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12.04.2017

Escravidão indígena: nas sombras da História

Fernanda Sposito

Saindo das sombras

Muitas pessoas desconhecem a existência ou a importância da escravidão indígena ao longo da história do Brasil. O público em geral pode ter aprendido nas aulas de História que o índio não foi escravizado e, dentre os motivos para isso tenha ocorrido, pode ter ouvido explicações de que os povos indígenas eram preguiçosos, ou inaptos para o trabalho. Essa versão foi predominante até algumas décadas atrás. Desde a década de 1970, os estudos acadêmicos, nutrindo-se dos dados de antropólogos e etnólogos, vêm comprovando a importância presença indígena na história da colonização da América, dos quais a escravidão indígena é um tema da maior relevância. Assim, quem frequentou a escola nos anos mais recentes, talvez já tenha estudado a participação indígena no período colonial e na História do Brasil a partir do século XIX até os dias de hoje.

Apesar desses avanços no campo da historiografia, muitos intelectuais reputam os dados sobre a presença indígena na História (e dentro desse tema, a escravidão indígena) como um assunto de interesse menor, de impacto reduzido. Isso se deve a vários aspectos. Desde um preconceito do próprio historiador, fundado no eurocentrismo, até uma opção metodológica, que destaca a presença dos povos africanos no Brasil e a relevância da escravidão africana na constituição de nossa História. Essa visão deve-se ao aspecto fundante do escravismo africano para compreensão da sociedade brasileira, assim como o peso demográfico e cultural das populações africanas e afrodescendentes na História do Brasil.

Mão de obra indígena na América

No entanto, desde os contatos iniciais dos europeus com os povos da América, os cálculos a respeito do uso da mão de obra indígena, bem como a plena utilização do trabalho forçado dos ameríndios foram recursos exaustivamente utilizados. No caso da América espanhola, Cristóvão Colombo já partiu da Espanha investido pelo rei do poder de repartir, entre ele e os conquistadores que compunham sua frota, terras e gentes que encontrassem e dominassem no além-mar. Assim, o repartimientos de índios entre os conquistadores espanhóis começou já em 1492. No caso da América portuguesa, que se orientava por outras normas régias, as alianças e a submissão das populações indígenas foi fundamental para o sucesso da empresa colonial.

Já na famosa Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, escrita em 01/05/1500 e considerado o primeiro registro português sobre a existência das terras que viriam a ser chamadas de Brasil, o destaque dado às populações indígenas é notável. O cronista do reino avisou ao soberano que, como não era perceptível num primeiro momento a existência de grandes riquezas nestas terras, o grande benefício que havia aqui era a conversão dos gentios.

Liberdade indígena: um princípio com muitas exceções

O projeto dos reinos católicos de trazer “almas para a cristandade” precisa ser compreendido dentro de um duplo significado: a conversão ao catolicismo indicava um ganho no plano espiritual e também simbolizava o aumento do poder e da riqueza do reino católico que realizava a conversão. Assim, ainda que a pregação da palavra de Cristo aos povos possuísse um sentido religioso claro, essas expedições tinham obviamente um objetivo mercantil. Lucro e fé eram os dois lados da mesma moeda, usados um como justificativa do outro. Isso fica mais evidente na política das aldeias de índios, controladas pelos portugueses, que foi formulada pelo padre jesuíta Manoel da Nóbrega, na década de 1560.

Os jesuítas foram considerados no período – e até hoje muitos se fiam nessa ideia – como defensores dos índios. Decerto, havia uma disputa entre vários agentes coloniais sobre a melhor forma de subjugar os índios ao poderio do rei de Portugal, que se refletiu diretamente em disputas pelo acesso e exploração dos trabalhadores indígenas. Assim como ocorreu com o reino de Espanha, ambas sob o regime de Padroado Régio (investidura da Igreja Católica a esses reinos, que passaram a administrar os assuntos religiosos, inclusive com poder de nomeação e financiamento de cargos eclesiásticos, como padres e bispos, sendo responsáveis pela expansão da fé nos domínios coloniais), um longo debate envolvendo teólogos, juristas e homens de governo, acabando por definir o princípio de liberdade para os povos nativos da América, ao passo que os povos da África deveriam ser escravizados.

A Companhia de Jesus, uma ordem religiosa católica recém fundada, foi enviada ao Brasil junto com a armada que trouxe o primeiro governador-geral da colônia, Tomé de Souza, em 1549. A partir de então, os padres buscaram estabelecer contato com os índios, visando sua conversão ao catolicismo. As tentativas de conversão faziam-se através de expedições itinerantes, em que os padres circulavam pelas povoações indígenas e realizavam batismos em massa por entre aqueles grupos que se propunham viver sob um novo regime religioso. No entanto, os padres constaram que isso não resultou numa mudança de hábitos religiosos dos neófitos, nem significava a submissão dos índios aos padrões europeus e a um regime de trabalho sob controle dos portugueses. Diante desses desafios, foi formulada a citada política das aldeias de Nóbrega, que em linhas gerais pregava a submissão dos índios ao padrão europeu, trabalhando em aldeias, como nas vilas portuguesas, controladas pelos padres. Ali os índios, seriam isolados dos demais colonizadores, pois esses possuíam uma série de vícios e más intenções (segundo os padres). Mais objetivamente, os índios seriam disciplinados pelo trabalho ordenado e direcionados para as atividades coloniais, visando garantir os lucros da Coroa, segundo palavras do próprio Nóbrega. Essas aldeias coloniais costumam ser denominadas pela historiografia e pela documentação a partir do século XIX, também de aldeamentos, para que se distinga das aldeias indígenas originais.

Mesmo que, na letra da lei, isso significasse liberdade (ainda que seja a liberdade de ser obrigado ao trabalho), aos índios que se recusavam a viver nas aldeias coloniais, restava a guerra e a escravidão. Isso também foi preconizado por Manuel da Nóbrega e depois ficou explícito através da primeira lei sobre os índios no Brasil colônia, em carta régia de 20/03/1570. Na verdade, era uma lei que dizia que o índio era livre, mas abria vários pontos de exceção em que se garantia a legalidade de sua escravidão. Em linhas gerais, o índio podia ser escravizado se se colocasse como um obstáculo à expansão da fé católica e das atividades coloniais. Aqui agia o princípio da guerra justa, uma prática medieval, em que os soberanos católicos institucionalizavam a perseguição aos povos hereges, podendo poupar os inimigos da morte, caso capturados, com um regime de escravidão. Essa prática é reinventada no período moderno, na conquista da América, dando um fundamento jurídico à escravidão indígena, que estava condicionada à inimizade ou obstáculo à expansão do cristianismo. Assim, o índio que resistisse à colonização era escravizado ou morto.

Burlando as normas

Mesmo os que aceitassem se aliar, vivendo sob o jugo dos portugueses nas aldeias coloniais, a garantia dessa liberdade não era assegurada. Antônio Vieira, outro influente padre jesuíta, enquanto esteve buscando índios para conversão no interior da Amazônia na década de 1650 descreveu inúmeros eventos em que a palavra dada aos índios pelos portugueses foi traída. Milhares de índios foram trazidos da selva para as vilas coloniais com a promessa de liberdade, nos chamados descimentos, expedições compostas por padres e moradores, representando a Coroa portuguesa, cujo objetivo era “convencer” e que na prática significou muito mais “trazer à força” os índios mais distantes. No entanto, antes mesmo dos índios aos quais se prometia liberdade serem trazidos às vilas coloniais, os mesmos eram presos em ferros e escravizados pelos portugueses, que traíam os acordos previamente estabelecidos.

No Estado do Maranhão e Grão-Pará o recurso à escravidão indígena, inclusive contra lei, foi usado em larga escala durante todo o período colonial e até mesmo no século XIX, o que gerou uma série de revoltas no Brasil independente, como a Cabanagem, ocorrida entre 1835 e 1840. Outra região que se notabilizou pela escravidão indígena foi a capitania de São Vicente, especialmente na vila de São Paulo, entre os séculos XVI e XVII. Os habitantes dessa capitania esgotaram a população indígena originária através dos trabalhos exaustivos a que eram submetidos nas roças e serviços dos portugueses. Além disso, as guerras que se faziam contra os índios e as doenças com as quais involuntariamente os europeus os contaminavam, ajudaram a compor um dos maiores genocídios da História. Uma alternativa à falta de braços escravos em São Paulo resultou no bandeirismo, ou bandeirantismo. Esses personagens famosos da História do Brasil colônia, foram idealizados pelos alguns paulistas até os dias de hoje como “alargadores de fronteira”. Na verdade, as tropas bandeirantes eram expedições de guerra, composta por centenas de índios do tronco linguístico Tupi (algumas bandeiras chegaram a ter milhares de índios), cujos capitães eram membros da elite paulista. O objetivo fundamental das bandeiras era de captura de índios, especialmente visando os povos Guarani (também chamados de carijós, por conta dos grupos cários, que viveram na região de Assunção, no Paraguai). As bandeiras eram realizadas para os lados oeste e sul da capitania de São Vicente e visavam repor os escravos índios que já haviam sido extintos nas atividades coloniais paulistas. Assim, é necessário ler o bandeirismo no sentido contrário ao que costuma ser contado: como despovoadores de territórios, como disse John Manuel Monteiro. Na região das missões jesuítico-guaranis no Paraguai e Rio de Prata, por exemplo, os bandeirantes destruíram aldeias indígenas e vilas espanholas, despovoando e levando dali cerca de 50 mil índios para a capitania de São Vicente entre 1620 e 1650, conforme os dados analisados por Bartomeu Meliá.

Índios ou africanos?

De todo modo, é importante pontuar que nem todas as regiões utilizavam índios como escravos nas atividades coloniais. Embora os índios tenham predominado nos engenhos de açúcar de Pernambuco e Bahia até cerca de 1600, no início do século XVII, a proporção se inverteu. Os africanos escravizados passaram a ser maior parte dos trabalhadores empregados na lavoura de cana e na indústria do açúcar, ao passo que os índios se tornaram minoritários, segundo os estudos de Stuart Schwartz. Um dos elementos que Schwartz pontua como explicativos para essa troca de mão de obra, estaria na alegada, mas não comprovada, maior produtividade dos africanos, além da alta mortalidade indígena. No entanto, esses dados merecem ser relativizados, pois sabemos que o sucesso da escravidão africana deve ser analisado pari passu com o êxito e a lógica do tráfico negreiro. O comércio de africanos à América, inserindo o continente americano nas relações comerciais no Atlântico Sul, foi a concretização de um engenhoso projeto colonial, que permitiu inicialmente aos reinos de Portugal e Espanha controlar e obter dividendos no comércio da mão de obra, e ao mesmo tempo amarrar os continentes americano e africano à lógica de obtenção de lucro para os europeus.

Em números apresentados por Stuart Schwartz, na Bahia no início do século XVII, um escravo africano custava 25 mil réis, ao passo que o índio custava 9 mil réis, com exceção dos índios com funções especializadas, como ferreiros, marceneiros etc., cujos preços igualavam aos dos africanos. Essa realidade dos escravos especializados, que custavam mais caro do que os escravos recém chegados das matas ou da África, vale também para os escravos indígenas encontrados em São Paulo no século XVII, que chegavam a ser até mais caros do que os escravos africanos, segundo os inventários pesquisados por John Manuel Monteiro para essa região.

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