Em 2005, Paulo Climachauska foi convidado para fazer uma exposição na maior loja de artigos de luxo de São Paulo, a Daslu, estabelecimento que abrigava dezenas de marcas sofisticadas nacionais e internacionais. A loja foi criada dentro do que hoje se chama marketing de oportunidade em 1958 pelas duas “Lus”, Lucia Piva de Albuquerque e a amiga Lourdes Aranha. Basicamenteconsistia na venda de produtos de alto padrão para um círculo de amigas de maneira caseira, ou era uma “boutique fechada” restrita a esse círculo social. O negócio manteve por muitos anos esse perfil e funcionou em um elegante bairro da cidade de São Paulo até ser assumido, com a morte deLucia Piva de Albuquerque na década de 1980, por sua filha Eliana Tranchesi. Com o aumento da movimentação, a loja começou a causar problemas com a prefeitura da cidade pois funcionava, funcionou por muito tempo de fato, em uma área da cidade que possuia restrição ao comércio. A “boutique fechada” manteve-se por décadas na ilegalidade no espaço ambivalente entre um negócio altamente lucrativo e um chá privado entre amigas – e provocava um imenso transtorno à vizinhança, além de impostos não pagos etc. A associação entre ilegalidade e alta lucratividade, como demonstra Sidney Chalhoub em seu excelente livro “A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista”, já era um traço constitutivo do país no século dezenove, visto que o tráfico dos africanos, proibido desde 1831, foi – proibido mesmo, com o perdão da repetição – um dos principais esteios econômicos do Brasil oitocentista.
Em 2005 a loja resolveu, aproveitando a forte onda gerada pelo ciclo das commodities, montar uma mega loja de luxo para vender desde coisas miúdas até lanchas e helicópteros. E, para agregar mais sofisticação a esse acontecimento, resolveu realizar também exposições de artes plásticas.Nesse contexto, Paulo Climachauska foi chamado para expor. O artista, como é comum entre osprincipais artistas contemporâneos, sabe que a relação do próprio trabalho com o espaço em diversos níveis não é neutra, ou que o próprio trabalho é redimensionado e, muitas vezes, concebido nessa relação. Como comenta Tales Ab’Sáber:
Entre os artistas contemporâneos brasileiros talvez Paulo Climachauska fosse o único que pudesse aceitar um convite ambíguo e degradante dessa natureza, o único que poderia expor na Daslu – mercadoria, arte, fetichismo ou ideologia, ou tudo isso ao mesmo tempo, e ainda algo mais, o não previsto -, enfrentar tal realidade, de modo a operar e comentar explicitamente a natureza daquela ordem de poder, um dos poucos que poderia lidar com aquela ordem do mal concreto tão excessivamente real das coisas simbólicas do tempo, de modo aberto e verossímil. Sua obra circula pelo interior desse tipo de esfera rebaixada, mas eficaz, do poder real, não a elide ou sublima como parte da produção artística tende a fazer, como se toda essa ordem de poder concreto e grosseiro, determinante de grande parte do espaço da cultura hoje, não existisse. Esse outro modo de conceber a arte, oposto ao de Climachauska, gosta de se manter acima ou abaixo de tal poder concreto, de modo ingênuo ou cúmplice do próprio movimento do poder que se faz através dela.1
De fato, a dificuldade maior em uma situação desse tipo – e talvez em qualquer outra que um artista enfrente – é encarar um convite desse de “modo aberto” e contar com a inteligência para produzir algo verossímil e para o “não previsto”, para algo que escape, por um lado, da armadilha da sedução meramente comercial, ou de algo que só reverbere esse fetichismo, e, por outro, talvez o mais difícil, que não pare nessa superfície “social” em um julgamento primário, ou que de fato penetre nessa superfície e revele uma situação bem mais complexa do que nossos pré-juízos são capazes. Não existe, como se sabe, um lugar de pureza na arte, embora boa parte dos artistas acredite ocupar um lugar assim,enquanto, a outra parte, assuma a não pureza como natural, não como “real”. Todo artista tem conexão com esse “real”, que quando aparece sem nossas idealizações não é bonito de se ver, pelo menos não imediatamente.Aquele que o evita, por qualquer que seja o motivo, nem começa, patina em pressupostos, ou mal arranha essa superfície. Adorno quando discute em sua teoria estéticaa “méthexisna obscuridade” da arte, que nenhum artista escapa, comenta essa negociação, digamos assim, com o “real” que precisa se dar em termos particulares para não reproduzir simplesmente a abstração “real” da troca de mercadorias: a obra artística deve mesmo absorver o seu mais mortal inimigo, a permutabilidade; em vez de se evadir na concreção deve, através da própria concreção, representar o contexto total de abstração e resistir-lhe.
Paulo Climachauska ao ser convidado para a exposição se depara, segundo as palavras de Paulo Herkenhoff, “Em pleno século 21”, com “gravuras de Debret com escravos de ganho (que) assinalam na mais luxuosa loja de São Paulo as áreas dos funcionários: ‘Service’ e ‘Staff only’” e continua:
O edifício, um pastiche neoclassicista contém loja de bom desenho como a Prada. São as contradições da sociedade brasileira em seu extremo. Desde Debret, as relações de dominação mudaram? O que talvez espanta a Climachauska no projeto Relações cordiais é encontrar ainda a situação em que “a lei e a justiça não exitam em proclamar sua necessária dissimetria de classe”, como observa Michel Foucault. Sérgio Buarque de Holanda argumenta que os entraves para a constituição de um Estado moderno no Brasil estão na manutenção do patrimonialismo, do patriarcalismo e do ruralismo. Nesse contexto surge sua noção de homem cordial.2
Com efeito, em uma visita a esse espaço, Paulo Climachauskapercebeu que,no século XXI, as gravuras de Debret assinalavam as áreas restritas aos funcionários com um indefectível inglês, “Service” e “Staff only”, e percebeu que o trabalho precisaria acontecer assumindoe reverberando essa dissonância – e resistindo a ela. Paulo é historiador de formaçãoe familiarizado com os debates sobre o homem cordial, ideia desenvolvida inicialmente pelo historiador Sergio Buarque de Holanda, como assinala Herkenhoff. O espanto de ver esse confronto vivo e violento entre um Brasil arcaico e um “supermoderno”, ou de ultra-luxo, deu a responsabilidade de fazer um trabalho que de fato elaborasse, através da sua própria concreção, isso que era constitutivodaquele espaço. Daí surgiu, explicitando o que estava em jogo, “Relações cordiais”. Sabe-se que o confronto entre os nossos arcaísmos e o “ultra-moderno”, ou entre o nosso paternalismo e o capitalismo,alimentou e alimenta muitas, talvez as principais, obras brasileiras desde Machado de Assis, que, segundo o argumento de Roberto Schwartz em “Ao vencedor as batatas”, percebeu um problema de construção em José de Alencar que promovia duas, digamos assim, temporalidades distintas em seus romances e transformou esse problema em motor formal de suas produções literárias. Ou ainda antes, talvez, mas em chave um pouco distinta, na maneira como o próprio Debret precisou “amolecer” seu neoclassicismo e criar uma forma particular no confronto com a realidade brasileira, segundo Rodrigo Naves. De qualquer maneira, a narrativa, repetida até a idealização e o falseamento dessa história, é que o modernismo no seu anseio de revelar o Brasil transformou essas justaposições entre o país arcaico e moderno em princípio formal e isso se prolongou ao longo do século XX em diversos momentos como uma espécie de eterno retorno. Paulo Climachauska, no entanto, escapa dessa narrativa já um tanto neutralizada, que virou um bom filão comercial nas últimas décadas, e reposiciona esse problema do seu extremo, ou do ponto em que a fratura social brasileira é ainda completamente visível:
Curiosamente, a contradição não é apresentada em seus termos “óbvios”, ou com o preto e branco que carrega a caracterização racial. Ironicamente o preto se torna “marrom” e seu “negativo”, o que em uma lógica mais imediata seria um branco, um verdinho, quase um amarelo (ou vice-versa), que rebate a “natureza” tropical domesticada em vasos espalhada no ambienteultra-luxuoso da loja.
Esse rebatimento desse tom de verde na “vegetação” dos vasos traz a relação entre raças (e classes sociais), explícita na abstração do Debret no desenho que Climachauska faz com as contas que terminam em zero, para um contexto muito mais ácido onde tudo é “natureza”. Ou, explicando, a terra e a estrutura dos vasos, que suportam as folhagens, rebatem esse marrom que é mais imediatamente “racial”, ou é bem mais próximo ao tom de pele de parte da população “negra”e “parda” do que o preto, enquanto o “verdinho”, um tanto amarelado, remetem, no máximo, a uma pele doente, ou, ironicamente, a uma paz hospitalar, além de a uma natureza anêmica.
Os vasos na condição de cenário para a exposição se colocam em evidência. Curiosamente essa condição cenográfica traz a abstração social para o primeiro plano e coloca em evidência justamente aqueles que são denominados nos chaveiros da loja por Service ou Staff, os bens semoventes da loja em um diferente patamar jurídico dos africanos representados nos quadros. E, ainda, reverbera o que nossa tradição moderna teve de mais contundente e particular – e que provavelmente soa estranhoda perspectiva de uma arte moderna mais afirmativa:
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude3
As cores que compõem essa dualidade “positivo”\”negativo” estão também nas paredes com a cor “oposta” dos quadros que nelas são apoiados. A relação entre o que sustenta e o que é sustentado é rebatidanos vasos -além de nas relações sociais explícitas nos quadros -namaneira como os elementos marrons, terra, raiz e caule, e os verdes, folhagens, aparecem. Esse outroaspecto do componente cenográfico, ou essas cores das paredes, queimplicam todo o espaço nessa dualidade, explicitam ainda mais essa “fratura cordial” na medida em que ela aparece sem os “extremos”, ou sem o branco e preto.E, dessa maneira, o trabalho escapa da neutralização que o “branco” e o “preto” mais imediatamente racial, “racional” e clean provavelmente apresentariam e, de fato, desenha de maneira mais verossímil uma perversa situação “natural” permanente e extrema. Essa, digamos assim, diminuição dos contrastes, ou esse eterno polimento das arestas, dos conflitos,dos extremos, mecanismo central da nossa cordialidade, nosso remédio e veneno (ambos tóxicos de qualquer maneira),funciona como o princípio formal no trabalho de Paulo Climachauska que interessantemente explicita, ao assumir essa cordialidadeem diversos planos, o que de mais violento nossa “democracia racial” possui, não sem uma cruel ironia. O artista sabe como poucos “absorver o seu mais mortal inimigo”, “nosso”, ou brasileiro, no caso, e elaborá-lo nos terrenos mais perigosos que a de fato boa arte sempre trilhou.