Abajures clareiam fortemente as áreas a eles contíguas, facilitando a realização de atividades que demandam condições excelentes de visibilidade, e difundem luz cálida para além, iluminando agradavelmente os ambientes. Abajur, a obra idealizada por Cildo Meireles inicialmente para a 2a Bienal de Joanesburgo, em 1997, mas apresentada pela primeira vez na 29a Bienal de São Paulo, em 2010, pretende ir na direção oposta a esta conjugação de funcionalidade e conforto. Partindo da tipologia de abajures com cúpulas giratórias, o artista constituiu uma instalação em dois pavimentos. De fora, o público nada vê do pavimento inferior, mas apenas entrevê, no alto, imagens em movimento compostas por mares, embarcações, nuvens e aves. Acedendo ao recinto superior por meio de uma escada, as pessoas podem se aproximar dos cilindros que projetam as paisagens marinhas. De cima, descobrem que também podem observar, no pavimento inferior, quatro homens girando a engrenagem que produz a energia necessária para iluminar e animar as cenas.
A sensação de obsolescência não deriva apenas do francesismo usado para nomear a obra, ou das embarcações a vela. Também é antiquado o modo de geração de energia, capaz de transformar trabalho mecânico em movimento e luz. Contudo, a soma de referências pretéritas chama atenção justamente para a alienação contemporânea em meio a equipamentos e sistemas cujos elementos e processos desconhecemos ou desconsideramos. Quantas vezes não entramos em um cômodo e acionamos o controle de iluminação sem refletir sobre o trabalho necessário para que a energia chegue àquele recinto e nos facilite ali estar e ser? Pensamos em usinas eólicas, hidroelétricas, nucleares, termoelétricas? Lembramos de seus trabalhadores, construtores, inventores?
Do geral ao particular, Abajur traz à luz relações de causa e efeito, entre capital e trabalho. Faz pensar no esquecimento do corpo humano e seu labor, em pessoas invisivelmente subsumidas em objetos e imagens. E, portanto, nas condições de trabalho no mundo do espetáculo e no meio de arte. Embora o objeto do qual o artista partiu remeta à intimidade dos ambientes domésticos, a obra refere-se a tensões públicas, à exterioridade.
Artefatos humanos, as caravelas podem ser relacionadas à conquista e à colonização do continente nomeado como América pelos dominadores europeus. Embora não seja forçado o trabalho humano que dá vida à instalação, suas embarcações também evocam os navios negreiros, que transportavam pessoas de diferentes regiões africanas para serem escravizadas nas Américas entre os séculos XVI e XIX. O que traz à mente uma célebre passagem de Lúcio Costa em “Depoimento de um arquiteto carioca”, de 1951: “Se os casarões remanescentes do tempo antigo parecem inabitáveis devido ao desconforto, é porque o negro está ausente. Era ele que fazia a casa funcionar: havia negro para tudo – desde negrinhos sempre à mão para recados, até negra velha, babá. O negro era esgoto; era água corrente no quarto, quente e fria; era interruptor de luz e botão de campainha; o negro tapava goteira e subia vidraça pesada; era lavador automático; abanava que nem ventilador.”
Diferentemente dos abajures, utensílios subsidiários à leitura e, por extensão, ao pensamento, Abajur é em si mesmo um dispositivo de reflexão. Metaforicamente, põe a nu bastidores, meandros, entranhas, tanto do sistema de arte quanto do mundo. Levanta questões prementes, pretéritas e contemporâneas. Participando do debate sociopolítico, não deixa de ser uma obra de arte funcional. E, em certa medida, confortável, ao garantir uma dimensão crítica à arte, contornando os riscos do espetáculo alienante.
As cenas projetadas são plácidas, agradáveis, mas nada excepcionais. Apropriadas pelo artista, são quase pretextos, servindo para atrair as pessoas ao interior da instalação, de onde suas atenções são dirigidas aos homens em ação no pavimento inferior. O trabalho destes também não é extraordinário, mas, guardadas as proporções, é mais inusitado e atraente. Escondidos, os seres vivos vencem as imagens animadas na disputa pela atenção dos observadores, acendendo os encantos do voyeurismo e da ludicidade. Assim, Abajur funciona como uma armadilha que captura suas presas com pouco, quase o mínimo necessário, e aos poucos, as envolve mais e mais. Portanto, não é obra unicamente denunciatória nem reconfortante. Cativa as pessoas e as enreda em um jogo ambíguo, complexo, quase perverso. Força um posicionamento involuntário: estar na situação daqueles para quem se encena o espetáculo é causa de deleite ou incômodo? E mesmo essa possibilidade de autocrítica é contrabalançada pela sensação de inutilidade do jogo da arte, como de toda atividade lúdica: jogar por jogar. Da qual emerge um prazer algo erótico, outra dimensão crítica da arte.