Palestrantes: Carolina Heldt d’Almeida e Guilherme Moreira Petrella.
Comentador: Jose Lira
O acervo de documentários realizados pelo cineasta francês Jean Manzon emoldura o período Nacional Desenvolvimentista pelo qual o Brasil passou durante as décadas de 1940 a 1980, entre dois períodos de regimes autoritários e um breve período de democracia, cunhado pelas esperanças de uma modernização redentora. O então jovem fotógrafo inicia sua carreira como documentarista dos grandes feitos da moderna gestão administrativa brasileira, inaugurada no Estado Novo de Getúlio Vargas, e reproduzida durante a gestão de Juscelino Kubitschek e o regime militar pós-golpe de 1964. Em mais de 500 produções realizadas, ficou eternizada não apenas uma narrativa de progresso empreendida em uma era cuja tônica de modernização transpassava a maioria dos países do globo, como também uma moldura ideológica de um governo, sua noção de civilização e progresso, espaço e natureza, trabalho e corpo colocados em um turbilhão de transformações.
A composição de projeções paralelas dos curta-metragens de Manzon, desenvolvida através da pesquisa e curadoria dos arquitetos e pesquisadores Carolina Heldt e Guilherme Petrella, acentua o caráter revelador desses documentários. Tais dípticos, onde a saída de áudio de apenas um é reproduzida, trazem não apenas uma noção de conjunto para tais reproduções, como também nos permitem avaliar a extensão do ufanismo das narrativas oficiais da época, e, mesmo que acidentalmente, o caráter de denúncia de uma dialética de modernidade e atraso. O contraste entre a aposta no poder planejador e no poder colossal da técnica e a fragilidade do corpo humano dá o tom dessa exposição, a partir das evidências acidentais da produção de Manzon : a exposição de trabalhadores à condições precárias de trabalho, risco de vida dentre máquinas estúpidas de terraplanagem e supressão da natureza em prol de um ideal civilizatório que, ironicamente, promove o embrutecimento de homens e mulheres que de sacrificaram neste processo. A narrativa original, aqui explorada de maneira deslocada de seu contexto e percepções de época, nos permite refletir sobre o conceito de progresso, a percepção da natureza e as contradições do registro do canteiro de obras, que em sua busca pela glorificação do trabalho de uma geração de trabalhadores da construção civil, revela os atrasos inerentes do processo de modernização brasileiro: uma grande vulnerabilidade aos interesses externos, conforme Celso Furtado indicou em seus estudos sobre a teoria da dependência, e a incapacidade de emplacar transformações estruturais em sua ordem social, grande fracasso e contradição de nosso processo de modernidade inconclusa.
A dupla lança atenção ao fenômeno grande obra de infraestrutura, de modo a traçar relações com o jogo contemporâneo de poder e influência entre Estado e as grandes construtoras, e o papel do trabalhador e do canteiro de obras neste enredo. O tripé de forças da elite econômica que sustentou historicamente o governo – agronegócio, construção civil e setor financeiro – são escrutinizados neste debate ainda tão relevante em nosso contexto político-social contemporâneo. Nos tempos atuais de escândalos avassaladores de corrupção, revelam-se as construções históricas de promiscuidade entre Estado e grandes instituições privadas, que se formaram a partir das oportunidades geradas por uma agenda desenvolvimentista conduzida pelas gestões de Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek e os generais da ditadura.
Traçando um arco temporal que abrange desde a construção de Brasília à inauguração da Usina de Itaipú, os vídeos apresentados demonstram as permanências e descontinuidades de um processo histórico de formação da engenharia, do mercado de construção civil e a transformação da grande obra pública em produto-mercadoria, sob a ótica de Heldt e Petrella. Desde a ascensão do grupo JBS enquanto fornecedor de alimento para o canteiro de obras de Brasília, até as concessões e licitações de infraestrutura que observamos acontecer nas grandes metrópoles brasileiras, muitas das quais colocaram grande parte das grandes empresas de construção civil do Brasil sob júdice, vemos a chamada “Era dos Planos”, das grandes obras, com maior ênfase em seus processos, do que apenas nos focar em seus produtos.
No documentário sobre a construção da Rodovia Transbrasiliana, é patente a percepção de natureza importada de um marco civilizatório eurocêntrico, que reconhece a paisagem natural como exótica, árida e apartada de um novo mundo moderno a se sobrepor à realidade existente: como diz o narrador, rios, outrora caminhos do homem, agora não passam de meros obstáculos do progresso; no relato sobre a construção da Ponte Rio Niterói “Caminhos da Riqueza”, mais uma vez a dimensão de gargalo de modernidade é dada à natureza, agora materializada na baía da Guanabara. Vale ressaltar a presença pitoresca da Rainha Elizabeth II, como estandarte da dependência financeira do Brasil ao capital estrangeiro; no díptico das construções das barragens de Jupiá e Itaipú, destaca-se um segundo momento deste processo de controle da natureza, no qual a maquinaria de modernização demonstra um novo patamar de poder. Outrora vista como obstáculo, a paisagem natural agora oferece recursos para geração de energia a partir de sua manipulação e total reconfiguração.
Como reflexão sobre estes processos, nos resta perguntar para quem se destinou tal modernização. Que parcela da população brasileira pode usufruir de sua capacidade ampliada de transformação da natureza, e quais grupos se beneficiaram de uma demanda criada pelo Estado, que Gabriel Bolaffi coloca como “problema” e “falso problema”. É de extrema relevância nos engajarmos, ao se debruçar sobre materiais como estes aqui dispostos, sobre como foi construída uma narrativa sobre a modernidade, e como esta narrativa corroborou para a formação de nossas atuais esferas de poder.