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08.03.2017

A reinvenção da história atlântica: oralidade, memória e nudez

Rodrigo Bonciani

Escrita e oralidade: esquecimento e memória

O objetivo desse texto é demonstrar que a história escrita da colonização é um dos aspectos fundamentais do processo de dominação colonial e pós-colonial – que vincula escrita, silenciamento, violência, encobrimento e esquecimento – e que a possibilidade uma história emancipadora, depende da recuperação de um sentido da história que relacione oralidade, memória e a libertação do corpo (aqui representada pela nudez).

O ponto de partida dessa reflexão, nos foi dado pelo diálogo Fedro, de Platão, que trata da arte da retórica, e tem o amor como um de seus temas principais. Platão, pela boca de Sócrates, narra um interessante encontro entre o deus Toth e o rei Tamus, do Egito. O deus, com cabeça de Íbis, apresentava ao rei suas invenções recentes e falava da importância de difundi-las entre os egípcios. Sobre cada uma delas, Tamus ponderava os prós e contras de sua adoção. Dentre as diferentes artes e tecnologias expostas, Toth destacou a invenção da escrita, e observou: “Oh rei! Esta invenção fará os egípcios mais sábios e servirá a sua memória; descobri um remédio contra a dificuldade de aprender e reter” (PLATÓN, 1871, p. 341).
Mas, Tamus ponderou:

Os efeitos de seu invento serão contrários ao que diz. A escrita trará o esquecimento às almas e a depreciação da memória; fiados neste auxílio estranho, as pessoas delegarão aos caracteres o cuidado de preservar as recordações, alienando-as de seu espírito e de seu coração. Você não encontrou um meio de cultivar a memória mas, somente, uma forma de despertar reminiscências; e oferece aos seus discípulos a aparência e a sombra da sabedoria. E, quando acreditarem que podem aprender muitas coisas sem mestres, se terão por inteligentes, e não serão mais que ignorantes e falsos sábios (Ibidem, p. 342).

Contrariando o deus Toth, Tamus nos diz sobre algumas consequências negativas do surgimento da escrita. Em primeiro lugar, a escrita é uma forma de alienação da memória, que passa a ser preservada fora da alma, do espírito e do coração. É interessante lembrar que foi da tradição egípcia que nos veio a associação entre a memória e o coração, da qual derivam, etimologicamente, as palavras: decorar, recordar etc., em que a partícula cor(d)- designa o coração, como sede da alma, da inteligência e da sensibilidade. Essa relação também estava presente em diferentes culturas africanas e ameríndias e a deglutição do coração, em rituais antropofágicos, levava à incorporação das qualidades da pessoa sacrificada.

Um segundo aspecto presente na contestação do rei Tamus, é a ruptura do vínculo entre as gerações. Os mestres, que são os velhos, deixam de ser a fonte da sabedoria e do passado, e os jovens passam a ignorá-los, perdendo-se a percepção da história enquanto contínuo. Sobre esse aspecto, Sócrates acrescenta que a escrita, assim como a pintura, distancia o sujeito do objeto, porque ela não pode ser interrogada e se dirige a qualquer um indiscriminadamente, rompe, portanto, com a relação dialógica e com a possibilidade de uma experiência compartilhada entre o narrador e o ouvinte.

A partir dessas observações iniciais, proponho um deslocamento no tempo e no espaço – acompanhando os fluxos e refluxos do Atlântico, entre a África e a América – para reconhecer as relações entre a escrita e a oralidade, a memória e o esquecimento, a dominação dos corpos e a libertação das almas. Nossa hipótese, é de que a história atlântica, fundamentada na violência e no esquecimento, estabelece, por meio da escrita, a legitimidade do domínio europeu, branco e masculino sobre as terras e pessoas ameríndias e africanas.

Nas margens euro-americanas, e nos corpos negros e indígenas, foi escrita uma história dos vencedores, do domínio de uma “civilização superior sobre povos bárbaros”. Nas margens afro-americanas, nas almas e gestos, memória e coração, existe uma história viva, de lutas e resistências, potencialmente libertadora.

América: nudez e encobrimento

Na descrição bíblica do Éden, um rio regava a árvore do conhecimento do bem e do mal, e se dividia em quatro braços, formando o Fison, o Geon, o Tigre e o Eufrates. Quando a serpente estimula a mulher a comer o fruto daquela árvore, ela diz “Deus sabe que, no dia em que vocês comerem o fruto, os olhos de vocês vão se abrir, e vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal” (BÍBLIA, 1990, p. 16).

Observem que o que seduz a mulher é a vontade de ter a onisciência divina, e ser onipotente, como Deus. No entanto, ao invés da visão sublime do saber absoluto, a mulher e o homem olharam para baixo, perceberam que estavam nus e sentiram vergonha. A percepção da nudez e a vergonha são a antítese da sabedoria divina. Adão e Eva cobriram, então, seus sexos e se esconderam atrás de arbustos. Ao retornar à cena, Deus percebe rapidamente o que passou. O homem, covarde, acusa a mulher. A mulher, envergonhada, culpa a serpente. O deus irado impõe seu poder despótico; inscreve seu domínio absoluto na mortalidade, no trabalho, no sexo e nas dores do parto. Segundo a bíblia, a Queda, o Pecado Original, é o início da história humana. Depois de ter legitimado o domínio do homem sobre os animais e as ervas do campo, deus legitima o domínio do homem sobre a mulher e, nos livros seguintes do Antigo Testamento, justifica o poder do povo escolhido sobre os nativos da Palestina (jebuseus, arameus, cananeus etc.).

Foi por meio desse mito judaico-cristão, formador da mentalidade medieval, que os europeus viram a América e os ameríndios. A nudez dos nativos, que por isso não sentiam vergonha, e a exuberância da natureza foram os sinais de que estavam diante do paraíso. Por desconhecerem o pecado original, os europeus concluíram que os indígenas estavam fora da história, vivendo no estado de natureza. Não tinham fé, lei ou rei, e nas metáforas dos jesuítas eram como a murta, a cera virgem, o papel em branco. Cabia ao homem europeu introduzi-los na história por meio do cristianismo e do trabalho. Foi na ausência de roupa, crenças, escrita e hierarquias de poder que o domínio sobre aquelas terras e pessoas foi justificado e legitimado. Segundo o cronista Pero Vaz de Caminha, os portugueses, diante dos índios nus na caravela de Cabral, “lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram” (CAMINHA, 1943, p. 207).

África: carimbo e tráfico de escravos

Na África subsaariana, pela falta de meios materiais e humanos para estabelecer um domínio sobre suas terras e povos, os europeus reconheceram a autoridade de reis e chefes nativos. Ao mesmo tempo, a penetração do islamismo no Sahel e na Guiné justificou, desde meados do século XV, a guerra e o apresamento para o tráfico de escravos. Era um comércio misericordioso, definia a escrita da bula RomanusPontifex, de 1455. Se o rei europeu não pretendia estabelecer ali um domínio político, ele podia estimular, por meio da venda de armas e de alianças estratégicas e temporárias, o trato massivo de corpos humanos.

Em algum lugar do sertão africano, terra arrasada, corpos negros mortos e mutilados, o sol quente, a terra e os ventres inférteis. Os sobreviventes seguem sem destino aparente, alguns tombam. Obalokum, alaafin de Oió, segue entre os apresados. Mais do que pela violência da peste, da seca e da guerra, ele teme pelo esquecimento, esquecer que era príncipe, descendente do obá Aganju. “Ser esquecido” era a coisa mais terrível que podia acontecer a um iorubano, o esquecido perdia sua identidade natural e social, não podia sair do Orum, não reencarnava. Para iniciar uma nova vida, era necessário apagar a memória individual do ori. Na experiência do tráfico atlântico, o Oceano era o espaço de comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, antes de embarcar, Obalokum e a multidão de crianças, mulheres e homens negros eram obrigados a dar voltas em torno da árvore do esquecimento. Sobre esse ritual, nos comentou um informante:

Supunha-se que os escravos se tornavam amnésicos, que eles esqueciam completamente seu passado, suas origens e suas identidades culturais para se tornarem seres sem nenhuma vontade de reagir ou de se rebelar. Que aberração! Que contradição! Na história humana alguém já viu um nagô esquecer suas origens, sua identidade cultural, se ela está visível nas marcas de seu rosto e incrustadas em seu coração? (ATLÂNTICO, 1998).

Na África Centro-Ocidental o termo multilinguístico banto kalunga, abarca a ideia de imensidão, designando o mar, a morte e a divindade. A Calunga Grande, o Oceano, comunica o mundo dos vivos, povoado por gente negra, e o dos mortos, habitado por seres de cor branca. Quando os portugueses chegaram ao reino do Congo, pensou-se tratar de uma embaixada do além, e, em virtude do tráfico de corpos negros, por eles desenvolvido, os navios dedicados a esse comércio foram chamados de tumbeiros.

‘Marca’, em quimbundo, se diz karimu. Karimbo era o ferrete oficial de prata ou ferro esquentado na brasa com que se marcavam os negros no momento do embarque, no ato de cobrança dos direitos de exportação. Daí as palavras carimbo e carimbar. Dessa sorte, o substantivo e o verbo – mais usado na língua portuguesa do Brasil – definindo as hierarquias, o escopo da propriedade, a validade dos documentos, a autoridade pública exercida pelo Império e pela República brasileira, derivam do gesto, do instrumento que imprimia chancela legal ao comércio de humanos. Da palavra que situa o momento preciso de reificação do africano (ALENCASTRO, 2000, p.180).

Mas as almas e os corpos negros que atravessaram o Atlântico recriaram o mundo vivo da África na América.

Anistia e progresso

A história da colonização do Atlântico, e, portanto, do Ocidente e da Modernidade, foi escrita sob o signo da anistia. O termo grego amnistia, deriva de amnésia, e significa a lei do esquecimento. Por essa lei, o Príncipe, e depois o Estado, manda que não se lembrem, nem se castiguem as culpas cometidas no tempo de uma guerra civil, ou perante um extermínio. É o perdão geral, imposto pelos vencedores dessa guerra, que pretende apagar das memórias as culpas e injúrias passadas. É a imposição do esquecimento na letra da Lei e na escrita da História. Nada pode ser investigado, lembrado ou castigado. É a anistia de todo o passado. É o vento da Ordem e do Progresso que impele o anjo de Paul Klee para o futuro. Nas palavras de Walter Benjamin:

Há um quadro de Klee que se chama AngelusNovus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226).

A reinvenção da história atlântica

Como superar essa escrita da história, fundamentada na ideia de dominação, no silenciamento e esquecimento? É importante aprofundar os diálogos com a história social, a história da África, a história indígena, a história oral e os antropólogos. Muitos estudos nessas áreas e subáreas mostram a importância de se ler as fontes escritas de uma nova forma e a necessidade de conhecermos e aprofundarmos a análise de outras fontes: orais, imagéticas, ritualísticas, gestuais e musicais. Nesses estudos o sentido da colonização se transforma. A ideia de colonização fundamentada nas ideias de colo – ocupação e cultivo da terra –, de cultus– culto dos antepassados e da fertilidade –, e de culturus – projeto e construção de uma sociedade nova, por meio da educação –, permite uma subversão radical da história, em que os africanos, indígenas e seus descendentes se tornam os principais agentes de nosso ser e de nosso devir histórico.

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