Palestrantes: Brian Garvey e Odair Furtado.
Debatedor: Raul Araujo
As corporações do século XXI operam em uma escala que seria difícil de imaginar no passado. Integrantes de uma cadeia de commodities internacional, espalham seus tentáculos em vários países de maneira simultânea, rompendo as fronteiras tradicionais. O poder dessas empresas segue centralizado enquanto as atividades produtivas ficam cada vez mais espalhadas. As decisões são tomadas longe dos locais de produção e há uma assimetria cada vez maior entre os executivos e os trabalhadores organizados, que são a única etapa do processo que consegue enfrentar e reivindicar melhores condições. Essas companhias são leais ao mercado e aos seus acionistas, não a um Estado Nacional ou à comunidade em que atuam. O sociólogo irlandês Brian Garvey se debruça sobre o estudo das relações comunitárias e tem alargado sua pesquisa para o uso de energia, água e a exploração do trabalho que essas corporações promovem. Para ele, o cenário atual tem imposto grandes desafios para os trabalhadores e para a sociedade de maneira geral.
Além da distância entre os polos de tomada de decisão e os postos de trabalho, nossa economia contemporânea enfrenta um processo cada vez maior de mecanização dos processos produtivos, que se tornam cada vez mais eficientes e baixam os custos de produção. Além disso, os aparelhos tecnológicos produzidos estão cada vez mais modernos. O consumidor final apreende as vantagens desses processos de maneira fragmentada e não tem a dimensão da cadeia produtiva global que está por trás desses avanços. Cada modificação altera o trabalho na fábrica e até mesmo nos polos de extração. O lítio necessário para fazer as baterias dos novos carros elétricos chineses vêm de minas na Bolívia. Os telefones celulares de última geração usam cobalto, minério extraído no Congo, em uma das piores condições de trabalho explorado da atualidade. O que Garvey aponta é que não devemos esquecer que a base dos avanços tecnológicos ainda é o trabalho e a indústria, que consomem recursos naturais e que precisam de quantidades significativas de água, terra e mão-de-obra.
E claro, a essas empresas interessa que essa força de trabalho seja cada vez mais flexível e pouco articulada. Aprenderam com o passado e evitam a concentração industrial, o que antes facilitava a organização dos trabalhadores. Onde há investimento de capital, essas corporações tem pressionado os Estados Nacionais para que afrouxem suas leis trabalhistas. Pesquisas apontam que 90% dos trabalhadores brasileiros em situação análoga à escrava não entendem sua situação atual como problemática. Uma reforma na legislação pode precarizar ainda mais essa condição. E é essa também a chave para o entendimento da situação política e econômica atual do Brasil. É o que defende o professor Odair Furtado, que analisa a questão do trabalho pelo viés da psicologia sócio-histórica e vê as reformas trabalhistas que vêm sendo propostas como um retrocesso para a condição dos trabalhadores brasileiros.
A agenda do governo atual, segundo Furtado, é clara e envolve a precarização das relações trabalhistas e a diminuição dos custos da previdência social. Isso passa pela regulamentação da terceirização, o que piora ainda mais a situação da classe trabalhadora. O que é percebido em um primeiro momento como uma mudança positiva, acaba no médio e no longo prazo piorando a qualidade de vida de operários, que perdem os benefícios e garantias que possuíam e têm as suas possibilidades de organização e articulação política minadas. Há, no entanto, uma dificuldade em enxergar as coisas em perspectiva. Isso é fruto de uma consciência fragmentada, tema de estudo de Furtado, e que está diretamente ligada ao estranhamento e à alienação. Furtado explica que o trabalhador desenvolve um estranhamento em relação àquilo que produz e que não tem condições de adquirir; com seu salário, por sua vez, compra outras mercadorias. Isso leva à perda do controle do cenário geral e ao foco exclusivo no que é imediato, mantendo as condições que produzem esse estranhamento ocultadas.
A burguesia nacional não tem projeto de desenvolvimento para o país e parece mais compromissada com o mercado e com o lucro, como as grandes corporações multinacionais. A razão da precarização do trabalhador brasileiro não é a falta de estudo, mas a falta de postos de trabalhos para profissionais mais qualificados. O que essa burguesia não percebe, no entanto, é que ao super explorar tanto os trabalhadores quanto a terra, gera consequências graves para o país. Sem condições sociais para o público consumidor, a conta não fecha. Além disso, o agronegócio não resolve o problema da alimentação da população, muito pelo contrário. A agricultura familiar é responsável por 80% da produção de alimentos básicos, como feijão, hortaliças e frutas e sofre com a aplicação de agrotóxicos e com a exaustão da terra promovida pela agroindústria.
A maior exploração do agronegócio foi uma das saídas encontradas pelo capital para superar a crise de 2008. As empresas petroleiras tem se preocupado com o aumento do custo da extração de petróleo e tem diversificado sua área de atuação com produtos com a mesma matéria-prima e as mesmas infraestruturas. Isso gerou um investimento grande em biocombustíveis, o que na prática representou a ocupação de terras brasileiras por grandes plantações de cana para a produção de etanol. Para maximizar os lucros, essas empresas também vão atrás das fontes de outros recursos, como a água, e isso promove uma mudança no padrão de propriedade e uso da terra e gerando uma nova paisagem.
Garvey aponta investimentos de corporações internacionais no sudoeste de Goiás, explorando a terra e a mão-de-obra de maneira predatória. No pequeno município de Quirinópolis, onde antes não se produzia nada, hoje há uma produção de 4,5 milhões de toneladas de cana e emprego de 5 mil pessoas. Quando perguntadas, no entanto, essas pessoas dizem que não sentem segurança no emprego no médio e longo prazo. Há uma estratégia de desarticulação que promove quase 50% de rotação de mão-de-obra. As contratações são feitas por temporada, e apenas os trabalhadores mais eficientes conseguem novos contratos. Somado a isso, há muito desgaste físico e um enorme risco de acidente.
Difícil resistir à esse cenário. Furtado, no entanto, vê na recuperação de fábricas falidas uma possibilidade. Para ele, a apropriação das plantas industriais pelos próprios trabalhadores como uma maneira de saldar dívidas trabalhistas resultantes da falência tem mostrado bons resultados. A ação funciona como uma cunha no capitalismo ao permitir aos próprios trabalhadores que pensem em alternativas e se auto organizem. Experiências mostram que os funcionários menos graduados costumam receber mais do que o que é oferecido no mercado e os trabalhadores que ocupam cargos mais altos recebem menos proporcionalmente. Com isso, é possível oferecer uma condição de vida digna para todos. O professor é categórico: o dinheiro necessário para fazer isso é oriundo da mais-valia.