Para o arquiteto e urbanista italiano Francesco Careri o relato é uma das formas básicas do percurso, isto é, uma de suas formas de se manifestar. O professor de Arquitetura da Università degli Studi Roma Tre e autor do livro Walkscapes – O caminhar como prática estética (G. Gilli, São Paulo, 2013) esteve em São Paulo no dia 5 de julho a convite do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc e da Escola da Cidade. Careri proferiu uma palestra pela manhã e conduziu à tarde um percurso através do bairro do Bixiga com cerca de 40 caminhantes.
Io, per me, amo lestrade. […]
Quitoccaanche a noipoveri
lanostra parte diricchezza
edèl’odore dei limoni.
[Eu, por mim, amo as estradas. […]
Aqui toca também a nós pobres
a nossa parte de riqueza
que é o perfume dos limões.]
Eugenio Montale
paisagens
urbanas
suburbanas
superurbanas
me constroem
o tempo todo
em que eu
ando e paro
paro e ando
reparando
do que é feito
o conteúdo
da caixa preta
do planeta
Chacal
Para o arquiteto e urbanista italiano Francesco Careri o relato é uma das formas básicas do percurso, isto é, uma de suas formas de se manifestar. O professor de Arquitetura da Universitàdegli Studi Roma Tre e autor do livro Walkscapes – O caminhar como prática estética (G. Gilli, São Paulo, 2013) esteve em São Paulo no dia 5 de julho a convite do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc e da Escola da Cidade. Careri proferiu uma palestra pela manhã e conduziu à tarde um percurso através do bairro do Bixiga com cerca de 40 caminhantes.
Em sua palestra, Careri falou sobre os trajetos que faz com seus alunos em Roma e sobre o grupo Stalker, que fundou e conduziu, com colaboradores em 1990; o arquiteto mencionou que, para suas derivas, inventam algumas regras para “desorientá las”, por exemplo, nos trajetos ocorrem entradas desautorizadas em áreas particulares, que suscitam uma conversa, negociação, ameaça, suspeita e reflexão sobre o ato de percorrer os espaços e confrontar os estranhos. Outro exemplo é a regra de sair por uma passagem diferente da que foi usada para entrar. Essas regras evidenciam o caráter experimental e ao mesmo resguardam o que tem de artificial, pois se trata de uma reapropriação do espaço em sua potência de deslocamento, de desorientação e de experiência contingente e performática. A ideia, parece, é perceber como os trajetos são condicionados pelo que Gilles Deleuze chama de “expressões coletivas de enunciação que formam uma territorialidade”, isto é, as leis e regras que dispõem os movimentos e os limites.
Do Centro de Pesquisa à Escola Estadual Maria José
Depois de sairmos do Centro de Pesquisa, caminhamos até a Escola Estadual Maria José, no Bixiga, e pedimos permissão para entrar. Depois de algumas ordens que iam e vinham, uma funcionária finalmente nos autorizou, mas fomos informados de que não era permitido fotografar ou filmar. À enunciação da regra não se seguiu nenhuma justificativa, ela funciona por transmissão direta, mas se efetua impessoalmente, sendo sempre ninguém com quem se está falando quem a criou. O grupo não levou a restrição muito a sério, muita gente fotografou, no espírito de uma amigável e escorregadia desobediência civil (é necessário e desejável o atrito com os obstáculos do percurso).
No grupo Stalker se costuma produzir mapas dos trajetos, mas não se atendo necessariamente a métodos de cartografia científica, antes propondo categorias próprias de descrição [ver mapa “Milano, Rotte d’abbandonoattraversol’arcipelagomilanese. 1213 Gennaio 1996, in http://bit.ly/2ckDH7q . 1
O grupo se interessa particularmente pelas zonas mortas, bordas e franjas de exclusão e de risco, como acampamentos ciganos e de refugiados, em detrimento dos eixos urbanos monumentais. Isso porque as zonas marginais são instáveis, heterogêneas, velozes e estriadas, enquanto as zonas monumentais são estratificadas, homogêneas, lentas e lisas.
A Escola Estadual Maria José foi ocupada pelos estudantes secundaristas no final de 2015. No dia 1o de dezembro foi invadida pela Polícia Militar, que afastou dali os jornalistas, mas os alunos resistiram.
Durante a ocupação, aquele espaço opaco e ordeiro se torna palco de uma ondulação coletiva, que estremece também as leis da cidade e os condicionamentos imateriais das pessoas, mostrando que mesmo os espaços mais estratificados da cidade podem ser revolvidos e transfigurados, por exemplo, de um aparelho público de educação em um bunker provisório de uma sublevação civil.
Da Escola Estadual ao Teatro Oficina
Após sairmos pela mesma passagem pela qual entráramos (a dona das chaves até que se mostrou disposta a abrir uma corrente que trancava um portão alternativo, mas a chave não foi encontrada) caminhamos até o Teatro Oficina, nossa segunda parada, no celebrado edifício desenhado por Lina Bo Bardi. Ali, ficamos à toa no pátio anterior do teatro, um terreno baldio murado, que seria uma zona morta não fosse palco mudo de uma disputa entre o Teatro Oficina e a corporação Grupo Silvio Santos pela posse do terreno (pode-se ler relato circunstanciado de todo o caso aqui http://bit.ly/2cLODYP). Efetivamente, o Teatro Oficina e Zé Celso Martinez Correa são patrimônios culturais brasileiros sediados em São Paulo, protagonistas de passagens históricas da militância artística e política da cidade há mais de cinquenta anos, desde o período de triste memória da Ditadura Militar. Por sua importância, em 2010 o Teatro foi tombado como Patrimônio Histórico pelo Iphan. O grupo corporativo Silvio Santos deseja erguer no entorno do teatro duas torres e instalar um shopping center.
Do Teatro Oficina ao Canteiro Aberto Vila Itororó
Chegamos ao Canteiro Aberto Vila Itororó pouco antes do crepúsculo. Visitamos o Centro Cultural Temporário do canteiro e ouvimos uma comunicação do curador, Benjamin Seroussi, sobre as categorias descritivas de espaços como aquele e de processos de deterioração e recuperação de seu usufruto público e democratizante. O projeto vive momento muito interessante, em certo sentido suspenso e subtraído do intemperismo da história. Este estado destemporalizado e protegido da vida da cidade, num paradoxo, suscita um constante debate sobre sua natureza, debate que não pode descartar a contingência frenética e descontrolada de seu entorno, que justamente desestabiliza e retransforma a cidade e suas unidades formais – casas, ruas, quarteirão, bairro etc. para organizar e delimitar trajetos e percursos.
As caminhadas são experiências, os trajetos não são percorridos previamente e não ocorrem aulas enquanto o grupo se desloca. O próprio deslocamento constitui um curso, pois, como diz Careri, o trajeto pode ser o ato de atravessar, a linha imaginária ou real que marca o espaço e também o relato da travessia.
O livro Walkscapes(2002) é uma síntese da reflexão crítica de Francesco Careri, que percorre conceitos, lugares, objetos e paisagens de diversos campos disciplinares (arte, sociologia, história, arqueologia, arquitetura, urbanismo, p.e.). Mas o livro pode ser lido também como uma história da arte do ponto de vista de suas relações, intervenções e interações com o espaço físico e social.
Dividido em quatro capítulos, Walkscapestraz intercaladas aos capítulos páginas de fundo azul que trazem “materiais heterogêneos” e que são uma forma saborosa de interromper o fluxo de leitura e criar desvios, descansos e paradas. O percurso crítico e narrativo é extenso. Para Careri, o menir, monumento neolitico que funciona como uma baliza erigida em axiais de fluxos sociais, é um dos primeiros objetos arquitetônicos, precedido entretanto pelo rastro ou pegada deixados pelo caminhante, forma perecível ou não de organização do espaço. O autor menciona a mais antiga marca da presença humana, que fica na Tanzânia e foi impressa no lodo vulcânico há 3.700.000, na construção de seu argumento. São passadas de dois hominídeos, um adulto e uma criança. Se o primeiro capítulo trata de matérias tais, fazendo uma arqueologia do percurso como fundação e apropriação do espaço, do segundo em diante o autor mergulha em experiências urbanas e artísticas. Aí encontra seu ambiente, porque os modernistas já percorrem a cidade como horizonte de eventos e potência de encontro, desvio, reflexão e performance, já a percorrem como forma de arte. Assim, são de enorme interesse os recenseamentos das hipóteses da cidade banal dadaísta, da cidade insconsciente surrealista e da cidade orgânica e empática dos situacionistas, experiências essas de que parte Careri e o coletivo Stalker em seus trajetos desnaturalizadores do olhar.
São vários os achados críticos e narrativos agudos, como a interpretação da passagem bíblica de Caim e Abel. Logo após o assassinato de Abel, Deus interpela Caim e o condena à errância, mas dá a ele um sinal que o protege de ser morto por quem ele encontrar no caminho. Vale a pena ler a ousada interpretação, que dá ideia da força crítica:
“[…] Deus puniu Caim mandando que errasse no deserto. Nunca deixei de pensar na reação de Caim. O seu medo não é perderse, mas encontrar o Outro; teme que o Outro o mate, a sua única preocupação é de como enfrentar o conflito com o diverso. A Bíblia conta que Deus, então, dá a Caim um “sinal” que servirá para protegêlo. Uma marca? Uma marca de Caim? Comecei a estudar e pareceme que este sinal não se encontra na iconografia de Caim, na qual este traz consigo o cajado do viandante. Estou convencendome do fato de que o Senhor não deu “um sinal” a Caim propriamente, muito menos um cajado, mas que ensinou Caim a fazer algo que não sabia fazer. Deus ensinou a Caim a saudar, a ir em direção ao outro fazendo um sinal não beligerante. E estou cada vez mais convicto de que essa saudação é a mesma do símbolo do ka(que também é a raiz do nome “Kaim”): dois braços erguidos que vêm ao encontro de alguém caminhando, que vão ao encontro do outro não já para matálo, como Caim fizera com o seu irmão, mas mostrandolhe as mãos vazias, desarmadas, inofensivas e talvez estendidas em direção a um abraço.” (p. 1734)
O símbolo ka, representação gráfica de uma pessoa com os braços estendidos, é oriundo da cultura egípcia, e a hipótese de Careri é que pode ter sido um gesto compartilhado por todas as culturas errantes do paleolítico. Por aí se pode vislumbrar a aventura intelectual que a leitura do livro promete.
“Para onde vamos?”
O fato de estarmos caminhando com um professor cuja prática educacional se nutre do conceito de Deriva dos situacionistas não impediu que esta pergunta surgisse em um ponto ou outro do trajeto. Mesmo com um destino traçado previamente,o caminhar e a conversa nos mobiliza, e a cada momento nos oferece escolhas: Por onde ir? Que lugar é este? Também as perguntas por vezes nos imobilizam. Indagar o destino correto a todo momento só deixa ver certa necessidade de excluir qualquer lugar de dúvida, que carregue consigo o imprevisto.
A questão que se colocava logo no início da fala de Carerireverbera na escola: quais outras possibilidades do ensino da arquitetura que não alienem da experiência no espaço estudantes e professores? A todo momento, Careri realçava a sobreposição entre trajeto, no sentido de um caminho que oferece a experiência de reconexão com os fundamentos mais pertinentes do pensar arquitetônico e urbanístico, e curso, este caminhar no tempo,constituinte de uma formação coletiva, que possibilita, de modo semelhante, a confecção de um percurso, a um só tempo atravessamento e lugar de transformação para quem se propõe a percorrê-lo.
Gilberto Mariotti
Notas de Rodapé
- “[…] a cidade pode ser descrita do ponto de vista estético-geométrico, mas também do ponto de vista estético- experiencial.” “É uma operação que necessita da reformulação das categorias por meio das quais proceder à descrição e à intervenção nesses lugares, cuja inteligibilidade se perdeu.” Cf. Careri, Walkscapes, p. 159 e 161.