“Decididamente, a existência da escravidão impedia de vez qualquer tentativa de transpor com verdade a forma neoclássica para o Brasil” Rodrigo Naves
Foi por conta do tal “quase”, da frase pinçada do texto de Alencastro, que tive de importunar Rodrigo Naves com uma entrevista, embora meu pretexto anunciado fosse Debret. Naves diz não se lembrar dos detalhes de sua primeira reação à foto mostrada por Alencastro, mas reiterou o poder de síntese de imagem, que considera de fato elucidativa. Enquanto esperava pelo reencontro com Naves, imagens de Debret que já haviam aparecido nas pesquisas iconográficas iniciais para o site Contracondutas voltavam agora trazidas por alguns colaboradores como ilustrações para as menções ao Trabalho escravo em suas respectivas pesquisas.
As aquarelas de Debret parecem ter assumido o papel de resposta automática ao tema da escravidão no Brasil. Habitam nossos livros de história já por hábito e muitas vezes de modo pouco crítico, aparentemente singelas e aquosas, como registros desinteressados de uma vida pregressa, de “tempos idos” em que aqui havia escravos. Tal postura displicente quanto à aplicação destas imagens não sobrevive ao primeiro parágrafo do ensaio de Naves, “Debret, o Neoclássico e a Escravidão”, que se inicia nos apontando– como ocorre em outros textos dele – o jogo intrincado de rebatimentos e contradições de que é feito o espaço no qual adentramos, e em que ainda nos encontramos em boa medida.
“A menção [presente no título da aquarela, O primeiro impulso da virtude guerreira] ao ideário neoclássico não indica um ideal a ser alcançado, estabelecendo antes um contraste irônico. No Brasil” continua Naves, se referindo à Debret, “seria preciso encontrar uma forma que revelasse de maneira sutil uma realidade em tudo diversa da situação da França revolucionária. Idealidades formais não saberiam lidar com uma realidade totalmente estranha a seus pressupostos. É isso que essa aquarela resume a perfeição”
Antes deste, Naves já havia escrito os demais ensaios que compõem “A Forma Difícil”– estudos sobre artistas referenciais para a produção artística brasileira –, e realizado a problematização de suas obras por este fio condutor, o vislumbre de uma certa “dificuldade da forma”, que perpassaria boa parte da produção artística brasileira. O ensaio sobre Debret é o único que cita referências seguindo o regramento acadêmico, ou como diz naves, “como manda o figurino”, como se ali fosse possível verificar a tese que se desenha por todo o livro. Para Naves,como se lê em prefácio para o livro, “Debret caiu do céu”para uma análise atenta às relações entre a produção de arte e as relações sociais, a partir da percepção, também disparada pela interlocução com Alencastro e outros, do papel exercido pela condição de ganho a que estavam submetidos os escravos retratados por Debret em suas aquarelas e desenhos:
“ Alugados a terceiros ou realizando tarefas por jornadas para seus senhores, os negros tinham a praça pública como seu ambiente de trabalho. […] Incumbidos por seus donos de uma enorme variedade de tarefas, esses negros de ganho precisavam em geral prestar conta de seu trabalho apenas ao fim do dia, quando deveriam entregar-lhes uma soma preestabelecida. […] Dispensados de prestar satisfação de seus passos, moviam-se pela cidade atrás de serviço e de fregueses.”
Esta particularidade, no Rio de janeiro, da dinâmica entre o espaço urbano e os negros de ganho, aponta para uma identidade própria das relaçõesentre senhores e escravos e oferece uma chave de interpretação do trabalho de Debret que afasta a leitura complacente destas cenas:
“Quem percorresse estas ilustrações distraidamente, desconhecendo as particularidades da sociedade brasileira, provavelmente deixaria de notar, numa primeira vista, o peso do escravismo. Sem dúvida, várias figuras logo o fariam lembrar em que sistema estávamos. As correntes, as máscaras de metal, os colares de ferro e as cenas de punição rapidamente o trariam de volta a realidade do cativeiro. Mas aquela impressão de movimento e vivacidade tinha sua cota de verdade. A convivência entre trabalho servil e um certo desembaraço no trato marcava a cidade do Rio de Janeiro. A conquista dos fregueses, a combinação de negócio e sedução levava repetidamente a uma suspensão momentânea do caráter compulsório do trabalho, tingindo-o de denguices. A necessidade de obter uma soma ao final do dia – cuja falta era paga com pancada – forçava homens e mulheres a um comportamento dúbio, mescla de espontaneidade e cálculo. A perspectiva do castigo, unida a uma atividade com forte apelo pessoal – a venda de quitutes, refrescos e frutas, a oferta de serviços em que simpatia e aparência individual desempenhavam o seu papel -, conduzia os escravos a atitudes forçosamente capciosas.”
Tal dubiedade, modo contradito de nosso funcionamento social, é apagada pela leitura que quer sobrepor umde seus lados, o da graça, ao todo, exaltando a malemolência como valor nacional, presente em muito de nosso próprio imaginário auto construto denação. Um retrato que poderia atestar a pretensa cordialidade de nosso povo, convenientemente empurrando contradições e tensões constitutivas destas cenas para um campo de idealização.
Uma das reportagens que integra a série escrita por Sabrina Duran,, se serve das imagens de “O carregador de telhas” e “Os serradores de madeira”. Nestas se encontram cenas de trabalho braçal inequívoco. Naves comenta as duas aquarelas em particular, apontando o uso e manejo de massas de cor e sombra que atenuariam ou evitariam soluções em que estes corpos que trabalham pudessem desempenhar o papel de atuantes ou protagonistas. O carregador de telhas compete de maneira particular com o horizonte de uma paisagem – neste momento umacategoria pictórica recorrente -, dela emergindo como em um crescendo, uma vitória a um só tempo do personagem e da composição sobre o peso.
Uma das aquarelas que a meu ver é das mais eloquentes sobre as contradições evidenciadas aqui é “Oficial da corte chegando no palácio, 1822”, a começar pelo título que, a exemplo da análise que inaugura o ensaio de Naves, promete a neutralidade de uma descrição que é desmentida logo a seguir peloposicionamento da figura central – não a do oficial, como seria de se esperar, mas a de sua escrava, que carrega atrás dele as armas que lhe outorgam simbolicamente autoridade. Como ocorre com seu similar cuja presençafica apenas insinuada à direita da imagem. Ele carrega apenas a sombrinha que parece ter lhe atenuado o esforço exigido pelo caminho. Lança, chapéu e florete, em seu corpo comunicam sua posição social. Nas costas da mulher que o segue, um fardo apenas, e ele a liberará deste encargo assim que render seu colega. O caráter cenográfico do poder instituído no país, enfrentado por Debret como problema formal, no sentido de um evidente descompasso entre forma e conteúdo no campo estético-político, é trabalhado aqui, num jogo mais exposto de representação, visto quea rua, espaço público à vista de todos, faz o papel de bastidor do palácio. Alegenda no livro de Naves informa que o desenho não foi utilizado no livro de Debret.
Então não seria também a condição de ganho, que obviamente se aplicava de modo muito diverso aos escravos, o contorno que define a função exercida pelo próprio Debret neste momento? Seria pertinente entendê-lo como uma figura que anuncie a do artista viajante contemporâneo, internacional? Naves rejeita esta associação: “Internacional não. Estava perdido entre dois mundos e só existe para nós”.Para Naves, Debret foi o único artista, dentre os viajantes da chamada missão francesa, que pôs sua concepção de arte em xeque. Reitera também que nossos artistas do período colonial eram negros em sua maioria, ligados a uma tradição artesanal. Um outro grupo deartistas brancos passaa existir para nós a partir da fundação da Escola Nacional de Belas Artes, parte de um processo, diga-se, claramente civilizatório.
Mas ao reorganizar as associações que fiz ao longo da conversa recoloco minha hipótese: o livro “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, um relato de viagem produzido por Debret, que contém as gravuras produzidas a partir dasaquarelas feitas em sua estadia de quase dezesseis anos no país, carrega talvez algo desta competência do seduzir, de uma narrativa que joga com o modo pelo qual o outro, europeu, pretende ver nossa sociedade, ao mesmo tempo em que oferece a novidade de um olhar de convivência íntima. Vendia, portanto, uma imagem do Brasil que dependia também da imagem do próprio Debret enquanto artista. Esta posição que o obriga a, sob sua conta e risco, elaborar um produto que contenha uma certa visão de estrangeiro não o aproximaria da condição de empreendedor de si em que estão alocados os artistas de hoje? Este artista que, “perdido entre dois mundos” e apartado já da condição de apadrinhado oficial que antes lhe dava certa garantia, vive do que vende e não apenas do que produz, e do qual o próprio sucesso depende de sua competência em manter certa familiaridade distanciada com seus compradores- mas sem denotar total pertencimento de classe, embora haja também o desejo por parte do comprador de se sentir parte do circuito por meio da compreensão que é capaz de ter do que coleciona, sendo o adquirir já um estágio para esta compreensão -, não o liga enquanto personagem a uma forma de trabalho que depois se sistematiza e vulgariza? Acima de tudo, o que me parece comum a vários outros personagens que fomos recuperando como exemplos ao logo da entrevista, entre críticos e artistas, é que,por maior que seja o talento, estiveram continuamente sujeitos à pauperização iminente, visto que não há rede de proteção costurada nem pelo Estado, nem por instituições que lhe deem suporte, tampouco por um mercado estruturado.
Naves reage à esta descrição com uma sentença: “Neste sentido este país mudou muito pouco”.
Após a conversa com Naves, a reflexão proposta por Alencastro no final de “A pena e o pincel”, ensaio que compõe edição de “Rio de Janeiro cidade mestiça” (no qual aliás ele menciona também a preocupação estratégica quanto às boas relações sociais de Debret em nome das necessidades de sua pesquisa), ganhou para mim novo sentido:
“Na medida em que alguns destes impasses [da sociedade brasileira nascente] permanecem até hoje, Debret merece ser considerado como um artista perfeitamente integrado ao destino do Brasil contemporâneo. Como um pintor brasileiro”.
Referências bibliográficas:
NAVES, R. A Forma Difíicil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo, Cia das Letras, 2011.
DEBRET, J.B. (ilustrações e comentários) Alencastro L.F. (et al.), Rio de Janeiro, cidade mestiça: nascimento da imagem de uma nação. São Paulo, Cia das Letras, 2001