Revisão de texto: Renata Mara Kormoczi Melles
Falar de regularização fundiária urbana e rural no Brasil é tratar de um tema que ainda hoje assombra o país, gerado pela complexa formação das posses da terra que produziu as mais diversas formas de conflito e violência. Quando se fala em regularizar, está se tratando de justiça social. O proprietário de um pedaço de chão, seja no campo ou na cidade, quer viver em paz, produzir e morar com segurança, amparado pela certeza de que com o passar do tempo não será prejudicado por uma legislação mutante, sujeita às vontades circunstanciais de quem quer que seja.
Com esse espírito, foi concebida a MP nº 759, de 22/12/2016, ela ampliou o espectro ao avançar para um novo marco legal de regularização urbana e rural, fundado na liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária, na regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, na instituição de mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União, na instituição da legitimação fundiária e do direito de laje e ainda em normas de interesse do registro eletrônico de imóveis no país.
O município é um dos polos principais desse escopo, o ente federativo que concentra a dimensão micro do problema em seu aspecto urbano. Nele está a primeira linha de atuação do poder público e a mais próxima fronteira a ser transposta no que diz respeito aos desafios desse novo marco legal. Quando se trata de regularização fundiária no âmbito urbano, a densidade da demanda implica tratar o assunto levando-se em conta múltiplos fatores, entre eles, as questões ambientais, a infraestrutura essencial, situações de risco, ordenação territorial, economia local e a desigualdade interbairros. Ou seja: o que se aplica a uma determinada região pode ser totalmente inviável em outra.
Entrelaçar esses fatores e buscar uma síntese é o grande desafio da formulação de iniciativas para se enfrentar o problema. O ponto de partida é o pleno conhecimento da nova legislação, identificando suas nuances para que elas possam ser adaptadas a cada realidade. Nesse hiato entre o que é claramente definido e o que venha a ser interpretado como premissa está o que se pode chamar de incremento do marco legal. Sem ultrapassar suas fronteiras, cabe ao operador da legislação garimpar possibilidades e preencher as lacunas que porventura possam surgir. Cumpre esse papel, essencialmente, a interação dos representantes legais com os demandantes.
Traduzir essa complexidade da legislação de forma mais transparente e objetiva aos seus beneficiários é mais de meio caminho andando para a sua aplicação com sucesso. Com a consciência de que esse marco legal é um passo importante para se avançar na equação do problema fica bem mais fácil superar os desafios. Temas intrincados como exigências relativas ao percentual e às dimensões de áreas destinadas ao uso público, tamanho dos lotes regularizados, parâmetros urbanísticos e edilícios, questões ambientais, e ainda, direito real de laje, condomínio urbano simples, são de difícil compreensão e até para especialistas ainda pouco familiarizados com as novas regras, além de serem temas polêmicos.
A realidade da imensa maioria dos munícipes faz desse novo marco legal gênero de primeira necessidade. Afinal, temos áreas que ocupam espaços majoritários, no conjunto urbano do país, pessimamente servidas de infraestrutura em grande medida por déficits regulatórios. Mesmo melhorias e benfeitorias no imóvel são tolhidas, muitas vezes, por ausência da regularização urbana, com impacto na qualidade de vida dos moradores. Além dessas notórias limitações, existem as consequências de se possuir um imóvel à margem do mercado formal, naturalmente desvalorizado.
Não há justificativas para se adiar a necessária presença do poder público nesse vazio legal que se formou com a indiferença secular no socorro a essa demanda tão essencial. As informações existentes, embora precárias, dão conta de que a irregularidade urbana no Brasil ultrapassa alarmantes cinquenta por cento das propriedades. Romper as amarras que impedem uma condução para se chegar a bom termo, exige, inexoravelmente, encontrar meios que coadunam o emaranhado de leis que determinam regras para locais sensíveis, como área de preservação permanente ou de proteção de mananciais, com a condição social e econômica dos moradores. Essa é uma pendência que ainda suscita polêmicas decorrentes da diversidade de olhares sobre a questão, mas que precisa, com sentido de urgência, de um denominador comum. O ponto de vista que advoga o macro precisa de uma convergência com a concretude da dimensão micro da demanda.
Óbvio que para a plena solução do problema precisa-se avançar muito mais do que o estabelecido nesse novo marco regulatório. Pode-se dizer que estamos apenas dando os primeiros passos, apesar de termos avançado muito com o advento da lei 11.977/09. Mas o determinante é que com ele abrem-se horizontes, descortinam-se perspectivas e renovam-se as esperança de que a cidadania seja mais do que uma mera proclamação. Alterar esse quadro de precariedade, caminhando na direção da urbanidade no seu sentido civilizatório, é sempre um desafio que traz como recompensa o prêmio de uma sociedade com cidadania efetiva, e não como um caricato ponto de educação moral e cívica, melhorando a qualidade de vida de todos. Ter essa dimensão do marco legal agora instituído é fundamental para não esquecermos que ainda temos uma longa caminhada pela frente.
É nosso papel como operadores do direito, como urbanistas e ativistas da regularização fundiária, assumir a linha de frente dessa tarefa. O poder público precisa estar engajado e ser responsável pelo cumprimento de suas tarefas. Impõe-se a concertação de uma convicção que se traduza em ações concretas para que esse início de caminhada não se desvie no próximo obstáculo. Será da nossa participação determinada que florescerá esse engajamento.
Ainda temos uma tendência indomada à proliferação de irregularidades nesse terreno, resultado do nosso histórico de injustiças no campo do direito fundiário, uma gigantesca barreira a um necessário ciclo virtuoso que assegure a todos os brasileiros condições satisfatórias de vida. Essa condução tímida das soluções do problema, contudo, pode estar se invertendo com esse novo marco legal. Não está fora de propósito considerar que há um despertar para o conceito de cidadania universal, consagrado na nossa Constituição, como insumo presente no cotidiano do conjunto da sociedade, garantindo a todos o direito à saúde, à educação, à segurança pública, ao transporte, ao emprego, à terra e, principalmente, à moradia. Numa síntese: o direito à cidadania.
Não se pode ignorar os obstáculos que uma caminhada como essa tem pela frente. Vimos as dificuldades que essa legislação enfrentou e a estreiteza da margem de atuação para o operador do direito fundiário ou mesmo o interessado na causa por ser sua parte constitutiva. Não foram poucas as tentativas de criar dificuldades para limitar seu âmbito e restringir seu alcance. O legislador muitas vezes não tem a visão do todo e acaba atuando sob o manto da conformidade, evitando contrariar interesses ou fazendo o papel de representante de determinados círculos de conveniências. O Congresso Nacional ainda é, em grande medida, impermeável aos apelos que ecoam dos recantos socialmente menos favorecidos.
Mas basta esticar a vista para os rincões sociologicamente mais distantes dos epicentros do poder público para se ver o quanto de benefícios emanam de iniciativas como essas contidas na MP nº 759. Se aplicada com rigor, obedecendo aos preceitos que só podem ser estabelecidos com o garimpo das possibilidades onde houver vazio legal, certamente o Brasil dará um enorme salto de qualidade na sua regularização fundiária.
A sanção presidencial desse novo marco legal “ o projeto de conversão nº 12, da MP 759”, pode revolucionar a vida de mais da metade da população urbana do país. Isso não é pouca coisa. Talvez ainda não temos a dimensão dos efeitos que uma medida como essa representa em termos de melhorias das condições de vida dessa população.
São pressupostos que dependem de outras condicionalidades, obviamente. De nada adiante termos um papel que, com todas as limitações, representa um marco legal avançado sem corações e mentes voltados para a sua realização. No mundo das realidades, temos de levar em conta a situação de muitos municípios sem condições materiais para cumprir sequer o mínimo do que estabelece a legislação. Falta até o básico, o que dirá ter uma equipe técnica capacitada para implementar a regularização fundiária e responder por questões ambientais, temas geralmente de alta complexidade.
Não é fácil encontrar um ponto de amarração nessa multiplicidade de visões e de adversidades. Mas, a julgar pelos avanços recentes, é aceitável a conclusão de que há um esforço para não se ignorar a gravidade do problema. Esse novo marco legal, com todas as suas debilidades, tem como principal mérito mostrar uma imagem real do universo fundiário brasileiro. Colocada dentro de um realismo assustadoramente áspero, que não prescinde de uma universalidade de conhecimentos para bem interpretar os fenômenos históricos e entender a crueza do presente, essa legislação nos dá um exemplo magnífico de iniciativas sobre um assunto que não pode mais ser ignorado.