Se a História, segundo uma definição simples de Fernand Braudel, “é o estudo do homem no Tempo”, a reflexão sobre a escravidão terá como ponto de partida que essa “instituição” é uma das mais antigas da história humana, e ao mesmo tempoum problema do presente.O historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva, em seu livro A manilha e o libambo, recupera uma reflexão de Karl Jacoby sobre as origens da escravidão na história humana e a associa ao aprendizado da domesticação de animais no período Neolítico.
Com as necessidades de trabalho criadas pela invenção da agricultura, certos grupos passaram a aplicar aos prisioneiros de guerra, a fim de quebrar-lhes a vontade, os mesmos processos e os mesmos instrumentos que já usavam não só para controlar os animais, como o curral, a coleira, o cabresto, a peia, a chibata e a castração, mas também para distinguir a posse, como a marca a ferro ardente e o corte na orelha. (p. 79).
Costa e Silva propõe, em seguida, a inversão dessa hipótese: foi a experiência de escravizar pessoas que serviu de aprendizado à domesticação de animais, o que não deve excluir a possibilidade destes processos terem sido simultâneos em determinadas sociedades. Em suas palavras: “Se tiver sido como imagino, o homem pôs a corda no pescoço de outro homem e o fez trabalhar para ele muito antes de colocar um animal, exceto talvez o cão, a seu serviço.” (p. 79).
Demonstrada a antiguidade da escravidão na história humana, outro problema se coloca: a diversidade das formas assumidas pela escravidão no tempo, no espaço e entre diferentes sociedades humanas permite que utilizemos uma única palavra para defini-la? “Escravidão” é uma palavra e um conceito fraco: para conhecermos suas configurações específicas é necessário definirmos os contextos históricos e antropológicos de nossa análise.Nesta editoria, destaco a história da escravidão nas épocas moderna e contemporânea, no interior do que David Brion Davis denomina a “cultura ocidental”, ou seja, nos âmbitosde formação dos estados modernos e nacionais, de desenvolvimento das diferentes fases do capitalismo e dos ordenamentos globais euro-ocidentais, bem como das construções ideológicas associadas a esses processos históricos.
A escravidão no “longo século XVI”: a “conquista da América”, a formação do Atlântico e a invenção do Ocidente.
Para Fernand Braudel o “longo século XVI” teve início em meados do século XV e se estendeu até as primeiras décadas do XVII. Para a história da escravidão e do tráfico de escravos, podemos definir como marco inicial deste período a bula Romanus Pontifex, de 1455, expedido pelo papa Nicolau V, que dava direitos de jurisdiçãoe o monopólio do tráfico de escravos na Guiné aos reis portugueses. Para este período, observa-se uma transição da escravidão mediterrânea à escravidão atlântica, associada à uma política de complementaridade entre a colonização das Américas e o tráfico de escravos africanos, ponto de partida para a formação dos estados e dos impérios ultramarinos modernos, de um primeiro ordenamento eurocêntrico da Terra (Schmitt) e da economia-mundo mercantilista (Wallerstein). A ideologia escravista do período tem como fundamento o pensamento de teólogos e juristas cristãos, que se apropriaram de referências da Antiguidade e da Idade Média, principalmente de Aristóteles, do direito romano, dos pensadores da Igreja e de códigos jurídicos medievais.
Luzes e trevas: mutações da escravidão e do tráfico de escravos no século XVIII
O desenvolvimento da mineração no Brasil, a ampliação da concorrência entre as potencias europeias pelo controle do tráfico de escravos na África e a difusão de sistemas escravistas por toda a América, com destaque para o Norte e o Caribe, nos motiva a refletir sobre a especificidade dessa “instituição” no período. O ponto de chegada dessa reflexão será o paradoxo aparente entre a abolição da escravidão na Revolução haitiana e a restauração da mesma no tempo de Napoleão.
Nacionalismo, racismo e imperialismo: a reconfiguração da escravidão no século XIX
No “longo século XIX”, que vai do fim do XVIII até o pós 1ª Guerra Mundial,se estabelece um segundo período estrutural da história da escravidão no Ocidente.Caracterizado pelo desenvolvimento dos Estados-nação, do racismo pseudocientífico, do imperialismo, particularmente o britânico, e do capitalismo industrial, marcados pela sombra da escravidão que contradiz as ideologias do trabalho livre (Cooper) e da missão civilizatória europeias. Aqui, como nos períodos anteriores, é importante destacar a emergência de filosofias e políticas anticoloniais e antiescravistas elaboradas no Atlântico Negro (Gilroy).
À luz do percurso histórico traçado nesta editoria, pretendo fazer algumas reflexões sobre a escravidão contemporânea, dando atenção aos atuais fluxos migratórios no contexto da globalização.
Crédito da imagem: Detalhe de mural de Diego Rivera, Colonisation, The Great City of Tenochtitlan, detail from the mural, Pre-Hispanic and Colonial Mexico, 1945-52). Cortesia de: http://www.diego-rivera-foundation.org/