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04.04.2017

TRABALHO E ARQUITETURA | painel

Vitor Pissaia

Os trabalhos foram abertos como manda o protocolo: Andrea Nogueira, representando o Sesc, falou sobre a polarização da sociedade brasileira atual, tanto política quanto social-econômica.

Ainda, o diretor da Escola da Cidade, Ciro Pirondi, contrapôs o trabalho colaborativo do século 21 ao século passado, vinculado a imagem das obras dos “grandes demiurgos”, e o tradutor de libras fez um longo movimento com as mãos que lembrava os de um gênio recém saído de uma lâmpada mágica, aproveitando a liberdade recém adquirida daquele objeto de desenho ardiloso.

Sem mais, Carol Tonetti e Ligia Nobre apresentaram o projeto Contra Condutas, coordenado por elas, fruto de um termo de ajustamento de conduta feito por uma grande construtora com o Ministério Público do Trabalho de Guarulhos, pela utilização de trabalho análogo ao escravo na construção do Terminal 3 do Aeroporto de Guarulhos.

Projetados na tela do Sesc Belenzinho, os conjuntos habitacionais assessorados pelo Usina ocupavam todo o campo de visão. Homens, idosos, crianças, mas principalmente mulheres, desbotados pelo tempo, discutiam sobre as maneiras de ocupar um espaço, entre a técnica e o hábito. Para quem estava sentado na platéia e via as figuras das palestrantes na contraluz, a sensação era que aquelas pessoas das fotos eram titãs, a levantar paredes e porem tetos, sem a ajuda de maquinário algum. Em um plano aberto escadas metálicas brotavam as dezenas do chão, como monumentos à promessa de que o trabalho feito ali, nos fins de semana e nas horas vagas, chegaria ao fim e traria a dignidade negada pelo poder estatal. Como uma sombra, presente e nunca vista, o projeto Cingapura da gestão municipal de Paulo Maluf rondava a apresentação. Com seu desenho feito em uma página em branco, implantado em lugares de geografia muito diversa, ao custo de grandes terraplanagens e muros de contenção, fazia às vezes do antagonista alienígena, que vinha para normalizar a todas e a tudo.

Muito se fala do aspecto pragmático e político dos mutirões da década de 90. Inclusive essa dimensão foi o fio condutor da apresentação da arquiteta Beatriz Tone e da líder da Leste 1, Cristiane Gomes. A especulação imobiliária por parte do capital financeiro, o sobre trabalho das famílias do movimento de moradia, as idas e vindas do estado. Mas há também um aspecto pouco explorado, que é o caráter estético e simbólico dos edifícios produzidos.

Conforme o mutirão é substituído pela autogestão, o desenho do canteiro muda, mas muda também o resultado formal dos edifícios. Sai a parede autoportante e entra a estrutura independente. A modulação estrita dos bloquinhos empilhados se transforma em grandes vãos sustentados por pórticos metálicos suspensos. Alguém mais dado ao determinismo da técnica pode acreditar que esses são apenas os resultados das novas tecnologias empregadas. Desconfie. Cristiane Gomes chegou a dizer que os projetos ficaram a cara de seus habitantes, se referindo as decisões tomadas em conjunto. O que ela não disse, é que o resultado estampa em suas soluções espartanas o desenho de outras poéticas possíveis ao invés da habitação feita em escala industrial pelo poder estatal alinhado ao capital privado.

Essa dinâmica de convergência entre estado e empresas privadas é o ponto central da apresentação da Rio Now, pesquisa realizada pela PUC-RIO e orientada pela arquiteta Ana Luiza Nobre. Os estudos das grandes intervenções territoriais e simbólicas, para transformar a cidade do Rio de Janeiro no espaço para os megaeventos da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, trazem à luz as mesmas contradições da modernização nacional com a construção de Belo Monte. Os discos voadores não são mais as obras seriadas do Cingapura, mas objetos identificados, chamados por muitos nomes, entre eles de Museu do Amanhã.

Desenhado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava, o museu é o cartão postal de um Rio de Janeiro elevado à cidade global. E aqui não há nenhuma referência à grande empresa de telecomunicações, ainda que ela tenha sido uma das principais porta-vozes desse futuro mítico. Edifícios renderizados à la Hans Donner, favelas suprimidas do Google Maps, e morros photoshopados em anúncios da Petrobrás, são os outdoors que envelopam os tapumes ao redor de uma cidade em obras, aonde trabalhadores morrem nos canteiros e são acomodados em condições análogas a escravidão.

Se o tema da mesa era trabalho e arquitetura, ainda que as outras palestrantes tenham tangenciado o assunto, coube a Peggy Deamer mirá-lo. O nome mais acertado teria sido política e arquitetura, onde as três apresentações seriam contempladas. Afinal o The Architectural Lobby Manifesto proposto pela arquiteta só é possível através da proposição política da arquitetura como trabalho.

O conteúdo da palestra de Deamer só pode ser analisado através de um entendimento do viés americano sobre o tema. Não que torne menos proveitoso a sua fala, mas assisti-la sem isso em mente nos impede de ver alguns mecanismos operando. Primeiro a narrativa, que lembra um Ted Talk, onde existem passos a serem percorridos intelectualmente para chegarmos a sua conclusão, ao mesmo tempo roteiro e síntese. Depois a organização por meio de associações, que atuam através do lobby para terem suas demandas atendidas, onde a luta de classes, ao menos na superfície, não é mais do proletário contra o patrão, mas dos 99% contra o um por cento que controla o dinheiro. E não menos importante, o significado que ela dá a palavra design, retomando a sua leitura como o bom e velho stylist americano da metade do século XX, onde o papel do designer era o de encapar um produto de engenharia com um visual bacana, diametralmente o oposto do design total.

Marx é bastante presente em toda a apresentação do Lobby Manifesto, mas é outra autora onde suas ideias reverberam: Hannah Arendt. Sua leitura do marxismo contribuiria muito não só para a fala de Deamer, mas para um entendimento dessa mesa como um todo. Em um mundo onde tudo é consumido pelo capital, inclusive a arquitetura, o trabalho dos arquitetos só é possível através da política.

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