em situação de vulnerabilidade social e econômica e nãoobtém do Estado mecanismos que a retire de maneira definitiva dessa situação, proporcionando oportunidades decentes de acesso à educação, trabalho e renda. O abuso dessa posição de vulnerabilidadeé o ponto de partida do processo exploratório e a ganância o seu elemento motivador.

Os casos de Trabalho escravo, em sua maioria, estão ligados às estratégias para obtenção de ganho com menor custo possível. Este é o combustível que alimenta um sistema de busca desenfreada pelo lucro fácil e inconsequente. Recorrentemente, o elo forte dessa cadeia de exploração está em empresas, quepara manterem-se mercadologicamente competitivas, reduzem os custos de produção com o uso de mão de obra barata, sem a justa remuneração e sem os cuidados necessários para garantir o cumprimento das leis trabalhistas e a manutenção dospadrões de dignidade da pessoa humana.

No Brasil, a naturalização de padrões culturaisé um fator significativo, que colabora para a persistência do Trabalho escravo. Há a aceitação cultural de que alguns trabalhos, especialmente o rural e o doméstico, constituem uma espécie de subtrabalho que podem ser realizados de forma precária, sem o menor respeito à saúde e à segurança dos trabalhadores.

Outro ponto complexo está na dificuldade de se efetivar a punição aos perpetradores. O Brasil é signatário de diversos documentos internacionais que respaldam o enfrentamento desses crimes, taiscomo as convenções nº 105 e nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e apresenta um conjunto de normas e leis que podem ser eficazes em sua repressão, como aquelas dispostas no artigo 149 e 206 do Código Penal Brasileiro de 1940. Contudo, os casos ainda são subnotificados e as condenações ainda são insignificantes.

Um diagnóstico realizado peloMinistério da Justiça4,lançado em fevereiro de 2013, aponta um panorama dessa impunidade. A pesquisa revelou que entre os anos de 2005 e 2011 (período analisado) 475 vítimas de Tráfico de pessoas foram identificadas pelo Ministério das Relações Exteriores. Dessas, 337 sofreram exploração sexual e 135 foram submetidas a Trabalho escravo. Os países de maior incidência foram: Suriname, Suíça, Espanha e Holanda.

No Suriname, foi registrado o maior número de vítimas (133), seguido da Suíça (127), da Espanha (104) e da Holanda(71). Nos seis anos analisados foram instaurados 514 inquéritos pela Polícia Federal, dos quais 13 de tráfico interno de pessoas e 344 de Trabalho escravo. Quanto às prisões e indiciamentos, a pesquisa demonstrou que, no período analisado, 381 pessoas foram indiciadas por tráfico internacional de pessoas pela Polícia Federal e somente 158 foram presas, após o trânsito em julgado.Portanto, menos da metade dos crimes levou os perpetradores à punição.

A certeza da impunidade constitui o quarto pilar da persistência do Trabalho escravo no Brasil e faz com que esta seja uma prática viável e lucrativa.Enfrentar o Trabalho escravo é um desafio complexo que deve ser assumido pelo conjunto da sociedade. O desafio está na solidificação das ações de prevenção, repressão e de reinserção social na cultura organizacional de forma que, em longo prazo, essas ações deixem de ser uma resposta a uma convocatória supragovernamental para se tornarem práticas habitualmente inseridas no cotidiano da sociedade brasileira.

Contudo, isso requer, necessariamente, o desenvolvimento de estratégias para assegurar a intersetorialidade e a multidiciplinaridade como fomento de alianças estratégicas, na articulação com os mais diversos atores públicos e privados e na produção de ações de contracondutas que reconheçam eatuem nas falências estruturais,e na naturalização das desigualdades que produzem e reproduzem a escravidão no Brasil.

Notas de Rodapé

  1. Ministério do Trabalho e Emprego.Relatórios específicos de fiscalização para erradicação do trabalho escravo. Brasília, 2015. Disponível em: http://portal.mte.gov.br. Acesso em: 16/07/2016.
  2. Ministério do Trabalho e Emprego.Relatórios específicos de fiscalização para erradicação do trabalho escravo. Brasília, 2015. Disponível em: http://portal.mte.gov.br. Acesso em: 16/07/2016.
  3. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil. International Labour Office; ILO Office in Brazil. – Brasília, 2010.
  4. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Relatório nacional sobre tráfico de pessoas: consolidação dos dados de 2005 a 2011. Brasília, 2013.

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