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31.05.2017

A reinvenção do arcaico? Notas introdutórias sobre a exploração do trabalho haitiano no Brasil

Francis Vinicius Portes Virginio

O propósito deste artigo é analisar algumas das principais características e formas de exploração dos haitianos no trabalho no Brasil. Os últimos anos foram marcados pela chegada de mais de 75.000 imigrantes haitianos ao país. A imigração começou após o terremoto de 2010 no Haiti, no qual mais de 250.000 pessoas morreram e o país foi completamente destruído. Os haitianos rapidamente constituíram o maior contingente de imigrantes no mercado de trabalho brasileiro. Naturalmente, um número crescente de estudos tem analisado esse fenômeno social e indicado intensas formas de exploração do trabalho desses imigrantes (Magalhães e Baeninger, 2016; Mamed e De Lima, 2015). Este artigo busca contribuir para essas discussões ao explorar o nexo da participação haitianos com as transformações no mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos.

Apesar de seu caráter introdutório, este artigo permite entrever algumas das dimensões formais e informais da subordinação e exploração do trabalho haitiano no Brasil. O artigo contribui para a temática proposta nessa série apresentando flagrantes contradições entre o ideal de modernização das relações trabalhistas e práticas arcaicas de exploração desses imigrantes nos setores do agronegócio e da construção civil. Dessa forma, ele oferece evidências empíricas de como as estratégias de valorização do capital, pela modernização e desregulação desses setores, estão intrinsicamente associadas ao aumento da exploração do trabalho, sendo a inclusão do trabalho haitiano uma oportunidade de satisfação das mesmas.

Colhedores de Café, 1935 - Candido Portinari

Aspectos gerais da participação dos haitianos no mercado de trabalho brasileiro

Embora a complexidade da migração haitiana não possa ser reduzida à questão laboral (Seguy, 2014; Handerson, 2015), a condição dos haitianos no Brasil está relacionada diretamente as transformações no mercado de trabalho brasileiro. O aumento expressivo da participação de haitianos e outros imigrantes internacionais decorre não somente do crescimento econômico do país, mas também de dinâmicas subjacentes a expansão territorial e econômica do mercado laboral. Elas interferem nas ofertas de trabalho e no padrão de migração doméstica e, consequentemente, afetam a inclusão de trabalhadores em setores mais precários (Braga, 2012; Baeninger, 2012).

Nas últimas décadas, o mercado de trabalho brasileiro tem sido marcado por processos de reestruturação produtiva e organizacional que visam a sua modernização e aumento da sua competitividade. Contudo, vasta literatura tem indicado que essas estratégias de optimização da produção no Brasil não estão somente relacionadas com inovações tecnológicas, mas estão intimamente associadas com condições de trabalho extremamente precárias e indignas ao trabalhador (Antunes, 2014; Braga, 2012; Barros e Mendes, 2003; Druck e Borges, 2002; Thomaz Jr., 2010). Essas medidas de modernização têm introduzido novas formas de precarização do trabalho (i.e. terceirização, contratos e jornadas flexíveis, entre outros) a fim de reduzir os custos e aumentar a produtividade.

É nesse contexto que se inserem os haitianos no mercado de trabalho brasileiro. Em sua maioria, eles ocupam postos de trabalho em condições degradantes, com baixos salários, alta rotatividade e ausência de perspectivas de ascensão na carreira. Os maiores empregadores de haitianos pertencem aos setores da construção civil e do agronegócio, os quais são marcados por trabalho sazonais, informalidade e condições de trabalho extremamente precárias. Não surpreendentemente, ambos setores lideram índices de acidentes no trabalho, adoecimento do trabalhador e denúncias de trabalho em condições análogas à escravidão, das quais imigrantes constituem 35% dos casos1.

Além disso, segundo dados do Dieese (2014), a construção civil é o setor com maior rotatividade de vagas no mercado de trabalho com 87,4%, seguido da agricultura com 65,9%. Essas tendências permitem paralelos com os altos índices de rotatividade dos haitianos no mercado de trabalho no ano seguinte:

Enquanto esses dados indicam algumas das dinâmicas quantitativas da mobilidade de haitianos no mercado de trabalho, as narrativas dos haitianos são indispensáveis para a compreensão mais abrangente de aspectos formais e informais da exploração desses trabalhadores no ambiente trabalho. As próximas duas seções apresentam experiências de haitianos nos setores do agronegócio e na construção civil. Foram realizadas 42 entrevistas semiestruturadas com haitianos entre junho e outubro de 2016 nos estados de São Paulo e Paraná. As narrativas sugerem que empregadores buscam forjar uma condição de subalternidade nos haitianos para aumentar a exploração do trabalho. Elas revelam que mecanismos simbólicos (i.e. discriminação étnica e racial) e violação de direitos trabalhistas (i.e. férias, pagamento de horas extras e limite de horas na jornada de trabalho), são utilizados como estratégias complementares de valorização do capital.

As experiências de haitianos no agronegócio

Você tem que trabalhar sob o sol, carregando vagões de milhos, soja e farelo. (…). Quando o vagão vem, você tem que limpá-lo, mesmo quando está muito quente. Você precisa ir dentro e limpá-lo. Ao meio dia, o sol é muito quente. O vagão vem com aquele calor, mas você tem que entrar, limpar muito rápido e carregá-lo. Eu sou o mais leve, então eu entro para limpar. Mas é muito difícil para limpar aquele milho e soja molhada. Você tem que tirar tudo, mas está tudo colado e fedendo. Eu nunca vou esquecer disso. Eu passei dois meses trabalhando assim todos os dias. Das oito da manhã até meia noite. Às vezes, nós chegávamos às nove no sábado e, no domingo, chegávamos às cinco ou seis da manhã.

Essa era a exaustiva rotina de trabalho de Yves. Ele, assim como muitos outros haitianos, presta serviços para empresas da cadeia do agronegócio. No Brasil há um ano e meio, ele nunca teve uma experiência de trabalho por período superior a seis meses. Ele viveu em algumas cidades no Estado de Minas Gerais antes de se mudar para o norte do Paraná por recomendação de um amigo também haitiano. Ele esperava que ali as ofertas de emprego seriam fartas e ele poderia guardar dinheiro para trazer sua família e estudar no Brasil. Na maioria de seus trabalhos ele teve vínculos informais com empresas terceirizadas. Como tinha dificuldade de encontrar trabalho em outros setores, ele dependia do período de safras de grãos para conseguir trabalhar. Ali, em busca de trabalho, ele se dirigia ao sindicato dos trabalhadores de sua cidade. O sindicato operava como uma agência de empregos que terceirizava o trabalho haitiano para empresas da região. Quando encontrava trabalho, ele recebia metade do seu salário. A outra metade ficava para o sindicato.

Quando a gente começa, a gente assina um contrato. Você trabalha dez dias e depois mais dez dias. Você recebe somente por 10 dias. Ele (o representante do sindicato) sempre vai ficar com os outros dez dias na mão dele. Para cada vinte dias que você trabalha, você recebe por dez dias.

Os entrevistados, que também trabalhavam ali, não gostavam do trabalho em virtude do tratamento discriminatório que recebiam. Os haitianos indicam que sofriam discriminação ao ter carga de trabalho superior à carga de trabalho de brasileiros que exerciam a mesma função assim como sofriam ofensas raciais para intensificar a produção. Como relata Dieter, que abandonou seu trabalho por conta das ofensas racistas que recebia de seu chefe: “Ele falava: “Oh coisa, preta! Ei, coisa preta, pega isso aí. Ah, outro brasileiro precisa de ajuda: ‘Ah, e ou vou chamar o coisa preta para ajudar você’. ”

Ao contrário de Dieter, Yves não queria reclamar e apenas “trabalhar bem”. Dessa forma, ele considerava que seria sempre recrutado para outros trabalhos. Tal elemento indica uma forma de resiliência e autodisciplina para lidar com a instabilidade do seu vínculo trabalhista. Sua única queixa era a jornada exaustiva. Ele considerava que seu chefe poderia ter dois grupos de trabalhadores para cada turno de 8 horas, da mesma forma que ele fazia com seus empregados não terceirizados. No entanto, como o próprio Dieter destaca, essa dimensão da exploração era considerada uma vantagem na contratação dos haitianos.

Ele poderia pegar um turno de oito horas, até às quatro ou cinco horas da tarde. Ele tem dois turnos para os empregados dele. Mas nós não trabalhamos para ele, nós trabalhamos para o sindicato. É o sindicato que nos manda para cá. E eles não pedem para gente que assinar carteira de trabalho. Nós que temos que fazer. É por isso que eles nos chamam para trabalhar ali.

As experiências dos haitianos na construção civil

O setor da construção civil tem sido passagem obrigatória para muitos trabalhadores haitianos, constituindo o setor com maior número de admissões de haitianos no Brasil. Para muitos, essa é a única possibilidade de inserção no mercado de trabalho. Como Michel, professor com dois diplomas universitários e fluente em cinco línguas. Ele procurou seguir a carreira como professor no Brasil, mas não conseguiu validar seus diplomas tampouco um emprego na sua área de estudo. Nas horas vagas, por ser fluente em português, ele acompanhava outros amigos haitianos em um canteiro de obras no aeroporto internacional de Guarulhos a fim de intermediar a contratação desses trabalhadores. Após 5 meses sem encontrar um trabalho na sua área de formação ele aceitou trabalhar na construção civil: “Comecei em uma empresa que era terceirizada. Eu comecei como ajudante, trabalhando no aeroporto de Guarulhos. Depois, fui para uma construção das olimpíadas que estava sendo feito em Jabaquara.”

Ele dizia que somente com salário, em torno de 1067 reais, não conseguiria sobreviver, por isso, ele fazia horas extras. Ao final do mês não sobrava nada, já que ele tinha de sustentar sua família no Brasil e ajudar os irmãos no Haiti. Dessa forma, esses elementos o forçavam a realizar concessões bem como reforçavam a lógica da produção flexível.

Eu já sabia o horário de entrada e de saída, das sete da manhã às cinco da tarde (…). Depois das cinco da tarde era hora extra. Como tinha uma corrida para concluir o trabalho, às vezes trabalhávamos até às sete, dez horas da noite, como hora extra. Sábado, Domingo, tudo era hora extra.

Em relação às demais condições de trabalho, haitianos declaram que apesar da exigência física do setor, as maiores dificuldades eram psicológicas. Frequentemente, eles sofriam discriminação, as quais integravam estratégias simbólicas para violação dos seus direitos trabalhistas. Um exemplo da discriminação é destacado por Daniel “o chefe um dia disse: ‘vocês estão vindo para cá, vocês têm que trabalhar duro, porque vocês deixaram seus países. Vocês estavam no sofrimento, na miséria, aí vocês estavam querendo buscar uma vida melhor, não é? Então vocês têm que trabalhar, vocês não podem descansar’”.

Além da violência psicológica, a supressão explicita de direitos trabalhistas dos haitianos tem sido uma realidade constante. Exemplos são tentativas de intensificação do trabalho, longas jornadas diárias, a ausência de finais de semana, supressão de benéficos como vale transporte e direitos a férias. Essas tendências estão explicitas na narrativa de Michel:

“Como imigrante também você tinha que esperar. A cada ano, você tem direito a um mês de férias, mas nós tivemos que esperar como um ano e cinco meses para ter férias. Foi muito duro. Ter de esperar que a empresa decida mandar as férias para você assinar.

Esses elementos reverberam com a narrativa de Emmanuel. Durante dois anos no Brasil ele apenas encontrou empregos na construção civil. As jornadas extenuantes eram parte de sua rotina. Para ele, isso não foi um grande problema, já que sempre trabalhou na construção civil. Sua indignação, no entanto, estava no tratamento que recebia dos empregadores, quem constantemente violavam seus direitos trabalhistas, bem como procuravam puni-lo caso adoecesse. Como descreve abaixo:

Eles me tratavam igual a um escravo. Tinham sete pedreiros, mas somente eu era o ajudante. Tinha que entrar às sete horas e saia às cinco e meia, às vezes seis e meia da tarde. Tudo isso sem me pagar hora extra. E quando me mandavam fazer as coisas, eles queriam que eu fizesse em dez minutos. E se eu perdesse um dia de trabalho, eles me descontavam dois. Não tinha vale transporte, nada.

Considerações finais

Este artigo procurou demonstrar algumas das formas de exploração haitianos vivenciam no Brasil. As práticas exploratórias estão associadas com aspectos formais do trabalho haitianos bem como estratégias informais dos empregadores. Observa-se a correlação entre vínculos de Trabalho precário, a violação de direitos trabalhistas e a violência simbólica contra haitianos a fim de reduzir custos e intensificar a exploração desses trabalhadores. Esta tendência revela a conexão existente entre exploração de haitianos, estratégias de rápida expansão e modernização de setores vitais na economia brasileira nos últimos anos. Além disso, as narrativas demonstram particularidades que constituem a realidade dos haitianos, como a necessidade de enviar remessas financeiras ao Haiti e mobilidade restrita desses trabalhadores no mercado de trabalho. Tendo em vista esses elementos, a literatura sobre trabalhadores haitianos poderia se beneficiar de conceptualizações mais abrangente do contexto social, econômico e políticos do Brasil e do Haiti. A análise rigorosa desse fenômeno permite revelar as formas de subordinação dos trabalhadores haitianos no Brasil bem como possíveis formas de contestação e luta desses trabalhadores por melhores condições de vida.

Referências bibliográficas

Aires Magalhãoes, L. F. e Baeninger, R. (2016), “Trabalhadores Imigrantes: haitianos e haitianas em Santa Catarina” – VII Congreso de la Asociación Latino-Americana de Población e XX Encontro Nacional de Estudos Populaiconais.

Antunes, R. (2014), “Desenhando a nova morfologia do trabalho no Brasil”. Estudos Avançados, 28(81), 39-53. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142014000200004

Baeninger, R., (2016), “Rotatividade migratória: um novo olhar para as migrações no século XXI”. Anais, pp.1-21.

Braga, R. (2015), A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. Boitempo Editorial.Druck, G., & Borges, A. (2006). Terceirização: balanço de uma década. Caderno CRH, 15(37).

Handerson, J. (2015), “Diaspora. As dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil, no Suriname e na Guiana Francesa.” Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/Museu Nacional, 2015.

Mamed, L. H.; De Lima, E. O. (2015), “Trabalho, precarização e migração: o processo de recrutamento de haitianos na Amazônia acreana pela agroindústria brasileira.” Novos Cadernos NAEA, v. 18, n. 1.

Seguy, Frank (2014), “A catástrofe de janeiro de 2010, a ‘Internacional Comunitária’ e a recolonização do Haiti”.

Thomaz JR., A. (2000), “Gestão e ordenamento territorial da relação capital-trabalho na agroindústria sucroalcooleira.” Informações Econômicas. v. 30, n. 4, São Paulo.

Dieese (2011), Rotatividade e políticas públicas para o mercado de trabalho brasileiro. Disponivel em http://www.dieese.org.br/livro/2011/livroRotatividade11.pdf (Acessado em 20 de abril de 2017)

Da Rocha Barros, P.C. e Mendes, A.M.B., (2003), Sofrimento psíquico no trabalho e estratégias defensivas dos operários terceirizados da construção civil. Psico-USF, 8(1), pp.63-70.

OBMIGRA (2016) “RELATÓRIO ANUAL: A inserção dos imigrantes no mercado de trabalho brasileiro”. Organizadores: Cavalcanti, L., De Oliveira, A.T. e Araujo, D. Brasilia: Caderno do Observatório das Migrações Internacionais.

Notas de Rodapé

  1. Dados do Ministério do Trabalho 2017

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