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15.05.2017

Desenho e canteiro no mutirão autogerido: o caso do COPROMO

Ícaro Vilaça

Como vimos anteriormente, a racionalidade do canteiro – tanto nos processos produtivos quanto nas atividades relacionadas à gestão da obra por parte dos mutirantes – era vista pelos arquitetos da Usina CTAH como uma condição para a superação das violentas condições de produção existentes na construção civil. O caso do COPROMO – conjunto de mil unidades habitacionais construído em Osasco – é paradigmático e ajuda a iluminar alguns dos limites e das possibilidades do mutirão autogerido.

Logo depois de um acordo com a Prefeitura – que garantiu a doação de 54 mil m2 para o COPROMO –, a Associação Por Moradia de Osasco passou a centrar esforços na negociação de um financiamento junto à CDHU para viabilizar a construção do conjunto e, mesmo sem garantias de que conseguiria obter o financiamento, decidiu arcar com todos os custos referentes ao desenvolvimento do projeto executivo pela Usina.

No segundo semestre de 1992, enquanto as negociações com a CDHU se arrastavam, a Associação resolveu dar início às obras de oito edifícios com recursos próprios – ainda que não houvesse dinheiro suficiente para terminar essa primeira etapa da obra. A assessoria técnica apoiou a decisão e começou a se dedicar à realização de um processo de formação com os trabalhadores.

A despeito da grande heterogeneidade em relação à experiência profissional, estado de saúde e renda dos trabalhadores, o compromisso das famílias com a Associação era o mesmo: todas deveriam dedicar ao mutirão pelo menos 16 horas de trabalho semanais, que deveriam ser cumpridas obrigatoriamente durante os fins de semana pelo titular. Caso este tivesse compromissos de trabalho aos fins de semana, era dada a opção de participar das obras durante a semana ou indicar como suplente alguma pessoa da família com idade superior a 16 anos1. Esta intensa dedicação, por parte dos mutirantes, teve um papel fundamental nos primeiros meses de canteiro do COPROMO – marcados por enormes restrições financeiras.

Mutirão executando as vigas baldrame de um dos edifícios do COPROMO.

As obras dos oito primeiros edifícios do conjunto foram iniciadas em 1992, com recursos dos próprios sem-teto. Como não havia dinheiro para a contratação de tratores, toda a movimentação de terra necessária para a terraplanagem e a escavação das valetas das vigas baldrame foram realizadas pelos mutirantes – com pás e carrinhos de mão. Nesse primeiro momento do canteiro, o único serviço de monta que pôde ser contratado foi a execução das estacas strauss utilizadas nas fundações dos edifícios.

Embora essas circunstâncias causassem alguma contrariedade entre os arquitetos – sobretudo levando em conta o fato de que o projeto do COPROMO havia sido minuciosamente pensado para permitir processos de construção racionais e que poupassem os mutirantes de maiores esforços físicos –, a assessoria respeitou a determinação das lideranças da Associação em começar as obras com os recursos disponíveis.

Outro aspecto marcante do projeto que, de alguma maneira, foi negado neste primeiro momento do canteiro foram as escadas metálicas. Pensadas para serem instaladas logo após as fundações – viabilizando o transporte seguro de trabalhadores e materiais –, as escadas só puderam ser encomendadas depois que o financiamento da CDHU foi liberado, quando praticamente um terço da obra já estava concluída. Por conta disso, alguns edifícios chegaram ao terceiro pavimento antes que as escadas tivessem sido instaladas.

Além dos descompassos causados por restrições financeiras, também houve a necessidade de rever algumas soluções adotadas no projeto depois que elas foram testadas no canteiro. Um exemplo significativo foi a mudança do sistema construtivo adotado nas lajes – inicialmente pensadas para serem executadas num sistema convencional, baseado em peças cerâmicas apoiadas em vigotas de concreto armado, com concretagem posterior.

A demora e a dificuldade na execução desse tipo de laje pelo mutirão fizeram com que a assessoria procurasse alternativas. Os arquitetos acabaram chegando a um pequeno fabricante de painéis de laje em concreto armado que se prontificou a produzir painéis sob medida para o COPROMO – o que era facilitado pela rigorosa modulação do projeto. Embora a adoção dessa solução representasse um custo adicional, este sistema foi considerado mais adequado para o mutirão, poupando os trabalhadores das rotinas extenuantes exigidas pelo sistema convencional. Mais adiante, esses painéis de laje pré-fabricados começaram a ser produzidos dentro do próprio canteiro, o que representou uma economia considerável.

A desvantagem deste sistema era o peso das peças – e como não havia recursos para a adoção de gruas ou equipamentos similares, elas tiveram que ser transportadas manualmente. Segundo relatos dos mutirantes, para subir os painéis por meio de um sistema simples de corda e roldana, a força exigida para subir cada peça demandava pelo menos seis homens para puxar a corda.

Outra mudança importante suscitada pelo canteiro foi a alteração da solução adotada para os reservatórios de água inferiores – inicialmente pensados como reservatórios enterrados no solo, construídos em alvenaria de blocos de concreto revestidos internamente com argamassa armada.

O caráter sacrificante do trabalho de movimentação de terra pelos próprios mutirantes e as inúmeras dificuldades enfrentadas na execução desses reservatórios fizeram com que eles fossem substituídos por torres de concreto construídas a partir de peças pré-moldadas. O arquiteto Mário Braga, um dos responsáveis pelo projeto, comentou essa alteração2:

Quando a obra do COPROMO começou a gente não tinha nem trinta anos… éramos moleques ainda. Se a gente não tivesse tido o apoio de todos que estavam lá, do Wilton, que era um grande mestre-de-obras, a gente estaria perdido. E nada melhor pra aprender do que uma obra dessa escala. Esses reservatórios foram uma loucura. O volume de terra que era preciso cavar era muito grande… era como construir uma pirâmide! [risos]. E aí chovia… e entupia tudo de terra de novo. Ficava aquela lama… e a gente tinha que tirar tudo de novo. E sem tratores! Tudo na mão… até que a gente se perguntou: “Não tem um jeito melhor de fazer isso?”. E aí gente acabou decidindo adotar as torres de concreto. Elas são horríveis? São! É mais bonito fazer enterrado? Sim. Mas não dava… a gente tava penalizando muito os trabalhadores. Foi uma péssima opção de projeto. Ou você tem dinheiro pra contratar uma máquina potente pra fazer aquilo rapidamente ou então esquece.

Esse conjunto de alterações que foram realizadas é significativo e, à sua maneira, expressa a relação singular entre desenho e canteiro no mutirão autogerido – e, ao mesmo tempo, a complexa relação entre as possibilidades e os limites dessa forma de produção do espaço.

Nesse sentido, o caso dos painéis pré-fabricados de laje é um exemplo particularmente interessante, na medida em que essa solução, mesmo representando um custo adicional para a obra, foi adotada simplesmente por ser considerada mais adequada para o mutirão – sendo que, posteriormente, este valor adicional foi convertido em economia quando os mutirantes dispensaram o fornecedor e passaram a montar as peças dentro do canteiro. Ao mesmo tempo, o novo desenho, ainda que tivesse sido adotado em favor dos trabalhadores, esbarrava na precariedade do próprio canteiro – impondo o transporte manual de peças extremamente pesadas.

Enquanto as primeiros edifícios estavam sendo construídos, o projeto do COPROMO seguia em discussão na CDHU – mesmo já tendo sido aprovado pela Prefeitura de Osasco. Os técnicos da empresa questionaram diversos aspectos do projeto, desde a área dos apartamentos – considerada excessiva –, até o sistema construtivo baseado nos blocos cerâmicos estruturais.

Depois de muitas idas e vindas, a CDHU finalmente liberou o financiamento referente à construção dos oito primeiros edifícios do COPROMO – quando algo em torno de 30% desta primeira etapa da obra já estava concluída. Com a liberação dos recursos, o canteiro começou a entrar no ritmo que havia sido previsto. Uma das primeiras providências foi a contratação das escadas metálicas, o que possibilitou que parte dos edifícios desta primeira etapa fossem construídos de acordo com o sistema pensado originalmente pela assessoria técnica.

Outra mudança importante foi a gradativa redução do trabalho mutirante, com a contração de um número maior de trabalhadores da construção civil para tocar as obras durante a semana – tanto para acelerar os trabalhos quanto para poupar os grupos de mutirantes (formados em sua maioria por pessoas sem experiência na construção civil e com uma presença significativa de mulheres e idosos) dos serviços mais pesados.

Nos últimos anos de construção do COPROMO, o mutirão foi gradativamente perdendo peso, de forma que a obra foi concluída basicamente pelos trabalhadores assalariados que trabalhavam durante a semana. Contribuíram para isso tanto o ritmo de medições imposto pela empresa financiadora – cada nova parcela do financiamento só era liberada depois que o andamento da obra era medido e a prestação de contas apresentada era aprovada – quanto a crescente desmobilização das famílias.

Vista aérea do COPROMO, após a conclusão das obras de todos os edifícios.

Com o fim da construção dos edifícios, o processo coletivo foi definitivamente deixado de lado em função de iniciativas individuais ou de pequenos grupos, que se ocuparam diretamente da finalização dos apartamentos – execução de revestimentos e pintura – e do tratamento das áreas coletivas – pavimentação de algumas áreas, plantio de árvores, construção de pequenos canteiros de plantas e bancos, instalação de grades em frente aos prédios, etc.

Este processo de apropriação do conjunto também se expressou pela substituição de parte da população que havia participado do mutirão, com a disponibilização de uma quantidade considerável de apartamentos para venda ou aluguel – circunstância que pode ser lida como uma negação do processo, na medida em que afirma a moradia como uma propriedade a ser trocada no mercado, em detrimento do valor de uso defendido pelos movimentos populares. Outros moradores, por outro lado, declararam que jamais venderiam seus apartamentos3:

Eu tenho muito gosto de morar aqui, muito gosto mesmo. Quando começou eu não sabia que ia ficar desse jeito… pensei que ia ser parecido com os outros conjuntos que a gente vê por ai. Acabou ficando bonito, cheio de árvores que o pessoal plantou… […] Já me fizeram oferta pra comprar aqui e eu não quis. Foi muito duro chegar aqui, foram anos e anos de luta, agora eu quero ficar sossegada no meu canto.

O êxito do sistema construtivo do COPROMO acabou transformando-o num legado para a assessoria, tendo sido utilizado em praticamente todas as experiências posteriores da Usina CTAH com mutirões verticalizados.

Mutirão Juta Nova Esperança, na Zona Sul de São Paulo (construído entre 1994 e 1999).

Notas de Rodapé

  1. Havia ainda um sistema de pontuação que beneficiava aqueles que tivessem interesse em dedicar mais horas de trabalho semanais além das dezesseis que eram obrigatórias. As famílias com maior pontuação teriam prioridade na escolha e na entrega dos apartamentos.
  2. Entrevista concedida ao autor em 02/02/2015.
  3. Entrevista concedida ao autor em 20/09/2015.

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