As imagens às quais atribuímos a carga de tratar de nosso escravismo parecem desempenhar papel central no jogo ideológico que sustenta seus desdobramentos contemporâneos a nós, principalmente por meio da manutenção da sensação de um afastamento do passado, “tempos idos” em que escravizávamos uns aos outros.
Esta editoria pretende ser um espaço de articulação de conteúdos para um estudo de aspectos dos modos da representação do escravismo no Brasil nas artes visuais e na literatura.
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18.07.2017
A contragosto: Machado de Assis por Mário de Andrade
Por Iuri Pereira
Por ocasião do centenário do nascimento de Machado de Assis, comemorado em 1939, Mário de Andrade escreveu três crônicas depois reunidas em Aspectos da literatura brasileira (1943). O que mais impressiona na releitura deste texto são as enormes reservas a Machado de Assis feitas por Mário, que nega ao grande narrador carioca quase tudo, mas mantém-se sempre como admirador de suas qualidades técnicas, que repulta magistrais. Mário de Andrade não nega desde o início que escreve a contragosto, como se atendesse ao dever de manifestar-se como grande escritor a respeito de Machado, mas não pudesse deixar de dizer coisas que desagradariam seu auditório, empenhado no entronamento do autor carioca como “nosso” escritor maior. Para Mário, Machado foi um prosador encastelado, cuja narrativa está repleta de referências concretas ao Rio de Janeiro, mas ressalva: “Me parece indiscutível que Machado de Assis, nos seus livros, não 'sentiu' o Rio de Janeiro, não nos deu o 'sentimento' da cidade, o seu caráter, a sua psicologia, o seu drama irreconciliável e pessoal”. Mário, que não se cansa de elogiar a perfeição técnica de Machado, acusa na mesma perfeição uma falta de audição das vozes e linguagens que eclodiam à volta do escritor carioca forjando um idioma que não se deixava mais descrever como o português lusitano, estragado que fora pela afluência de outros falares, acentos e até mesmo de tonalidades morais irrepreensíveis do temperamento dos trópicos. Enquanto Machado, alçado a escritor do Rio de Janeiro, teria deixado escapar o burburinho rico da cidade a borrar o castiço de sua prosódia, Mário encontra “muito mais Rio” e o “quid dos bairros, das classes, dos grupos” em prosadores como França Júnior, João do Rio e Lima Barreto (95). -
18.07.2017
Memórias afro-atlânticas
Por Kleber Amâncio
Há uma série de artistas contemporâneos que trabalham com aquilo que estou denominando de memórias afro-atlânticas: Moisés Patrício, Renata Felinto, Sidney Amaral (in memorian), Aline Motta, Ayrson Heraclito e muitos outros. Vou falar, aqui, contudo, partindo tão somente da obra de Rosana Paulino. Em Ama de leite estamos diante de um busto negro produzido em terracota, com três pares de seios. De cada um deles, e de seu umbigo, brotam fitas de cetim, nas seguintes cores: rosa, azul, vermelho, amarelo e branco. Sendo que o vermelho e o amarelo são bastante carregados com relação as outras tonalidades, mais diluídas e suaves. Essas fitas irrigam pequeninas bonecas que se espalham-se, desordenadamente, pelo chão. O contraste entre os materiais que compõe a obra metaforizam esse encontro, mais pesado e sentido para a ama-de-leite, que, paradoxalmente, se vê presa numa relação que se quer, publicamente, leve; a título de disfarçar a violência do ato, e esse busto não possui cabeça e membros, apenas a genitália coberta por pelos pubianos e os seios em abundancia, dissertando, dessa maneira, sobre a sexualidade exacerbada que é imputada às mulheres negras nessa sociedade. A recorrência do bordado é uma de suas marcas registradas. Ela costura, por exemplo, uma série de fotografias de família, e inclusive costura as suas respectivas bocas, representando o silenciamento a que são submetida frequentemente. A costura também volta na sua série Atlantico Vermelho, claramente inspirada nos escritos de Paul Gilroy. -
12.07.2017
Sobre sapatos, identidade e símbolos de liberdade
Por Selma Vital
O uso do turbante por mulheres brancas, um acessório historicamente associado à mulher de ascendência africana e às praticantes do Candomblé, repercutiu recentemente como um exemplo de apropriação cultural. A discussão fez levantar várias vozes, pró e contra essa leitura, mas também nos convida a refletir sobre a importância da vestimenta como símbolo de identidade. Ainda no processo de escrita deste artigo, leio notícia sobre uma escola particular da cidade de Itajaí, em Santa Catarina, que instruiu um grupo de estudantes do ensino fundamental a se ‘fantasiar’ como favelados para uma dramatização escolar. Aos olhos de quem indicou essa tarefa há uma representação estética reconhecível e tão facilmente associada a um morador de favela a ponto de se constituir num traje alegórico. No começo de junho de 2017, no famoso The Met, o Museu Metropolitano de Arte, em Nova York, a Google Culture and Arts lançou o projeto chamado We Wear Culture: the stories behind what we wear, uma plataforma digital que permite explorar o acervo de 180 museus de arte como o próprio Met, e de outras instituições culturais de mais de 40 países, incluindo participantes no Brasil, como o Museu Afro-Brasil, em São Paulo. As coleções disponíveis, ligadas à moda, ao estilo e a vestimentas típicas, representam não só parte da história da cultura de cada lugar, sociedade e período , - como sugere o título do evento - mas a própria evolução da moda ao longo do tempo. A ideia da exposição é permitir acesso a cada peça por meio de imagens em alta definição, com a opção de se ver os detalhes impossíveis de serem vistos em fotos de redes sociais e, em alguns casos, dependendo das restrições de cada instituição, mesmo numa visita ao vivo. Muito mais do que isso, porém, o evento amplifica questões aparentemente simples como a significância do uso de determinadas peças e o que representam em dados contextos e períodos históricos. -
21.06.2017
Lúcida cilada
Por Roberto Conduru
Abajures clareiam fortemente as áreas a eles contíguas, facilitando a realização de atividades que demandam condições excelentes de visibilidade, e difundem luz cálida para além, iluminando agradavelmente os ambientes. Abajur, a obra idealizada por Cildo Meireles inicialmente para a 2a Bienal de Joanesburgo, em 1997, mas apresentada pela primeira vez na 29a Bienal de São Paulo, em 2010, pretende ir na direção oposta a esta conjugação de funcionalidade e conforto. Partindo da tipologia de abajures com cúpulas giratórias, o artista constituiu uma instalação em dois pavimentos. De fora, o público nada vê do pavimento inferior, mas apenas entrevê, no alto, imagens em movimento compostas por mares, embarcações, nuvens e aves. Acedendo ao recinto superior por meio de uma escada, as pessoas podem se aproximar dos cilindros que projetam as paisagens marinhas. De cima, descobrem que também podem observar, no pavimento inferior, quatro homens girando a engrenagem que produz a energia necessária para iluminar e animar as cenas. -
19.06.2017
Machado de Assis: pele, roupa e os bancos indispensáveis
Por Carlos Pires
Em 2011, a Caixa Econômica Federal, em comemoração aos seus 150 anos de existência, apresentou um comercial colocando Machado de Assis, branco, como um assíduo poupador da instituição. O personagem, com efeito, diz: “Vim fazer o que faço todo mês, um depósito na caderneta de poupança”. No começo do anúncio é enfatizado, com um humor duvidoso, pela voz da narradora Glória Pires, que até os imortais se preocupam com o futuro – informação retirada na versão em que “escurecem” Machado de Assis em função das reclamações que o “embranquecimento” do escritor gerou na primeira versão. Esta nova versão começa com Aílton Graça, conhecido ator negro, como narrador dizendo: “Em respeito à história da Caixa e em respeito ao povo brasileiro, apresentamos Machado de Assis” e, curiosamente, ou sintomaticamente, começa a mesma narrativa do comercial anterior com a voz da antiga narradora, Glória Pires, com um ator negro - muito provavelmente mais escuro do que Machado de Assis, pelo que os registros fotográficos podem indicar. -
19.06.2017
Quase ainda; distâncias comuns a Machado e Debret
Por Gilberto Mariotti
Voltamos à segunda pista deixada por Alencastro em sua palestra no primeiro Seminário Contracondutas: o conto de Machado de Assis, “Pai contra mãe”. Alencastro coloca a narrativa como emblemática da fratura social que constitui a sociedade brasileira, instituída pelo escravismo. Em busca de trabalhos sobre o posicionamento de Machado quanto à escravidão, visto que o conto inicia com uma descrição de instrumentos de aprisionamento e tortura dos escravos, me chega que a própria postura de Machado quanto a isso é motivo de discussão por parte da produção teórica literária. -
24.04.2017
Folhagem e farsa: Relações Cordiais, o Brasil e seus reais extremos
Por Carlos Pires
Em 2005, Paulo Climachauska foi convidado para fazer uma exposição na maior loja de artigos de luxo de São Paulo, a Daslu, estabelecimento que abrigava dezenas de marcas sofisticadas nacionais e internacionais. A loja foi criada dentro do que hoje se chama marketing de oportunidade em 1958 pelas duas “Lus”, Lucia Piva de Albuquerque e a amiga Lourdes Aranha. Basicamenteconsistia na venda de produtos de alto padrão para um círculo de amigas de maneira caseira, ou era uma "boutique fechada" restrita a esse círculo social. O negócio manteve por muitos anos esse perfil e funcionou em um elegante bairro da cidade de São Paulo até ser assumido, com a morte deLucia Piva de Albuquerque na década de 1980, por sua filha Eliana Tranchesi. Com o aumento da movimentação, a loja começou a causar problemas com a prefeitura da cidade pois funcionava, funcionou por muito tempo de fato, em uma área da cidade que possuia restrição ao comércio. A “boutique fechada” manteve-se por décadas na ilegalidade no espaço ambivalente entre um negócio altamente lucrativo e um chá privado entre amigas – e provocava um imenso transtorno à vizinhança, além de impostos não pagos etc. A associação entre ilegalidade e alta lucratividade, como demonstra Sidney Chalhoub em seu excelente livro “A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista”, já era um traço constitutivo do país no século dezenove, visto que o tráfico dos africanos, proibido desde 1831, foi – proibido mesmo, com o perdão da repetição - um dos principais esteios econômicos do Brasil oitocentista. -
17.04.2017
Um Quase
Por Gilberto Mariotti
“Decididamente, a existência da escravidão impedia de vez qualquer tentativa de transpor com verdade a forma neoclássica para o Brasil” Rodrigo Naves Foi por conta do tal “quase”, da frase pinçada do texto de Alencastro, que tive de importunar Rodrigo Naves com uma entrevista, embora meu pretexto anunciado fosse Debret. Naves diz não se lembrar dos detalhes de sua primeira reação à foto mostrada por Alencastro, mas reiterou o poder de síntese de imagem, que considera de fato elucidativa. Enquanto esperava pelo reencontro com Naves, imagens de Debret que já haviam aparecido nas pesquisas iconográficas iniciais para o site Contracondutas voltavam agora trazidas por alguns colaboradores como ilustrações para as menções ao trabalho escravo em suas respectivas pesquisas. As aquarelas de Debret parecem ter assumido o papel de resposta automática ao tema da escravidão no Brasil. Habitam nossos livros de história já por hábito e muitas vezes de modo pouco crítico, aparentemente singelas e aquosas, como registros desinteressados de uma vida pregressa, de “tempos idos” em que aqui havia escravos. Tal postura displicente quanto à aplicação destas imagens não sobrevive ao primeiro parágrafo do ensaio de Naves, “Debret, o Neoclássico e a Escravidão”, que se inicia nos apontando– como ocorre em outros textos dele – o jogo intrincado de rebatimentos e contradições de que é feito o espaço no qual adentramos, e em que ainda nos encontramos em boa medida. “A menção [presente no título da aquarela, O primeiro impulso da virtude guerreira] ao ideário neoclássico não indica um ideal a ser alcançado, estabelecendo antes um contraste irônico. No Brasil” continua Naves, se referindo à Debret, “seria preciso encontrar uma forma que revelasse de maneira sutil uma realidade em tudo diversa da situação da França revolucionária. Idealidades formais não saberiam lidar com uma realidade totalmente estranha a seus pressupostos. É isso que essa aquarela resume a perfeição” -
20.03.2017
Apêndice
Por Gilberto Mariotti
Apêndice foi a legenda que me veio ao ver a foto. Aderindo involuntariamente ao procedimento utilizado por Barthes em seu Câmera Clara, como se fosse possível adicionar mais esta imagem à costura narrativa que confecciona os dois conceitos, Punctum e Studium, que se alternam e de certo modose complementam em seu livro. Studium, neste caso, como contexto amplo das situações várias que envolvem a escravidão, ou o escravismo,como faz questão de diferenciar Alencastro em seus seminários, abrangendo também o que nos escapa, ou o que, faltante, serve de esteio à cegueira necessária e suficiente para o jogo que dá manutenção ao escravismo. Um campo vasto que também implica em um certo gosto, um senso de beleza (como nas pretensas representações de trabalhadores explorados) que nos pede simpatia, compaixão, manipulando com ou sem classe o incômodo que se alterna à indiferença. E Punctum, esta pontuação: uma fisgada que marca. Barthes usa o termo furo, o que me leva a associar nossa relação com ele ao atravessamento, no jogo instaurado por esta imagem, que me provoca a zona do contato entre o ombro desta mulher que nos olha sem nos ver, e o rostopreciso do menino. O lugar de uma certa “intimidade” – como descreve Alencastro. -
06.03.2017
Escravismo, Imagem e Letra
Por Gilberto Mariotti
As imagens às quais atribuímos a carga de tratar de nosso escravismo parecem desempenhar papel central no jogo ideológico que sustenta seus desdobramentos contemporâneosa nós, principalmente por meio da manutenção da sensação de um afastamento de nossoo passado , “tempos idos” em que escravizávamos uns aos outros.