Assistido como quem folheia um gibi, o segundo dia do Contra Seminário Internacional Condutas parecia bastante uma palestra convencional de arquitetura: a sequência de imagens ininterruptas, os personagens bem definidos, as falas que vão pontuando a ação, tudo estava lá. Mas como uma boa história em quadrinhos, havia ali um pano de fundo que comunicava mais do que a figura.
A palestra do Husos foi dividida em dois atos. O primeiro mostrou a pesquisa desenvolvida pelos dois arquitetos, Diego Barajas e Camilo Garcia, sobre a dispersão produtiva no território. Desmontando a lógica moderna de separação entre o momento do trabalho e o momento fora do trabalho, os dois tentam montar uma contracartografia do embricamento dos processos que estão no palco, bem delimitado pela economia clássica (de produção, exploração, regulado), com os que estão por traz da cortina, difundidos na economia domestica e na natureza (de reprodução, abuso, não regulado). Aponta-se para a necessidade de equilibrar os dois processos, de colocar as atividades não remuneradas como essenciais para os aspectos econômicos, principalmente quando surge a imagem dos cartazes feministas ingleses onde se lê: “Capitalism also depends on domestic labour” (Capitalismo também depende do trabalho doméstico). A pesquisa caminha muito próxima da fala de Peggy Deamer na tarde anterior. No fim tudo é trabalho.
A segunda parte são os edifícios produzidos a partir dessa leitura. Admitindo que as relações de trabalhos formais inexistam para grande parcela da população, os projetos buscam ser híbridos de espaço de trabalho e lazer. Moradia, fabriquetas e jardins verticais luxuriantes se misturam em espaços bem iluminados, ventilados e sem nenhuma divisão. Analisado à sombra das reformas trabalhistas, da terceirização e da previdência que o Brasil atravessa, a tradução se torna perversa. Diferente dos arquitetos desavisados de Felicity Scott, os projetos do Husos não são cínicos nem cooptados. Há uma escolha política de jogar pelas regras, por mais cruéis que elas sejam, e de se fazer o melhor possível tecnicamente, em busca de um mínimo de dignidade social.
Um possível enfrentamento da economia como motor das decisões é trazido por Manuel Ulloa. Grande parte de sua apresentação se foca num relato antropológico do arquipélago de Chiloé, no Chile, onde a fundação de qual faz parte desenvolveu alguns trabalhos. Organizada em pequenas anedotas que giram em torno dos aspectos simbólicos e da mobilidade da cultura, sua apresentação mostra os impactos e as questões colocadas à prática da arquitetura. Cada uma delas carrega consigo um pequeno ensinamento, um pequeno aforismo não anunciado. A impressão é que as histórias vão crescendo em graus de lirismo até culminarem numa mistura de vídeo, transições de Power Point, uma música folclórica e o relato ao vivo da cena de uma casa inteira sendo arrastada por uma patrulha de bois. Ulloa seguiu mostrando outros projetos, mas, fosse o caso de uma análise lacaniana, aquele seria o momento de interromper a fala.
Se nas outras palestras isso fica como subtexto, na fala de Melanie Dodd a definição de arquitetura é diretamente questionada. Critica a definição do Royal Institute of British Architecture, Dodd propõe a adição do espaço – focado mais na vivência do que no construído – às atribuições dos arquitetos. Fazendo jus ao modelo TED de apresentações anglófonas, sua fala é estruturada em três enunciados/passos/formas de agir, situadas no limiar da prática arquitetônica. Não há exatamente uma novidade no que Dodd propõe. A prática arquitetônica sempre envolveu altos montantes de investimentos e muitas vezes requerem que os arquitetos se comportem como psicólogos, investidores, pesquisadores, lobistas ou publicitários. O que de fato interessa em sua proposta é como a academia pode se posicionar sobre esse viés. Não basta mais ensinar apenas as ferramentas clássicas da arquitetura, como cortes, plantas e elevações, do construído. Assim como a apropriação dos espaços pelos usuários deve ser contemplada pelo projeto, a sua própria execução, financiamento e divulgação têm de ser vivida.