Esse texto integra parte da dissertação intitulada “A crise do trabalho na cafeicultura de Vitória da Conquista, Bahia”, apresentada no ano de 2016, no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Texto submetido à Revista Pegada (http://revista.fct.unesp.br/index.php/pegada), especializada em pesquisas sobre exploração do trabalho.
INTRODUÇÃO
O Planalto da Conquista, na Bahia (figura 1), importante região produtora de café desde o início da década de 1970, começou a sofrer, a partir dos anos de 1990, intenso processo de precarização da força de trabalho e redução significativa do número de pessoal ocupado no campo. Nesse período, as alterações pelas quais passaram as relações laborais na cafeicultura corresponderam exatamente ao momento em que houve o avanço das formas de exploração do trabalho incorporadas pelo capital em sua fase de mundialização. Além disso, marcou a instauração de uma nova expressão do trabalho degradante na atividade cafeeira sob o aspecto da escravidão contemporânea, o que deprimiu ainda mais os níveis de reprodução da vida dos trabalhadores.
Ante a esse contexto, faz-se necessário considerar, em âmbito geral, que os avanços tecnológicos, organizacionais e sócios metabólicos estabelecidos pelo capital em seu momento de crise provocaram graves alterações no interior da classe trabalhadora, flexibilizando e desregulamentando as relações de trabalho. No que se refere à conjuntura laboral rural conquistense, os impactos desse processo sobre os trabalhadores começaram a ser percebido de maneira mais expressiva no início dos anos 2000, sobretudo a partir de 2013, quando houve o incremento do uso de máquinas agrícolas especializadas em todas as fases do processo produtivo do café e, consequentemente, a ampliação da precarização do trabalho e do desemprego.
Sob a lógica da acumulação flexível, a tendência capitalista é ampliar a passos largos as possibilidades de exploração e precarização da força de trabalho. Essa exploração caracteriza-se, principalmente, por meio da redução de salários, intensificação da jornada de trabalho, disseminação de empregos terceirizados e temporários, desregulamentação das relações de trabalho e dilapidação dos direitos trabalhistas. Nesse sentido, pode-se dizer que, nesse início de século, assiste-se a uma efetivação do “emprego moribundo”, no qual o mundo do trabalho encontra-se cada vez mais fragmentado, heterogeneizado e precarizado (THOMAZ JR, 2005).
Com isso, pode-se afirmar que a flexibilização e a desregulamentação promovida pelo capital não poderia encontrar melhor alicerce para sua realização senão por meio de uma base miserável de sujeição da classe trabalhadora aos altos níveis de exploração e ao assombro do desemprego estrutural. Com o contingente de trabalhadores desempregados em expansão, há uma tendência desenfreada ao achatamento de salários e à criação das condições ideais para o uso do trabalho desqualificado e precarizado pelos capitalistas. Ademais, a situação dessa massa se agrava, quando ela se transfigura em uma significativa quantidade de trabalhadores que são cotidianamente impelidos à situação do trabalho análogo à escravidão, tanto em ambientes laborais urbanos como rurais.
É importante considerar, ainda, que esse panorama de degradação da classe trabalhadora relaciona-se diretamente com as formas assumidas pelo capital em aumentar a produtividade do trabalho. Nessa perspectiva, as máquinas aparecem como sendo o principal instrumento de elevação dos índices produtivos, permitindo, ao mesmo tempo, o descarte de grande quantidade de força de trabalho da produção. Com essa relativa dispensa de trabalhadores, há a necessidade, pelo capital, de acrescer ainda mais a intensidade da produtividade daqueles que estão empregados de modo a obter maiores taxas de exploração. Quando se aumenta a produtividade, amplia-se, também, a capacidade do capital de se apropriar da mais-valia, o que quer dizer que mais trabalho está sendo gasto por uma mesma ou menor quantidade de força de trabalho empregada. Em outras palavras, é dizer que, perante essa grande massa de trabalhadores que se torna supérflua para o capital, aqueles que conseguem se inserir no mercado de trabalho são pressionados a produzirem mais e em ritmo cada vez maior 1.
Diante dessa relação incondicional entre o desemprego e a precarização da força de trabalho, o Trabalho escravo contemporâneo, denominado também de trabalho forçado por dívida, obrigatório ou peonagem (OIT, 1930), aparece embrenhado na estrutura social criada pela reestruturação produtiva e impulsionado em momentos de crise do capitalismo global, emergindo como a relação de trabalho mais deprimente do século XXI e o lado mais perverso da relação conflituosa existente entre capital e trabalho.
Em meio a esses fenômenos sociais inerentes ao momento predominante da reestruturação produtiva, aborda-se nesse texto a realidade laboral do campo do Planalto da Conquista a partir do movimento de ampliação da tecnificação na produção cafeeira e, contraditoriamente, das relações arcaicas de trabalho. A leitura dessa conjuntura se dá, principalmente, através da discussão sobre as causas e consequências da reprodução do trabalho análogo à escravidão na região e de depoimentos 2 dos trabalhadores envolvidos nesse processo: sujeitos explorados e precarizados, que vivenciam o desemprego estrutural.
TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO NO CAMPO BRASILEIRO: A REALIDADE BAIANA
Conforme Menezes (2007), o trabalho análogo à escravidão em pleno século XXI é a artimanha utilizada pelo capital de recriar relações laborais antigas para dinamizar a acumulação capitalista contemporânea. No que concerne à sua definição, o Ministério Público do Trabalho (MPT-2010) a concebe como sendo a reprodução de relações de trabalho forçado e obrigatório em conjunto com situações laborativas que não garantem as condições mínimas de dignidade a um ou mais trabalhadores.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra – CPT (2011), a segunda década dos anos 2000 tem sido marcada por diversos casos de trabalhadores rurais submetidos ao trabalho análogo ao escravo. Em 2010, foram resgatados 2.915 trabalhadores, 562 deles somente no estado do Pará, forte produtor de soja, banana, milho, cana-de-açúcar, mandioca, além da pecuária. Já em 2011, esse número caiu para 2.095, sendo o Mato Grosso do Sul o estado que apresentou o maior índice de trabalhadores libertos: um total de 379 resgatados na pecuária e nos cultivos do eucalipto e mandioca.
No ano de 2012, a quantidade de trabalhadores libertos chegou a 2.077. Nesse período, o Pará liderou, mais uma vez, o ranking estadual com o maior número de resgates: 573 trabalhadores foram libertados, quantidade superior ao de 2010, ano em que esse mesmo estado ficou na frente nos índices de trabalho análogo ao escravo. Já em 2013, os resgates corresponderam a 1.089, sendo o maior número de trabalhadores libertos verificado no estado de São Paulo, onde 156 sujeitos foram encontrados em fazendas de café, laranja e cana-de-açúcar. Vale destacar que grande parte desses trabalhadores era proveniente da região Nordeste, principalmente dos estados da Bahia e de Alagoas.
No ano de 2014, 1.241 trabalhadores foram resgatados, estando no Piauí a maior incidência de libertações: um total de 160 trabalhadores livres, sua grande maioria encontrada em carvoarias. Já em 2015, de 556 libertos, as ocorrências concentraram-se em Minas Gerais, onde 165 trabalhadores foram resgatados em fazendas de café, carvoaria, pecuária e mineração. Em 2016, Minas Gerais se sobressaiu novamente, apresentando o maior índice nacional de resgatados. Para esse ano, dos 544 trabalhadores libertos, 108 deles realizavam atividades em terras mineiras, número um pouco menor que o de 2015.
Com a apresentação desses dados, nota-se que o contingente de trabalhadores resgatados ao longo dos anos de 2010 a 2016 diminuiu. A análise superficial dos fatos levaria à compreensão de que tal redução decorre do arrefecimento do número de casos de trabalho análogo ao escravo no campo brasileiro. No entanto, ao se fazer uma leitura crítica do panorama do trabalho degradante no país, é necessário o entendimento de que o número das denúncias geralmente é maior do que a quantidade de trabalhadores resgatados. Na maioria das vezes isso acontece porque os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), no ato da fiscalização das propriedades, não consideram infrações isoladas como trabalho análogo ao escravo. Para que haja a constatação de escravidão contemporânea, devem-se existir, no conjunto das relações laborais, práticas que violem tanto a dignidade dos trabalhadores quanto a sua liberdade, reduzindo-os a mero objeto.
Para além de interpretações rasas dos fatos, Melo e Silva (2015) alerta que é preciso considerar as dificuldades enfrentadas na identificação desse tipo de crime 3 , tornando-se imprescindível o conhecimento das diversas estratégias e tentativas de camuflagem desses delitos pelos infratores. Essa autora salienta ainda, que, atualmente, a fiscalização das denúncias de escravidão contemporânea no país é feita por poucas equipes e que em 2015 os grupos de fiscais que integram o Grupo Móvel de Fiscalização do trabalho caíram de 10 para 4. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, a diminuição desses grupos significa a precarização das fiscalizações e, em alguns casos, a sua inviabilidade.
A região Amazônica, por exemplo, que historicamente apresenta os maiores índices de trabalhadores libertos, principalmente em atividades ligadas ao campo, tem recebido cada vez menos inspeções, ao ponto que podemos fazer a seguinte relação: menos inspeção, menor o registro de Trabalho escravo, o que não significa, obviamente, na redução dessa forma perversa de exploração laboral.
Outra análise possível advém do fato de que, com o golpe político/parlamentar/jurídico/midiático e o discurso de corte de gasto disseminado pelo governo ilegítimo de Michel Temer, as ações do grupo móvel de fiscalização foram praticamente suspensas desde julho de 2016. Além disso, muitas foram as artimanhas utilizadas pelos poderes executivo, legislativo e judiciário para reduzir os números e criar a falsa ilusão de que os problemas sociais no campo brasileiro estão sendo solucionados. Em um ambiente de golpe, no qual a principal investida dos golpistas é minimizar os direitos dos trabalhadores, vide reforma trabalhista, previdenciária, regulamentação da terceirização e os cortes orçamentários, o arrefecimento dos conflitos trabalhistas, assim como da precarização do trabalho, torna-se absolutamente contraditório.
No que se refere à Bahia, o quadro de precariedade do trabalho no campo também se constitui de relações de trabalho degradantes, materializadas nas formas de trabalho análogo ao escravo. De acordo com a CPT (2016) (tabela 1), entre os anos de 2010 e 2015, o número de trabalhadores libertos nesse estado tem apresentado certa diminuição. Esse decréscimo, no entanto, não exprime uma redução no número de trabalhadores envolvidos nas denúncias, que apresentou de 2010 para 2015 quantidades três vezes maiores. Quando comparamos o ano de 2014 com 2015, a diferença é ainda mais gritante, com 32 trabalhadores envolvidos no primeiro ano e 360 no segundo. Em 2014 foram registradas apenas uma ocorrência, enquanto que em 2015 houve duas.
Um fato curioso que se observa a partir da análise dos dados sobre o trabalho análogo à escravidão no campo baiano refere-se à quantidade de trabalhadores libertos nas operações do MTE. Para todos os anos, o número de libertos foi inferior ao número de trabalhadores presentes nas denúncias, exceto em 2014 quando a quantidade de trabalhadores resgatados foi a mesma de trabalhadores citados nas denúncias. Embora a CPT não apresente explicações sobre essa diferença, podemos inferir que ela decorre de um conjunto fatores que dificultam o processo de libertação desses sujeitos em sua totalidade. Destacamos como principais as seguintes proposições:
1) Por vezes as denúncias podem não corresponder ao número exato de trabalhadores nas propriedades. Elas podem fazer menção apenas a números aproximados, isto é, a quantidades estimadas.
2) Devido às questões burocráticas, nem sempre a ação do MTE é imediata às denúncias realizadas. Como o trabalho no campo é predominantemente intermitente pode acontecer de no intervalo entre a denúncia e a fiscalização/inspeção do MTE, as atividades nas propriedades cessem e que os trabalhadores sejam descartados e migrem (em casos extremos, fujam) para outras áreas, cultivos, atividades, propriedades rurais, etc.
3) Outra hipótese é que, a qualquer sinal do MTE nas propriedades, os trabalhadores são coagidos pelos gerentes, capangas ou pelos próprios donos das fazendas a fugirem para evitar o flagrante.
4) Por último, acrescentamos que, embora os trabalhadores reconheçam a situação de miséria na qual estão submetidos 4, muitos acabam optando por continuarem inseridos nesse perverso processo de exploração e precarização da força de trabalho. Por tratar-se, em sua grande maioria, de sujeitos desqualificados para o mercado, não veem alternativa senão a sujeição de suas vidas e trabalho a atividades extremamente degradantes. Se libertos pelo MTE, ficam “marcados” para os fazendeiros e nas redondezas, e, caso haja o retorno da produção naquela propriedade ou a possibilidade de emprego em fazendas vizinhas, não conseguem ser “admitidos”. Diante disso, torna-se comum a resistência dos trabalhadores perante as investigações do MTE e a fuga de muitos desses sujeitos no momento da inspeção. Nessa perspectiva, nota-se que determinadas situações alteram a noção típica de fuga de trabalhadores escravizados. Nesse caso, contraditoriamente, foge-se para continuar precarizado, escravo 5.
Consideramos esta última hipótese como a mais dramática para o trabalhador, porque condiz exatamente com as formas de “captura” da subjetividade do trabalho incorporadas pelo capital em sua atual fase de acumulação flexível. Sobre isso, Alves e Antunes (2004, p. 350) no texto “As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital”, afirmam:
Nessas condições, a subjetividade da classe é transformada em um objeto, em um “sujeito-objeto”, que funciona para a autoafirmação e a reprodução de uma força estranhada. O indivíduo chega a auto alienar suas possibilidades mais próprias, vendendo, por exemplo, sua força de trabalho sob condições que lhe são impostas.
Dentre essas imposições estão incluídas também aquelas que correspondem às situações de trabalho degradante, como no caso dos trabalhadores da cafeicultura do Planalto da Conquista que, mesmo conscientes do alto grau de exploração que sofrem, acabam se submetendo ao trabalho miserável nos cafezais não mais apenas para garantir a sua sobrevivência, mas, principalmente, para salvaguardarem a própria existência, uma vez que tais relações de trabalho “não constituem uma base adequada para a reprodução ‘normal’ da força de trabalho” (SINGER, 1977, p. 2).
De acordo com a tabela 2, no Planalto da Conquista, de 2010 a 2015, os municípios que apresentaram casos de trabalho análogo à escravidão na atividade cafeeira foram Vitória da Conquista, Barra do Choça e Encruzilhada. Nesse período, ocorreram denúncias em cinco propriedades. Nelas, no total, 133 trabalhadores estavam envolvidos: 4 eram menores e 99 deles foram libertos pelo MTE. É possível notar ainda que, entre esses anos, houve o aumento do número de trabalhadores nas denúncias, passando de 21, em 2010, para 30, em 2015, sendo que em 2014 esse índice foi o maior: 32 trabalhadores. No que concerne aos trabalhadores libertos, os números também se mostram progressivos, com 17 resgatados em 2010 e 32 em 2014.
Diante do exposto, faz-se necessário ressaltar que o panorama do trabalho análogo ao escravo instaurado na região revela-se como constante e crescente, dando vazão à criação de uma gama de trabalhadores que convivem entre o sofrimento de relações de trabalho degradante e a necessidade de venderem a sua força de trabalho para sobreviver, pois “não têm diante de si outra hipótese que não seja vender ou não a sua força de trabalho” (GAUDEMAR, 1977, p. 190). Nessa perspectiva, o tópico a seguir traz a leitura dessa situação de trabalho, mostrando, empiricamente, como o mesmo se transfigura em trabalho análogo ao escravo, precarizando e explorando, cada vez mais, os trabalhadores do campo conquistense.
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO, EXPLORAÇÃO E MISÉRIA NA CAFEICULTURA DO PLANALTO DA CONQUISTA
Segundo dados da CPT (2016), a primeira notificação de Trabalho escravo contemporâneo na região do Planalto da Conquista se deu em 2010, na Fazenda Estância Cafezal 6 , de Paulo Roberto Bastos Viana, na zona rural do município de Barra do Choça. Conforme a Ação Civil Pública do Ministério Público do Trabalho (MPT), processo de nº 0000819-35.2010.5.05-0611, a fiscalização realizada pelo MTE, entre os dias 21 de julho a 02 de agosto de 2010, encontrou 29 trabalhadores na propriedade, onde 21 deles estavam submetidos ao trabalho extremamente degradante e reduzidos à condição análoga a de escravos. Em meio a esses trabalhadores, havia, ainda, 4 menores entre 14 e 16 anos de idade.
Nessa operação, o MTE avaliou as condições de alojamentos, instalações sanitárias e das frentes de serviço, consideradas desumanas pelos auditores fiscais do trabalho. Os alojamentos não dispunham de qualquer móvel ou utensílio necessário para a acomodação dos trabalhadores, que acabavam dormindo no chão, em papelões, colchonetes ou esteiras. Sobre essa situação, a trabalhadora aponta: “Não tinha beliche. Nós forrava o colchão num piso véi de cimento” 7.
Seus alimentos e objetos pessoais ficavam expostos, sujeitos a insetos e ratos sem qualquer higiene. No ato de inspeção foi encontrado nos alojamentos carne em estado de putrefação, pois não havia local apropriado para a conservação do alimento. A carne estragada era consumida pelos trabalhadores diariamente. Uma jovem que trabalhou nessa fazenda relata em seu depoimento as condições da cozinha: “A cozinha era um trem vei tudo preto, tudo fumaçado. Ninguém cozinhava lá dentro não, cozinhava era na porta, fazia o fogãozinho e cozinhava as comidas” 8.
Na fazenda também não era fornecida água potável aos trabalhadores. Os homens e mulheres que ali vendiam a sua força de trabalho eram obrigados a consumirem água de péssima qualidade de cor amarelada retirada de cisterna ou açude. A estocagem da água nos alojamentos era feita em vasilhames que antes continham produtos químicos, como combustíveis, fertilizantes, óleo e graxa, verdadeira agressão à saúde do trabalhador. A água para beber, preparar os alimentos e para o banho era a mesma. De acordo com uma trabalhadora resgatada:
Tinha água de cisterna e era uma água ruim. Quando puxava vinha só aquela lama. Pra cozinhar e beber tinha que deixar assentar no fundo do balde pra tirar só aquela água de cima pra não beber lama. E quando acabava também nós ficava no sofrimento. Pra tomar banho tinha que buscar em outra fazenda do lado de lá na cabeça ainda. (Trabalhadora 1 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
O banheiro dos trabalhadores era improvisado com lona plástica, sem cobertura e sem porta. Muitos trabalhadores faziam as suas necessidades fisiológicas no mato, o que deixava um cheiro ruim nos arredores dos alojamentos. Esse cenário de insalubridade foi para nós relatado, através de depoimentos de algumas trabalhadoras resgatadas nessa ação do MTE:
Era horrível. Nem banheiro tinha para a gente tomar banho, era um quarto, nem porta tinha. A gente escorava uma taboa para tomar banho. Era uma porqueira. (Trabalhadora 1 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Banheiro nem pra ver. O povo chegava tudo atolado, tudo melado. E esse tanto de mulher pra tomar banho… E criança… E homem. (Trabalhadora 2 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Tinha necessidade por todo o lado naquela fazenda. Não tinha banheiro, né? O banheiro era o mato (risos). Então o povo cagava tudo embrenhado nos matos, que ficava assim perto. Um cheiro ruim demais, e a gente comia sentindo aquele cheiro ruim, sabe? Eu não, quando eu queira fazer as minhas necessidades eu ia mais longe. Mas lá tinha um povo muito que fazia perto. (Trabalhador 1 resgatado de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Nenhum trabalhador foi submetido a exame médico admissional e, em caso de acidente de trabalho, não havia disponível materiais de primeiros socorros. Além disso, segundo a Ação Civil Pública, a fazenda não dispunha de técnico de segurança do trabalho, de Serviço Especializado de Segurança e Saúde no Trabalho (SESTR) e muito menos implantou o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA).
É importante salientar que o cafeicultor não assinou a carteira de trabalho de nenhum de seus empregados, fato que principia a informalidade e precariedade das relações de trabalho e que demonstra, por vias empíricas, ou seja, através da negação da legislação trabalhista e dos direitos historicamente conquistados, a força do caráter sistêmico da reestruturação produtiva do capital sobre o trabalho.
Segundo as entrevistas, o recrutamento dos trabalhadores foi feito através dos “gatos” que também assumiam cargos de fiscais de turma na fazenda Estância Cafezal. Esse recrutamento era feito na periferia da cidade de Vitória da Conquista, que, sem acerto prévio das tarefas, do valor a ser pago e das condições de trabalho, contratavam homens e mulheres para o trabalho na colheita. Para o MTE, além de ludibriarem o trabalhador, esse tipo de trâmite em que não há a negociação das condições de trabalho trata-se de uma tentativa capciosa dos fazendeiros de “escaparem” das responsabilidades trabalhistas.
De acordo com depoimentos dos trabalhadores da Fazenda Estância Cafezal, o trajeto de Vitória da Conquista para Barra do Choça era feito sem qualquer segurança em cima de carrocerias de caminhões, sem cobertura e assentos. Esse tipo de transporte é considerado ilegal pelo MTE, pois não corresponde às exigências presentes na Norma Reguladora 31 (NR31), que observa como seguro o transporte nos seguintes requisitos:
a) possuir autorização emitida pela autoridade de trânsito competente;
b) transportar todos os passageiros sentados;
c) ser conduzido por motorista habilitado e devidamente identificado;
d) possuir compartimento resistente fixo para a guarda das ferramentas e materiais, separado dos passageiros. (Norma Regulamentadora 31 – NR31. Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aquicultura).
Conforme ainda a NR31, o transporte de trabalhadores em carrocerias de caminhões só pode ser realizado em situações excepcionais e mediante autorização prévia da autoridade competente em matéria de trânsito, devendo o veículo apresentar condições mínimas de segurança para o trabalhador, tais como:
a) escada para acesso com corrimão, posicionada em local de fácil visualização pelo motorista;
b) carroceria com cobertura, barras de apoio para as mãos, proteção lateral rígida com dois metros e dez centímetros de altura livre, de material de boa qualidade e resistência estrutural que evite o esmagamento e a projeção de pessoas em caso de acidente com o veículo;
c) cabine e carroceria com sistemas de ventilação, garantindo a comunicação entre o motorista e os passageiros;
d) assentos revestidos de espuma, com encosto e cinto de segurança;
e) compartimento para materiais e ferramentas, mantido fechado e separado dos passageiros.
A modalidade de trabalho empregada na fazenda era o trabalho por produção (empreitada) e o acerto de salário só ocorria quando os trabalhadores chegavam à propriedade, ficando estabelecido o pagamento de R$2,50 por lata de café colhido. Segundo Singer (1977, p. 3), o trabalho por produção “permite ao capital deprimir o nível de remuneração e, ao mesmo tempo, aumentar a intensidade do trabalho”. Ou, como aponta Bastos e Gonzales (1977) refere-se ao salário determinado pela capacidade de rendimento do trabalhador. Em tal modalidade, o cafeicultor obtém maior lucratividade à custa da pauperização e esgotamento dos trabalhadores, que passam a trabalhar mais intensivamente para aumentarem a sua remuneração.
No momento de aferição das latas colhidas eram recorrentes os fiscais de turma alegar, levianamente, a presença de frutos verdes para descontar o pagamento dos trabalhadores e aumentar a exploração da mais valia. Desse modo, objetivando maiores lucros, além de o cafeicultor exigir do trabalhador que seu trabalho alcance, pelo menos, um grau médio de intensidade nas condições sociais, “procura aumentar o mais que possa a parte excedente do trabalho socialmente necessário para a produção do salário, visto que esse excedente é, precisamente, o que proporciona mais valor” (BASTOS; GONZALES, 1977, p. 37).
Esse fato pode ser verificado na Ação Civil Pública (2010, p. 4), que descreve:
[…] Durante a aferição da produção, se o fiscal considerasse que havia café verde em grande quantidade colhida, eram descontadas de 2 a 3 latas na produção diária. Desta forma, recebiam de R$15,00 a R$20,00 por dia de trabalho, o que sempre resulta num salário inferior ao mínimo vigente. Os trabalhadores recebiam ao final de cada dia uma ficha com a anotação da sua produção.
Além disso, mediam o café utilizando recipientes maiores do que aqueles usados pelos trabalhadores no momento da colheita, visando aumentar a exploração do trabalho e uma maior extração do mais valor, como conta uma trabalhadora:
Se colocasse café verde, eles descontava nas latas de todo mundo. Se catasse só os maduro eles media normal, mas, mesmo assim, tem que calcular, porque lá era uns baldão grande, cumprido assim que ele enchia mesmo. Os balde dava uma lata e meia cada um. O balde deles era maior que o nosso. A medida certa é 20 litros, lá eles metia o baldão que eu acho que dava uma lata e meia. A gente reclamava, mas fazer o que, né? (Trabalhadora 3 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Diante disso, o que se tem é uma efetiva exploração da mais-valia absoluta, que não se realiza apenas através da ampliação da jornada de trabalho, mas, também, pelas mais variadas formas de extração e usurpação do trabalho não pago, que obriga o trabalhador a produzir mais 9. Além disso, segundo os trabalhadores, no ato do pagamento dos salários, o patrão utilizava armas de fogo e a presença de policiais para intimidá-los:
Ele era bruto que nem uma cancela, tanto ele, como o gerente. (…) Ele fazia o pagamento com uma arma do lado, levava a polícia. Tô falando aqui diante de Deus! Toda sexta feira o carro da polícia tinha que tá lá parado com esses “oitão” na mão e o filho dele lá sentado no fundo dentro do escritório assim, com outra arma, e ele fazendo o pagamento com outro “oitão” do lado. (…) As polícia não falava nada, mexia com ninguém, só ficava lá por mandado do dono mesmo, né? Lá, olhando.
O povo ficava tudo danado com ele, falando se tinha trabalhador lá ou era ladrão. Era pra intimidar, mas o povo… (Trabalhadora 2 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Não eram pagos aos trabalhadores horas extras, Descanso Semanal Remunerado (DSR), Férias, 13°salário e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). O MTE, em relatório, considerou essa situação uma afronta à dignidade do trabalhador. A jornada de trabalho diária desses sujeitos girava em torno de 9 a 10 horas de trabalho. As tarefas tinham início às 6 horas da manhã e terminavam às 17 horas da tarde, com um intervalo médio de 1 hora para almoço 10. Os trabalhadores eram obrigados a colher o café sem os equipamentos de proteção individual (EPI’s), tais como botas, capas e chapéus.
Na ação de fiscalização do MTE verificou-se, ainda, que grande parte desses sujeitos encontrava-se descalços nas frentes de serviços, ficando expostos e susceptíveis a ferimentos e picadas de insetos e animais peçonhentos. Além disso, como a colheita é realizada, predominantemente, no inverno, os trabalhadores eram obrigados a trabalhar sem cessar sob as baixas temperaturas, chuva e garoa (no período de fiscalização, foram registradas temperaturas entre 10ºC e 15ºC). Para os Auditores Fiscais do Trabalho, essas intempéries aliadas à falta de acesso aos EPI’s e água potável apontam para a caracterização de jornadas de trabalho exaustivas.
Sobre essas condições de exaustão verificadas em nossa pesquisa de campo, uma das trabalhadoras resgatadas nessa fazenda depôs:
Eu peguei pneumonia colhendo café debaixo de chuva. Foi uma pneumonia braba. Até hoje eu tô ruim. Eu mesmo só vou colher café esse ano se eu ficar boa, desse jeito ruim que eu tô, eu não vou não. Lembro como hoje disso aqui tudo doendo ó [nesse momento, a trabalhadora passa a mão pelo peito]. (Trabalhadora 1 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Na Fazenda Estância Cafezal verificou-se, também, a prática de servidão por dívida, explícita na fala de uma trabalhadora, que conta:
As coisas de comida tinha que levar daqui, porque lá não tinha nada, eles não dava nada. Nós levava compra de 15 dias. Nós levava arroz, feijão, café, farinha, milharina, levava farinha de trigo, bolacha, manteiga. Levava porque se fosse comprar lá, o dinheirinho que ganhava ficava todo lá, porque vendia mais caro, mas tinha gente que comprava. Lá, se você tivesse devendo, tinha que ficar lá até acabar de pagar, porque eles não deixava sair devendo. (Trabalhadora 2 resgatado de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Sobre o trabalho forçado por dívida nessa propriedade, consta no relatório de fiscalização do MTE a seguinte descrição:
Os trabalhadores comprovam feijão, óleo e carne, macarrão, dentre outros produtos, num armazém que funcionava dentro do estabelecimento. Os trabalhadores utilizavam como moeda de compra as fichas de produção. Afirmaram ainda que os produtos eram vendidos por preços bem acima do mercado, e que havia muitos trabalhadores endividados. De acordo com os depoimentos, após o desconto dos alimentos, muitos trabalhadores terminavam contraindo débitos, e outros recebiam, em média, um troco de R$ 10,00 a R$20,00 por semana trabalhada (Ação Civil Pública, p. 4, 2010).
Diante da grave situação verificada na Fazenda Estância Cafezal, o MTE emitiu carteiras de trabalho para os trabalhadores que não as possuía, confeccionou termos de rescisão de contratos e guias de seguro-desemprego e determinou o retorno dos trabalhadores às suas casas. Ao proprietário da lavoura cafeeira foi solicitado o pagamento de verbas rescisórias no valor de R$1.228,67 para cada trabalhador. Este, entretanto, como relatado na Ação Civil Pública, recusou tal pedido, demonstrando novamente, completo descaso em relação aos trabalhadores, que pôde ser percebido na fala de uma das trabalhadoras:
Eu sei que eles enrolou nós direitinho. É tanto que no dia de tirar as carteiras, o filho dele é que foi resolver, porque o dono saiu fora, né, se escondeu. Ele falou assim pra nós: “Quando vocês acabarem aí, eu espero vocês ali no jardinzinho. Vocês vai lá pra gente ajeitar direitinho”. Quando nós acabou, que foi lá ajeitar com ele, ele já tinha se escondido. E nem botou o nome deles em nada. Irresponsável, chegou a correr de nós. (Trabalhadora 1 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Em nossa pesquisa de campo com os resgatados pelo MTE, nos deparamos com famílias inteiras em situação de miserabilidade e extrema pobreza. Todos os entrevistados estavam desempregados, vivendo de bicos, doações ou mendicância e residiam em bairros periféricos de Vitória da Conquista, como mostra o depoimento de uma jovem trabalhadora do café:
Às vezes, quando não tem nenhum trabalho, pra ajudar nossos maridos, nós vai pedir na rua. Eu, eu não posso mentir, é melhor pedir do que roubar, né? A gente vai nessas casas na Morada dos Pássaros, ali perto do Cristo, Morada Real, Bateias [bairros de Vitória da Conquista]. Nós pede comida e eles dá um bocado de alimento pra nós. Açúcar, farinha, bolacha. (Trabalhadora 4 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Não bastasse isso, afirmaram que desde a operação de fiscalização, não receberam o valor total correspondente à rescisão que lhes era de direito, determinada pelo MTE, relatando, ainda, que esse valor foi dividido em 12 parcelas de R$102,98, tendo acesso apenas a três ou quatro delas. Sobre essa situação, uma das trabalhadoras envolvida no caso revela:
Eles [Justiça do Trabalho] pararam de pagar a gente. É uma espera e espera. Ele [funcionário da Justiça do Trabalho] deu pra nós o telefone e a gente ligava pra Antônio e nada. Quando foi um dia a gente chegou lá e eles disseram: “Ah, vocês esperam que a gente tá resolvendo, nem que seja com vinte anos, mas vai sair”. Só que eu falei assim: “Mas Antônio, que negócio é esse? Você disse que ia ajudar a gente e vocês tá desse jeito”. Mas aí ele disse “Não, é assim mesmo”. E aí nós deixou e viemo embora. Passou uns tempo e nós tornou a ir lá e nada. Já tem tanto tempo que a gente foi lá, tem uns dois anos e pouco que a gente foi lá. (Trabalhadora 1 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Quando questionados sobre como o pagamento da indenização era realizado e a quantia que tinham recebido, um trabalhador respondeu:
A gente recebia o dinheiro lá [na Justiça do Trabalho]. Lá já tem um caixazinho que faz o pagamento, aí a gente recebia lá. Cada parcelinha que nós recebia lá. Da primeira vez caiu. Da primeira vez foi R$102,00 e uns quebrado, e depois a gente ficou pegando a mesma coisa todo mês, todo mundo a mesma coisa. (Trabalhador 2 resgatado de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Após a fala desse trabalhador, uma das mulheres observou a necessidade que eles têm de receber o restante das parcelas da indenização, opinando também sobre o porquê de o pagamento ter sido suspenso:
Tem um bocado de gente, o povo das Pedrinhas [bairro periférico de Vitória da Conquista] e esse povo todo aqui, nem vai lá mais, porque eles enrolam a gente com conversa. Eu tô achando que vai ser difícil eles [a Justiça do Trabalho] resolverem a nossa situação. Se eles já não tiverem sido comprados por ele [dono da fazenda], né? Porque o que eu tô achando é isso. Tem bastante pessoas precisando desse dinheirinho pra comprar as coisas, comida, né? (Trabalhadora 1 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
Uma das trabalhadoras, de 56 anos, solteira, residente no bairro Kadija, periferia de Vitória da Conquista, contou que vive com R$70,00 do Bolsa Família, e que, assim como ela, todos os seus três filhos (duas mulheres e um homem) estão desempregados. Em sua pequena casa de três cômodos, além de seus filhos, residem a sua nora e seus três netos. Todos os três filhos colhiam café com ela na zona rural de Barra do Choça e Vitória da Conquista. Sobre a sua condição de desempregada e das perspectivas de trabalho na cafeicultura, essa trabalhadora conta:
Quem não tem tu, é tu mesmo. Eu não tenho nada, só tenho Deus e meu esforço. Pra aquela fazenda [Fazenda Estância Café] eu não vou mais, mas se tiver outra roça, eu vou. Ainda tem colheita na Barra. E tem roça lá que a metade é fichado. (Trabalhadora 2 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016).
A partir desse depoimento, evidencia-se que embora esses trabalhadores tenham consciência dos abusos e exploração que sofrem na agricultura cafeeira, veem nesse tipo de atividade uma forma de garantir, mesmo que minimamente e sob forte precarização, a sua sobrevivência. Nesse sentido, é importante salientar que esse panorama de sujeição a trabalhos cada vez mais precários e degradantes se justifica com o processo perverso de acumulação do capital em seu momento predominante de reestruturação produtiva, que intensifica a precarização do trabalho e eleva os níveis de vida dos trabalhadores a condições desumanas, expressas, sobremaneira, nas formas da escravidão contemporânea.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme verificado na cafeicultura do Planalto da Conquista e apresentado no decorrer desse texto, o trabalho análogo ao escravo acontece quando não são garantidas aos trabalhadores as condições mínimas para a realização de um trabalho digno e justo, sendo os mesmos submetidos a atividades exaustivas e degradantes, a servidão por dívida, a coação física da liberdade de ir e vir, ou mesmo, ao cerceamento da sua liberdade de locomoção.
Uma questão que nos põe atentos diz respeito às recentes tentativas da Bancada Ruralista e das empreiteiras em alterar o conceito de Trabalho escravo vigente no Código Penal desde 2003. Em meio às propostas elaboradas pelo Senado Federal nos últimos anos, torna-se imprescindível a consideração de que, no geral, o objetivo do Legislativo não é de eliminar a escravidão contemporânea do país, mas, sim, de negar a existência dessa prática através do impedimento de ações e campanhas que visam a sua erradicação e o seu enquadramento judicial penal.
Em 2014, a Comissão de Consolidação da Legislação Federal e Regulamentação de Dispositivos da Constituição aprovou o relatório do senador Romero Jucá (PMDB-RR) sobre a regulamentação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Trabalho escravo. Dentre o proposto no texto, está a redefinição do conceito da escravidão contemporânea, retirando “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” de sua caracterização enquanto crime. Mitidiero Jr. (2015) considera essa tramitação bastante perigosa para os direitos dos homens e mulheres do campo, uma vez que visa subjetivar a definição e interpretação de seu conceito. Segundo esse autor, essas emendas, além de revelar as estratégias dos ruralistas em bloquear e/ou alterar a essência da proposta original, condizem exatamente com o momento atual de “intensificação de ações de deputados e senadores contra os direitos conquistados e estabelecidos em favor dos povos do campo, constituindo um ataque à reprodução social desses sujeitos” (p. 166).
É importante ressaltar ainda, que em dezembro desse mesmo ano, o presidente do Supremo Tribunal do Brasil, o ministro Ricardo Lewandowski, deferiu liminar determinando a suspensão da publicação do cadastro de empregadores flagrados submetendo trabalhadores à escravidão contemporânea, conhecida como Lista Suja do Trabalho escravo. De acordo com Mércia Silva, coordenadora executiva do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho escravo, essa cessação serviu para que os fazendeiros e empresários escapassem das sanções do mercado e para mascarar a realidade da escravidão contemporânea da sociedade civil 11 .
Contudo, depois de três meses de interrupção da Lista Suja, uma ação conjunta entre o MTE e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) conseguiu atualizar as regras para a publicação de uma nova lista com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), revelando cerca de 400 nomes de empregadores criminosos, com infrações confirmadas pelo MTE desde dezembro de 2012.
A atualização dessas regras e o caráter delator dessa lista, todavia, continuou incomodando as grandes construtoras e os empresários agrícolas mancomunados com o Governo do Presidente ilegítimo da República, Michel Temer, que buscam incessantemente solapar as práticas de combate do Trabalho escravo no país. Em março de 2017, com a justificativa estapafúrdia da necessidade de se discutir uma nova forma para a divulgação da Lista Suja e de conceder aos empregadores acusados o direito à ampla e adequada defesa, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Filho, a pedido do próprio Temer, conseguiu, mais uma vez, suspender a medida liminar da Justiça do Trabalho de Brasília que obrigava a publicação do documento pelo MTE 12.
Por considerar a lista um importante instrumento para a erradicação da escravidão contemporânea, o MPT, em resposta à decisão arbitrária do presidente do TST, entrou com uma ação judicial para que o documento voltasse a ser divulgado. Para esse órgão, essa determinação da suspensão da Lista Suja referiu-se, na verdade, numa forma de garantir a preservação dos interesses econômicos das grandes empresas do agronegócio e das construtoras. Além disso, o MPT salienta, que a criação de um grupo de trabalho para discutir melhorias na publicação do documento poderia ser feita em concomitância com a sua divulgação e não em seu detrimento. Como resultado, o ministro Alberto Luiz Bresciani, do TST, outorgou, no início de março do corrido ano, liminar obrigando o Governo Federal a publicá-la novamente, tornando sem efeito a sentença de Granda Filho 13.
Diante desse cenário de conspiração contra o trabalho e aqueles que dele vive, Thomaz Jr. (2005) considera como duro o golpe que o Estado, o Congresso Nacional e os setores sociais, alinhados com o metabolismo do capital, planejam desferir contra a classe-que-vive-do-trabalho. Tanto as reformas em curso da legislação trabalhista quanto as emendas de PLS relacionam-se com as mudanças provindas do processo de trabalho e são extremamente destrutivas para os trabalhadores e para o movimento sindical ao ponto que o contexto político contemporâneo, no âmbito dos poderes constituídos, só pode nos levar para um horizonte, que é: trilhar o sinistro caminho da institucionalização daquilo que as ciências humanas chamam de superexploração do trabalho e o judiciário criminaliza como trabalho análogo a escravidão. O explorador ou escravagista moderno poderá estar assegurado legalmente, criando um tipo de segurança jurídica às avessas, as práticas perversas de exploração do trabalho14.
Nesse sentido, há de se considerar um conjunto de elementos incorporados pelo capital que submete o trabalhador a níveis cada vez mais elevados de precarização de sua força de trabalho e de vida. Conforme Antunes (2004, p. 15), no Brasil, esses elementos despendidos pelo padrão de acumulação capitalista estruturou-se “através de um processo de superexploração do trabalho dado pela articulação entre baixos salários, jornada de trabalho prolongada e de fortíssima intensidade em seus ritmos”. Todos eles, intensificados a partir da instauração da crise estrutural do capital, são verificados no trabalho na cafeicultura do Planalto da Conquista, revelando um mundo do trabalho permeado de miséria e gerido por contradições em que a maior delas se traduz no fato de que é o trabalho que produz a riqueza.
O que se percebe hoje é que os trabalhadores do café vivenciam um momento de extrema complexidade no que se refere às formas de venda de sua força de trabalho para os empresários agrícolas. Parte significativa desses sujeitos encontra-se inteiramente dominados por relações laborativas de degradação que se estendem às relações de reprodução de suas vidas, ficando condicionados ao que o salário miserável é capaz de proporcionar dentro da sociedade capitalista. O temor constante do desemprego e da impossibilidade da reprodução da vida faz com que esses trabalhadores se submetam a quaisquer condições de trabalho para simplesmente salvaguardarem a própria existência. Isso implica, até mesmo, em abrir mão de suas conquistas e da luta pelo trabalho digno, do cumprimento das leis vigentes no sentido de equidade e justiça social.
REFERÊNCIAS
ALVES, Giovanni; ANTUNES, Ricardo. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004;
ANTUNES, Ricardo. A dialética do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004;
BASTOS, Maria Inês; GONZALES, Elbio. O trabalho volante na agricultura brasileira. In: Capital e trabalho no campo [por] Paul Singer [e outros] organizado por Jaime Pinsky. São Paulo, Hucitec, 1977. (Coleção estudos brasileiros, 7);
CPT. Comissão Pastoral da Terra. 2016;
GAUDEMAR, Jean-Paul de. Mobilidade do trabalho e acumulação do capital. Lisboa: Estampa, 1977;
MARTINS, José de Souza. A sujeição da renda da terra ao capital e o novo sentido da luta pela reforma agrária. Ed. Vozes, 1981. In: Os camponeses e a política no Brasil. 3ª ed. Petrópolis. Ed. Vozes, 1986.
MARX, Karl. O capital. Vol. I. Toma 2. São Paulo. Abril Cultural, 1984a;
MELO E SILVA, Cristiane Passos. Seria o Estado a besta fera da vez? In: Conflitos no Campo Brasil, 2015. Comissão Pastoral da Terra – CPT;
MENEZES, Socrátes Oliveira. De “supérfluos” à sujeitos históricos na contramão do capital: a Geografia do (des)trabalho. São Cristóvão, SE, 2007. Núcleo de pós-graduação em geografia – NPGEO;
MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. Trabalho escravo contemporâneo: conceituação à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. 2ª. Ed. 200 p.;
MITIDIERO JR., Marco Antonio. Ataque aos direitos dos povos do campo. In: Conflitos no Campo Brasil, 2015. Comissão Pastoral da Terra – CPT;
OIT. Organização Internacional do Trabalho. 1930;
SINGER, Paul. Capital e trabalho no campo [por] Paul Singer [e outros] organizado por Jaime Pinsky. São Paulo, Hucitec, 1977. (Coleção estudos brasileiros, 7);
THOMAZ JR. Antônio. Por uma geografia do trabalho! Pegada, v.3, número especial, agosto de 2005, Presidente Prudente.
Notas de Rodapé
- Como mostrou Marx (1984, p. 203), em interpretação que parecer ser cada vez mais pertinente nos dias de hoje: “O sobretrabalho da parte ocupada da classe trabalhadora engrossa as fileiras de sua reserva, enquanto, inversamente, a maior pressão que a última exerce sobre a primeira obriga-a ao sobretrabalho e a subsunção aos ditames do capital”.
- Os depoimentos que constam nesse texto foram colhidos durante os trabalhos de campo realizados para a elaboração da nossa dissertação. No intuito de preservar os sujeitos da pesquisa, demos aos mesmos as nomenclaturas numeradas de “trabalhador 1”, “trabalhador 2”, etc., quando masculinos e de “trabalhadora 1”, “trabalhadora 2”, etc., quando forem femininas.
- O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 149, considera crime “Reduzir alguém à condição análoga à de escravo: Pena – reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos” (MIRAGLIA, 2015).
- Fato constatado em pesquisa de campo realizada em 2015
- É preciso deixar claro, no entanto, que para tal alegação baseamo-nos nos depoimentos que obtivemos em nossa pesquisa de campo, nos quais, o gerente do MTE de Vitória da Conquista, relatou: “Existem aqueles trabalhadores que correm da gente para a gente não fazer a entrevista e não coletar os nomes. Eles têm medo. Eles têm medo, provavelmente, de ficarem sem o emprego. Mas que tipo de emprego é esse, né? A gente pode considerar esse tipo de trabalho degradante como um emprego que garante a sobrevivência digna dos trabalhadores? Eu acho que não”. (Entrevista concedida em janeiro de 2016).
- Ao compararmos os dados da CPT (tabela 2) com os apresentados na Ação Civil Pública, podemos constatar certa discordância no que se refere ao número de trabalhadores envolvidos nas denúncias e de trabalhadores encontrados pelo MTE no momento da fiscalização. Isso pode acontecer devido ao número de trabalhadores nas denúncias se tratarem, na maioria das vezes, de estimativas.
- Trabalhadora 1 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016.
- Trabalhadora 1 resgatada de situação análoga à escravidão em julho de 2010. Entrevista concedida em janeiro de 2016.
- Como assevera Marx (1996, p. 108): “A intensidade crescente do trabalho pressupõe aumento do dispêndio de trabalho no mesmo lapso de tempo. O dia de trabalho mais intensivo corporiza-se, por isso, em mais produtos do que o dia de trabalho menos intensivo com o mesmo número de horas”.
- Segundo Menezes (2007, p. 74), essa elevação das horas de trabalho correspondem às medidas de superação da crise impostas pelo capital diante da crescente massa de força de trabalho que se torna “supérflua”.
- Entrevista concedida ao site http://www.bbc.com. “Governo ‘dribla’ STF e cria nova lista do trabalho escravo”, 06 de abril de 2015. Reportagem de Camilla Costa. Acesso em junho de 2016.
- Informações retiradas de reportagem de 07 de março de 2017. “A pedido de Temer, Ives Gandra Filho suspende lista suja de trabalho escravo” Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/. Data de acesso: 10 de maio de 2017.
- Informações retiradas de “Governo barra outra vez a divulgação da ‘lista suja’ do trabalho escravo no Brasil”, disponível em: http://www. brasil.elpais.com/ e “Ministério do Trabalho volta a publicar “lista suja” do trabalho escravo”, disponível em: https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br. Data de acesso: 10 de maio de 2017.
- Uma intersecção importante é deixar claro ao leitor que redigimos esse texto em meio ao processo de impeachment da Presidente da República Dilma Rousseff, processo esse desvelado como um golpe político a fim de assegurar a impunidade contra a corrupção pública e pela aprovação de medidas e leis conservadoras a favor do capital nacional e internacional, sendo a legislação trabalhista e as leis que regem a terra e o homem do campo um dos focos principais de ataque/deturpação.