O Counter-Cartographies Collective (3Cs) é um coletivo formado em 2005 por estudantes da Universidade da Carolina do Norte (UNC), localizada na cidade de Chapel Hill. Logo de início, o 3Cs procurou questionar os limites e divisões entre ativismo e pesquisa acadêmica. Inspirados pela noção de “investigação militante” realizadas por movimentos autônomos na Europa, o 3Cs empenhou-se em mapear as condições de trabalho, relações sociais e economias inseridas no contexto universitário da UNC, compartilhando publicamente novos imaginários para as lutas sociais.
A entrevista a seguir foi realizada por e-mail por André Mesquita em fevereiro de 2012, como parte de sua pesquisa para a tese de doutorado em história social, Mapas dissidentes: proposições sobre um mundo em crise (1960-2010). A versão em livro da tese está sendo preparada e será publicada em breve.
Querido André,
Temos pensado em suas perguntas e nos ocorreu fazer a seguinte proposta. Acabamos de voltar de uma visita familiar em Nova York, onde tivemos a oportunidade de encontrar outros membros do 3Cs e fazer uma “expedição urbana” por Occupy Wall Street e espaços públicos para crianças. Foi muito divertido. Depois de conversarmos entre si, e também na nova fase em que o 3Cs está, nos pareceu que sua entrevista, agora mais do que nunca, tem que ser coletiva. Achamos que assim será mais rica, polifônica e, sobretudo, pensamos que isso nos pode ajudar como um coletivo, num momento em que estamos tão separados uns dos outros. É difícil encontrar espaços para a autorreflexão em comum e a sua entrevista é uma ferramenta fantástica para isso. Atualmente, o 3Cs está trabalhando como uma rede descentralizada. Cada um dos participantes está em diferentes lugares: Chapel Hill, Durham, Nova York, Buenos Aires, Zaragoza, e Itália-Fujian. Cada um contribuiu com as respostas a partir de diferentes ângulos.
Parece-me que as atividades do Counter-Cartographies Collective (3Cs), em trabalhar investigando a precariedade e a noção de universidade como “fábrica de conhecimento”, trazem novas possibilidades de mapear o capitalismo neoliberal e a produção de novas geografias, levantando ainda uma série de reflexões sobre o tema das fronteiras. As práticas de mapeamento do 3Cs conseguiram intervir criticamente nos contextos em que o grupo atua, precisamente na Universidade da Carolina do Norte (UNC), mas também na região do “Triângulo de Pesquisa” em Durham/Raleigh/Chapel Hill, onde vocês estavam baseados?
Um dos mais importantes princípios cartográficos que inspiram a nossa compreensão sobre mapeamentos é aquele que diz que “mapas produzem e, mesmo precedem, o território”. Dentro dessa abordagem, nossos mapas têm uma forte ênfase em mudar as nossas noções de universidade como um território. Naquele contexto (Estados Unidos, Carolina do Norte, etc), a universidade era/é percebida – por assim dizer – como uma ilha rodeada por água, sem interação com o mundo de fora, como um espaço isolado. Isso chegou a tal ponto que não era difícil ouvir as pessoas dizendo frases como “quando eu voltar para o mundo real…”, “se eu conseguir um emprego no mundo real…”, como se houvesse uma separação entre a “realidade” e os problemas sociais reais e a “universidade”. Claro, isso está ainda mais acentuado com as “cidades universitárias”, que são uma forma muito comum de urbanismo do ensino superior nos Estados Unidos.
Com os nossos mapas, queremos produzir um território onde apareçam as conexões da universidade com outros espaços. Por exemplo, o nosso primeiro mapa DisOrientation Guide reivindica e afirma que a “UNC é uma fábrica… um corpo em funcionamento… produzindo o seu mundo”. Duas maneiras de complicar o espaço da “universidade como uma ilha” foram através das realidades de fábrica e fronteira, dois aspectos que você mencionou inicialmente:
Universidade como fábrica: Veja o DisOrientation Guide (DG) de números 1 e 2. Um mapa do DG1 mostra o número de pesquisadores na região do Triângulo de Pesquisa – uma incrível quantidade de pessoas empregadas e o quanto elas são relevantes para as economias locais e estaduais. O maior número é empregado pelos laboratórios de pesquisa corporativos, sendo muitos deles graduados pelas universidades do Triângulo.
Um outro mapa representa o número de universidades na região, mostrando como em um raio de cerca de 80km da UNC existem dezenas de instituições de educação superior, a maioria delas com um corpo formado por milhares de estudantes (isso sem incluir o pessoal docente e administrativo). Assim, se a universidade não é um lugar real então há um grande número de pessoas vivendo na não-realidade da Carolina do Norte, ou as nossas definições de universidade e de realidade estão totalmente erradas.
Um pequeno dado que usamos para destacar este tema relacionado à fábrica foi numérico. No setor privado da Carolina do Norte, os três maiores empregadores (em termos de número de empregados) são: 1) Walmart; 2) Food Lion (a maior cadeia de supermercados do Estado); e a Universidade Duke (isso na época em que fizemos o mapa, em 2006). Essa tendência se repete em outros estados. Por exemplo, os três maiores empregadores privados do Estado de Maryland em 2006 foram Walmart, Northrop Grumman (indústria de armas) e Universidade John Hopkins. Além disso, há um mapa no DG1 sobre a “precariedade no campus”, que conceitua a universidade como um local relacionado a questões de trabalho, classe e acesso a serviços públicos. Seus ícones sugerem uma variedade de trabalhadores no campus, desde trabalhadores do conhecimento, até operários e alunos.
Universidade como fronteira: Veja o DG2 e o mapa da Queen Mary, que vão contra os pressupostos de que a universidade não está relacionada a questões de migração, exceto tangencialmente… O 3Cs fez um esforço para ligar essas duas áreas aparentemente não relacionadas. No começo, essa associação não parecia tão aparente, mas, aos poucos, o 3Cs começou a encontrar possíveis conexões. Novos relatórios podem estar focados na fronteira dos Estados Unidos com o México, ou nos ataques dos agentes federais, mas universidades como a UNC são pontos importantes para a geração de vistos e policiamento de movimentos migrantes internacionais. Desde 2011, estudantes internacionais têm enfrentado uma intensa burocracia do Departamento de Segurança Interna. O Triângulo de Pesquisa e suas universidades atraem gente do mundo todo. Estudantes, acadêmicos, trabalhadores técnicos, trabalhadores do setor de serviços e pessoal doméstico ajudam a tornar a UNC, a IBM e outras instituições locais mais competitivas e lucrativas.
O DG2 tenta mostrar visualmente dois aspectos da mobilidade internacional cada vez mais vinculados às instituições de ensino superior:
a) Fluxos estudantis transnacionais no sugestivo mapa Students: Global Migrants, que diz que “em 2007 havia mais de dois milhões e meio de pessoas matriculadas nos programas de ensino superior fora de seu país de origem.”
b) Outras operações nas fronteiras, como questões de visto e status de trabalho, foram abordadas em um diagrama do itinerário legal de um estudante internacional na seção do mapa Navigating Borders at UNC… and the Migrant Research Triangle. Ele também inclui um mapa da região com os números e tipos de vistos dados pelos empregadores da região do Triângulo.
O mapa da Queen Mary é sobre imigração, trabalho, mobilidade internacional, precariedade… Este mapa é apenas uma das experiências que até agora temos em ligar criticamente as transformações da universidade com questões de migração. Seria importante levar para uma discussão posterior as recentes representações das fronteiras em nossos mapas. Seria interessante também prestar atenção nas diferentes estratégias visuais e gráficas que o 3Cs tem desenvolvido para representar fronteiras de maneiras não convencionais, desde diagramas de itinerários de vistos no DG2 até linhas pontilhadas que derivam em um território mítico deste mapa.
Sobre intervenções locais. Primeiro, vamos assumir que todas as nossas tentativas de intervir e mapear os territórios do Triângulo são feitas com muita esperança, mas também com muita humildade no sentido de que a intervenção pode ser significativa, mas também pode ser muito pequena em termos de agregação social. Nossas intervenções trabalharam localmente e regionalmente em vários níveis:
a) Para reinscrever a compreensão da universidade como um local isolado (em uma rede e protagonista de muitos processos sociais e econômicos), e como um local de lutas sociais múltiplas. Mesmo que muitas delas sejam politicamente “inexploradas”, isso pode até mesmo estendê-las para desafiar a geografia regional dominante do Triângulo, questionando se o roteiro geográfico daquela região alimenta uma outra coisa que não seja a apropriação corporativa das universidades regionais e dos administradores universitários nesse estágio de “economia do conhecimento”.
b) Para introduzir práticas de mapeamento, bem como uma rede de práticas espaciais críticas para reformular nossa compreensão do território, sobre como lutamos nele e como queremos mudá-lo. Inicialmente havia um objetivo de propagar um método de investigação militante. Depois, houve o intuito de desenvolver e divulgar material, pesquisa e informação sobre um tópico particular – a universidade e o seu o papel na economia do conhecimento.
O 3Cs foi auxiliado pela coordenação de grandes “convergências cartográficas” que tentaram reunir e enredar diferentes esforços em subverter, apropriar ou mapear criticamente os espaços da área do Triângulo. Em 2006 e 2008, essas convergências reuniram grupos como o nosso, projetos de arte pública, iniciativas de organização anarquista e outros em torno desses temas. Isso foi útil para reimaginar práticas subversivas na região.
De maneira mais ampla, parece que os mapeamentos como uma ferramenta e como uma ideia de intervenção ganharam força. As ferramentas do 3Cs têm sido solicitadas por uma variedade de iniciativas e projetos. Um de nossos membros produz mapas para organizações comunitárias. O 3Cs teve um papel na propagação da ideia de contracartografia como ferramenta para ressituar nossas lutas e entendimentos sobre os territórios que habitamos. Acreditamos que pessoas e grupos entendem isso de forma diferente. Alguns querem apenas um mapa com “um ponto de vista”, outros enxergam essa prática de maneira mais ampla. O grupo tem co-organizado oficinas de mapeamentos críticos com bastante apoio popular, especialmente por grupos que lutam contra a gentrificação no norte de Chapel Hill.
Como conciliar teoria e ação nas práticas de mapeamento?
Práticas de mapeamento levam tanto à teoria como à ação das seguintes maneiras:
a) Mapas são ferramentas analíticas/conceituais. Permitem compreender uma determinada realidade.
b) Preveem alvos ou focos, itinerários e caminhos… que levarão a algum lugar.
c) Provoca novas maneiras de pensar. Pode quebrar suposições e permitem desenvolver ações de acordo com esses novos entendimentos.
Os mapas do 3Cs podem também ser considerados arquivos de memórias e histórias das lutas desses movimentos sociais locais?
Supomos que os mapas podem ser considerados arquivos no sentido de que existe uma documentação de nossa compreensão das lutas que estamos enfrentando. O que temos é, talvez, uma falta de documentação de nossa própria autocrítica em construir isso. O foco do nosso trabalho local tem sido, pelo menos, introduzir a noção de investigação militante na compreensão das lutas que enfrentamos, ao invés de um entendimento automático da universidade que nos deixa desarmados, ou na melhor das hipóteses, com slogans e demandas que não se aplicam às nossas situações.
O 3Cs tem dado importância ao aprendizado e em produzir alguma história – ainda que apenas como uma linha do tempo – de lutas anteriores e ciclos de lutas na universidade. Nós também discutimos para analisar e criticar os modos de militância e intervenção que temos em diferentes contextos universitários, especialmente nos Estados Unidos. Há uma reflexão de nossas práticas para construir alternativas. Por exemplo, como você organiza um protesto, ou se protestar tem sido relegado a uma “atividade cultural estudantil”, assim como outros esforços estudantis banalizados. Como escapar de um único modo de protesto para os nossos esforços insurgentes? Como repensar estratégias sindicais para estudantes de graduação e adjuntos, quando sindicatos e administradores das universidades brigam e fazem lobby com o governo para que essas categorias não sejam reconhecidas como “trabalhadores”? Podemos lutar fora deste quadro, ou reapropriá-lo através de novas maneiras? Tudo isso tem sido uma parte de nossas questões desde o início.
Counter-Cartographies Collective: https://www.countercartographies.org