CAMPO LIMPO: CARTOGRAFIA DAS TERRITORIALIDADES CULTURAIS
De que recursos dispõe […] um coletivo para afirmar
um modo próprio de ocupar […] o espaço público,
de cadenciar o tempo comunitário, de mobilizar a memória coletiva, […],
de criar laço, de tecer um território existencial […][1]
Peter Pál Perbart
INTRODUÇÃO
Nessa perspectiva crítica levantada por Pelbart, é bom lembrar Agamben (2002) quando diz que crianças (por exemplo, com um objeto sacro), gatos (com o novelo de lã), ou mesmo, como hipótese, coletivos (com a cidade, fazendo post it[2]) brincam, podem brincar, não para devolver um uso canônico aos objetos e, sim, para libertá-los definitivamente dele, mediante um novo uso que não preexistia, próprio e original, mas que só nasce mesmo depois de ser posto em ato. Jogo de desativação da norma e efetuação de valor de uso comum e coletividade. E, de par com o que muito artistas e pensadores provavelmente concordam, pode-se ao menos tentar cartografar os pontos de emergência, os locais de irrupção, os procedimentos nos e pelos quais se vão inventando rotas de escape, linhas de fuga ao bloqueio ou ao sequestro que, nas duas pontas dos dispositivos de exclusão/captura, se antepõem à atualização e proliferação de subjetividades coletivas, à efetuação de potencialidades criativas, espaciais e temporais, culturais ou vitais.
É nesta pista, que certamente passa ao largo da segmentação dura do tempo de vida, que a pesquisa para a elaboração da CARTOGRAFIA DAS TERRITORIALIDADES CULTURAIS do Campo Limpo põe seu foco, na tentativa de identificar, mapear e caracterizar possíveis espaços-tempos de produção da cultura, que se encontram (ainda) à parte do circuito institucional. A ideia é de que se possa extrair deste mapeamento indicações relativas à disposição e configuração física dos espaços de operação, bem como dos mais variados fluxos que os permeiam e fazem funcionar, de modo que se possam sintetizar regularidades ou categorias — contextuais, escalares, formais — aptas a provocar conceitualmente a elaboração de projeto de nova unidade Campo Limpo do Sesc. Pela leitura crítica da teoria e da produção arquitetônica, tal provocação não pretende evocar nenhum sentido contextualista, ou caráter mimético, da cópia de modelos, da analogia tipológica ou da representação de situações locais, mas, sim, o de apontar linhas do mapa do devir-cidade do Sesc. E, mesmo reconhecendo que a relação “dentro” e o “fora” é inevitavelmente assimétrica, isso passa pela possibilidade de ampliar a porosidade e a permeabilidade física e social da nova unidade, como meio para conectar (-se) (a) outras territorialidades ou modos de povoar o tempo (livre?).
OBJETIVO
Mapear contextos urbanos, redes e espaços materiais e imateriais de produção cultural que conformam “territorialidades culturais” no distrito paulistano do Campo Limpo, tendo em vista identificar eventuais padrões físicos, técnicos e sociais de sua efetuação de modo que possam servir de subsídio (ou provocação) ao conceito e ao desenho da nova unidade do Sesc.
OBJETO
TERRITORIALIDADES CULTURAIS
Modos de povoar coletivamente o tempo livre, fora da segmentação dura (LAPOUJADE, 2015) da vida: família, escola, trabalho, assistência e suas “idades”.
Tal definição é necessariamente parcial e provisória, na medida em que é intencionalmente aberta para captar e incorporar novos sentidos que possam advir dos próprios agentes locais. Isso possibilita reconfigurar, no próprio processo de investigação, seus termos e limites.
TERRITÓRIO COMO PRIMEIRO AGENCIAMENTO
Cada territorialidade, segundo Deleuze e Guattari (1996), constitui-se e procede segundo duas coordenadas, cujos polos se pressupõem reciprocamente: a primeira articula conteúdo técnico (mão) e expressão discursiva (boca): fazer/falar; a segunda, um movimento duplo: a cada territorialização tem-se desterritorialização correspondente (e processos de codificação e descodificação associados não biunivocamente).
Daqui deriva o desafio de que qualquer cartografia que se queira trans-escalar e integrada busque meios para captar e registrar a interdependência mútua entre forma (extensivamente estratificada, territorializada e codificada como espaço e narrativa) e força (intensivamente virtual, como potência de multiplicidade e diferença).
Por outro lado, há que se circunscrever minimamente o que se pretende nomear com o termo “Cultura”. Essa ideia se encontra em um terreno ambíguo e de implicações contrastantes (WAGNER, 2010) na medida em que transita entre uma noção elitista e um conceito antropológico. A primeira associa-se a termos que conferem uma ideia de refinamento, como “alta cultura” e “sala de ópera”, e a segunda busca associar essa concepção ao coletivo, e não ao indivíduo.
Segundo Wagner (2010) na concepção antropológica “podemos falar de cultura como controle, refinamento e aperfeiçoamento gerais do homem por ele mesmo, em lugar da conspicuidade de um só homem nesse aspecto”. Essas ideias contrastantes estão em jogo constantemente e caminham lado a lado nas negociações entre indivíduos, coletivos e instituições.
Manuela Carneiro da Cunha (2009) classifica o conceito antropológico de cultura como “esquemas interiorizados que organizam a percepção e a ação das pessoas e que garantem um certo grau de comunicação em grupos sociais”.
Entretanto, também entende que a noção de cultura realiza uma viagem de ida e volta. Apresentada pelos antropólogos como um conceito, é adotada e renovada na periferia como uma forma consciente de escolha, negociação e produção de uma “cultura” (já com aspas, pois autorreferenciada), performatizada, incentivada e utilizada pelos grupos sociais para colocar sua identidade e demandar direitos.
Esta pesquisa investigará as práticas culturais no território do Campo Limpo levando em consideração esse terreno ambíguo de significados, buscando trabalhar nos interstícios entre a cultura no sentido antropológico e as “culturas” assim reconhecidas. Com enfoque nos atores e coletivos sociais, que elencam e promovem os aspectos que consideram mais apropriados de sua cultura, a pesquisa permite que se alcance um panorama rico da produção cultural no Campo Limpo.
JUSTIFICATIVA
Diferentemente de outros projetos desenvolvidos para ou pelo Sesc, o da unidade Campo Limpo se pretende de caráter experimental. Isso implica recolher, analisar e sistematizar dados e informações não estritamente derivadas do programa funcional estabelecido. Portanto, associada à realização de seminário e oficinas, a pesquisa para a elaboração da Cartografia Das Territorialidades Culturais prevê fornecer subsídios (ou provocações) que possam abrir a concepção do projeto a configurações espaciais e programáticas atentas a linhas possíveis do devir-cidade da própria unidade.
[1] Peter Pál Pelbart. Exclusão e biopotência no coração do Império. www.cedest.info/Peter.pdf
[2] Fazer post-it é promover o uso transitivo e transgressor do espaço urbano, seja por provocação do código, seja por estratégia de sobrevivência (PERAN, 2009).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1996.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
GREGOTTI, Vittorio. Território da arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1975.
LAPOUJADE, David. Movimentos Aberrantes. São Paulo: Editora N-1, 2015.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LOPES, Diogo. Analogia e Arquitetura. In: BANDEIRA, Pedro; MOURA, Eduardo Souto de; SEIXAS LOPES, Diogo; URSPRUNG, Philip. Eduardo Souto de Moura: Atlas de Parede, Imagens de Método. Porto: Dafne, 2011.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Da Periferia ao Centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia Urbana. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.
MAIER, Tobi. A Bienal como constelação. In: 30ª Bienal – A Iminência das Poéticas. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2012.
MASSIRONI, Manfredo. Ver pelo Desenho – Aspectos técnicos, cognitivos, comunicativos. Lisboa: Edições 70, 2010.
MONEO, Rafael. Sobre la noción de tipo. In: Oppositions, nº 13. Nova Iorque: Institute for Architecture and Urban Studies, 1978.
PELBART, Peter Pál. Exclusão e biopotência no coração do Império. www.cedest.info/Peter.pdf
PERAN, Martí. Post-it: Ciudades Ocasionales. Madrid: SEACEX, 2009.
SAMARA, Timoty. Grid: Construção e Desconstrução. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
Territorialidades Culturais
PROFESSORES: Pedro M. R. Sales (coordenação) e Fábio F. L. Mosaner
ALUNOS: Felipe A. Brunelli, Lucas B. Rodrigues, Marília Serra, Marina D. L. Schiesari, Marina D. Bagnati, Pedro Henrique Norberto, Rebeca D. de Paula e Stella B. Tamberlini
CONSULTORES EXTERNOS: Pedro Vada, Yuri B. Tambucci e Anna Turriani