Em texto elaborado para o Projeto Contracondutas, o professor de História e Teoria da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro assinala a dimensão crítica das imagens que remetem aos efeitos da escravidão e do sistema colonial, das gravuras de Rugendas e da arquitetura colonial à produção artística contemporânea.
O livro Arquitetura na Formação do Brasil, de 2007, “aborda a história da arquitetura e das cidades brasileiras, nas suas relações com a história econômica do Brasil”1. Relacionando atividades econômicas hegemônicas e espaço geográfico, os capítulos focam “arquiteturas e cidades do açúcar, da mineração, do café, do gado, do algodão, da borracha e da industrialização”.
A meu ver, faltou pensar o Tráfico de pessoas da África e sua escravização no Brasil como sistema econômico vigente entre os séculos XVI e XIX, o qual afetou sobremaneira a arquitetura e as cidades brasileiras mesmo depois do fim oficial do tráfico e da escravatura no país, em 1850 e 1888, respectivamente. Mais do que uma economia subsidiária àquelas atividades econômicas, o tráfico e a escravização de pessoas eram modos de geração de riqueza para determinados segmentos sociais. E determinaram a constituição de espaços, edifícios e objetos específicos, sendo fundamentais na configuração da paisagem e da cultura brasileira. Parafraseando o título daquele livro, pode-se dizer que esta arquitetura, como as outras nele analisadas, participaram da deformação do Brasil.
Diversos artefatos móveis ou fixos, usados no mar e em terra, em núcleos urbanos e rurais, foram idealizados ou aperfeiçoados por senhores, fossem mercadores ou proprietários de pessoas escravizadas, configurando o cativeiro em lugares temporários e permanentes, para manter o jugo sobre elas. Fortificações, navios negreiros, lojas de escravos, senzalas, cômodos em porões e fundos de lotes de casas urbanas abrigavam-nas de modo a garantir suas sobrevivências em condições apenas suficientes para a otimização de suas forças vitais nos processos de enriquecimento das pessoas que delas se assenhoraram. Os pelourinhos explicitavam em pontos focais das cidades brasileiras como estes continentes objetais, edilícios e espaciais impunham cotidiana e excepcionalmente a violência àquelas pessoas, a seus corpos e mentes, para manter a posse e incutir a ordem social escravista.
Por outro lado, é preciso pensar nas arquiteturas e cidades constituídas ou vislumbradas em contraposição ao tráfico negreiro e à escravidão. Com efeito, artefatos arquitetônicos e urbanísticos foram e são constituídos nos processos de resistência e emancipação à escravatura: quilombos, terreiros, favelas e outros espaços também menos ou mais transitórios.
Neste texto, quero ressaltar como as dimensões crítica e emancipatória que motivaram os criadores e usuários dos objetos, edifícios e territórios contrários à ordem colonial e escravista também têm animado ações e obras artísticas que, sobretudo recentemente, têm trazido à tona e posto em discussão aquele sistema econômico e seus efeitos perversos, ainda persistentes na sociedade brasileira.
Em Sacudimentos, par de performances artístico-religiosas de 2015, Ayrson Heráclito pretende purificar dois lugares cruciais naquele processo: a Maison des Esclaves, na ilha de Gorée, próxima a Dakar, no Senegal, cuja construção original foi feita pelos portugueses e é um lugar de memória do tráfico negreiro, e as ruínas da Casa da Torre de Garcia D’Ávila, construída em Mata de São João, ao norte de Salvador, na Bahia, e que foi a maior casa senhorial no Brasil no século XVI. Entre a fortificação, entreposto do tráfico, e a casa senhorial, destino da gente escravizada, se interpunha o Atlântico, oceano da diáspora. Divisor, de 2001, do mesmo Heráclito, sinteticamente sugere tanto o Atlântico quanto o navio negreiro como continentes de sangue, sofrimento, dor. Em uma instalação sem título, de 2013, da série Assentamento, Rosana Paulino também refere-se à travessia atlântica das pessoas escravizadas, aludindo com estrados e fardos de madeira à precariedade objetal e à condição de vulnerabilidade a que eram relegadas ao serem tratadas como mercadorias. Em Segredos Íntimos, de 2009, ainda Heráclito desmembra uma embarcação e a rearticula com outros elementos para ressaltar as conexões do tráfico negreiro com a economia açucareira e com a estratificação social baseada em diferenciações raciais derivadas de classificações cromáticas da pele.
Da série de gravuras que Johann Moritz Rugendas produziu sobre o Brasil, em meados na década de 1830, pode ser destacada uma série de imagens que representam momentos e espaços que pontuavam o tráfico e a escravatura. Com problemática verossimilhança, ele figurou a clausura desde a travessia do Atlântico em embarcações até o confinamento em senzalas e outros espaços rurais, passando por entrepostos de controle no desembarque, lojas para comercialização, abrigos na viagem rumo ao campo, bem como pelourinhos e outros objetos de suplício das pessoas escravizadas, permitindo ver como estes artefatos eram fundamentais à violência impingida a pessoas tratadas como mercadorias.
Em Delírios de Catarina, de 2014, instalação composta de mesa de resina e sangue de boi em estilo manuelino, bancada de trabalho em madeira, torniquete e cabeças de açúcar mascavo, Caetano Dias sintetiza o engenho de açúcar como máquina na qual a riqueza também provinha do acúmulo de bens artísticos e do intercâmbio de valores culturais, mas que, assim como a produção de lucro, dependia da exploração e do extermínio de gente, mostrando como eram indissociáveis cultura e barbárie no processo de colonização das Américas pelos europeus.
Canto Doce, de 2006, o labirinto construído pelo mesmo Dias com paredes de açúcar mascavo em uma estação de trem de Salvador, fala de controle, desorientação e marginalidade que persistem desde a cultura açucareira. Dos engenhos às vilas de ontem, assim como nas metrópoles de hoje, o espaço era permeado por vigilância e conflito. Em Tratado #2, de 2015, pode-se ver Jaime Lauriano atualizando com economia de redução o pelourinho, obrigando o observador de sua obra/instalação a se ver e pensar na continuidade contemporânea da violência pretérita.
Entretanto, assim como o engenho, estes artefatos do jugo não estavam livrem de contra-ataques. Há quem defenda o vínculo das senzalas com ideias e tipos arquitetônicos africanos2. Em uma instalação de 2009, com mãos incrustadas nas paredes das quais fluem fitas que culminam em imagens de amas e pequenos senhores, Rosana Paulino estimula pensar a senzala como lugar de dolorida e sutil reinvenção da liberdade nas frestas do cotidiano, onde e quando as pessoas escravizadas resistiam. Preservação de valores africanos na intimidade que afetava os modos como se apropriavam das habitações a elas designadas. Entretanto, permanece a dúvida quanto ao grau de autonomia que os servos tinham na conformação das edificações e na estruturação das fazendas, cujos elementos arquitetônicos eram componentes importantes nos processos de geração de riqueza a partir da lavoura de cana-de-açúcar, café e outros produtos.
De qualquer modo, a apropriação das senzalas faz pensar nas possibilidades de disrupção em meio aos dispositivos de dominação colonial e escravista, em lugares temporários ou permanentes.
Rugendas também representou espaços fugazes de reinvenção da África no cotidiano, como os deflagrados a partir de práticas como a lavagem de roupas e o jogo da capoeira, entre outros momentos lúdicos instaurados em interstícios da forçada labuta. É justamente a vital e potente alteridade desses espaços, ao mesmo tempo breves e persistentes no tempo, o que Lygia Pape captura ao registrar uma roda de capoeira para constituir um de seus Espaços Imantados, em 1978. Variados que sejam os festejos representados por Rugendas, a festa pode ser vista como momento excepcional, instaurador de espaços de contra-poder, tanto em rodas capoeira e de batuque, como em cerimônias de culto de divindades católicas padroeiras dos negros. Breve ou duradoura, a apropriação e reinvenção dos espaços do catolicismo por africanos e afrodescendentes deu-se tanto em situações transitórias, como se pode perceber nos cortejos de congada representados por Carlos Julião, quanto permanentes, como a igreja de Santa Efigênia, em Ouro Preto, na qual Chico Rei teria recomposto sua corte misturando valores e referências dos dois lados do Atlântico.
Espaço por excelência de contra-poder são os quilombos, que foram constituídos por pessoas que lutavam para se libertar do jugo da escravidão e da ordem colonial. Configurados para conquista e manutenção da liberdade, eram espaços de resistência à ordem política, econômica, social e cultural vigente na colônia e imposta a partir da metrópole portuguesa. Como tal, eram espaços defensivos, nos quais as pessoas viviam sob a permanente possibilidade de invasão e captura, como se os inimigos os espreitassem ininterruptamente. Assim, eram primordialmente espaços fortificados, como expressam alguns mapas sobreviventes do processo de dominação e extermínio de quilombos. A reinvenção também era crucial nos quilombos. Neles, colocavam-se novos desafios no desenho de edifícios e espaços. Os pontos vitais à sobrevivência e os elementos defensivos eram fundamentais em sua configuração, mas era possível e até estimulada a ressurgência de princípios e formas da arquitetura, do urbanismo e da paisagem em África. À margem da estrutura colonizadora, nos quilombos foram articuladas múltiplas referências: africanas, indígenas e europeias. Sua complexidade espacial derivava dos diferentes grupos marginalizados que os constituíam: sobretudo ex-escravos africanos e afrodescendentes, mas também nativos e até europeus.
Contudo, entre os continentes arquitetônicos constituídos na resistência à escravidão, ao racismo e à marginalização de afrodescendentes, o mais representado artisticamente são as comunidades religiosas, muitas vezes denominadas como terreiros. Desde Zacharias Waegner, no século XVII, até Alexandre Vogler, Heráclito, Marepe e Ronald Duarte, no século XXI, passando por Modesto Brocos, Antônio Gomide, Rubem Valentim, Oswaldo Goeldi, Cândido Portinari, Djanira, Heitor dos Prazeres, José Medeiros, Pierre Verger e Walter Firmo, muitos que lidaram com os espaços ritualísticos das religiões afro-brasileiras: batuque, candomblé, macumba, tambor de mina, umbanda, e Xangô, entre outras. Figuram ou aludem em performances aos espaços externos e internos que são mobilizados nos rituais dessas religiões, os quais se estendem desde recintos até praças, ruas e estradas, rios e mares, em uma imantação mágico-religiosa do território que também é um modo de reinvenção da paisagem africana no Brasil.
Outra reinvenção da paisagem africana na resistência foi a “Pequena África”, como Heitor dos Prazeres nomeou a região do centro do Rio de Janeiro com grande concentração de pessoas africanas e afrodescendentes. E as favelas, espaços de resistência e emancipação constituídos à margem da ordem vigente também usados por africanos e afrodescendentes para sobreviver aos efeitos do processo escravista e conquistar a efetiva liberdade. Favela que também mobilizou artistas tão díspares como Gustavo Dall’Ara, Eliseu Visconti, Augusto Tarsila do Amaral, Lasar Segall e Hélio Oiticica, além dos já citados Firmo, Goeldi, Malta, Pape, Portinari, Prazeres e Verger.
Além de por em foco a favela como lugar de possível reinvenção do meio ambiente à margem da persistente colonização, a série de fotografias feita por Marcel Gautherot em Sacolândia, assentamento constituído por trabalhadores que participaram da construção de Brasília e suas famílias, permite ressaltar uma questão subliminar nas obras até aqui abordadas: a tensão entre lugares de reinvenção e artifícios de representação. Pois as habitações de Sacolândia reinventam, não representam, assim como a Casa da Flor, de Gabriel Joaquim dos Santos desde meados do século XX até 1985, quando faleceu; os ambientes reconfigurados por Artur Bispo do Rosário na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro; o Jardim do Nêgo, que Geraldo Simplício, o Nêgo, vem construindo para si à volta de sua casa, em Nova Friburgo, desde 1981. Em contraponto à arquitetura da deformação constituída pelo tráfico negreiro e a escravatura, edifícios, jardins, objetos e espaços como os de Seu Gabriel, Bispo do Rosário e Nego, assim como quilombos, terreiros, e favelas, são arquiteturas da reformação do Brasil.