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21.07.2017

O CERRADO GOIANO NUMA ENCRUZILHADA DE TEMPOS: OS TERRITÓRIOS EM DISPUTA E AS NOVAS TERRITORIALIDADES

Marcelo Rodrigues Mendonça

Parte dessas reflexões foram publicadas em co-autoria com Márcia Pelá na Revista Geográfica de América Central, Número Especial EGAL, 2011- Costa Rica.

Introdução

As discussões sobre o Cerrado goiano (Figura 01) – uma das áreas de maior produção/produtividade agropecuárias do mundo e um hotspot de sociobiodiversidade – está ameaçado de destruição pelas formas de uso e exploração da terra e da água, intensificadas nas últimas décadas pelo agrohidronegócio. Essa proposta decorre de uma análise bibliográfica, de pesquisas de campo e de reflexões em congressos científicos e similares. Essas atividades conduziram a seguinte síntese: o Cerrado enquanto bioma, ao ser apropriado pelos diferentes protagonistas (Comunidades tradicionais, grupos econômicos nacionais e transnacionais, Estado e distintos sujeitos), se constitui em territórios em disputa. Disputas entre as diversas formas de uso, entre as diferentes interpretações/linguagens e disputas para assegurar quinhões de pesquisa, sejam materiais e/ou imateriais. Assim, propomos colocar em discussão as leituras geográficas sobre o Cerrado, os conflitos decorrentes das formas de uso da terra e da água e as múltiplas territorialidades construídas.

Várias pesquisas realizadas com interfaces entre os saberes geográficos, antropológicos, biológicos, pedagógicos e de outras ordens têm sido o objeto de esforço de pesquisadores envolvidos com atividades da graduação e da pós-graduação na Universidade Federal de Goiás. Essas pesquisas recuperam análises enunciadas por Almeida (2005), compreendendo o Cerrado a partir de diversas abordagens, tais como: bioma; ecossistema; região de incorporação ao capital; território; paisagem; mito; cultura; expressão de formas de vida cerradeiras etc.

Figura 01 - Representação espacial da abrangência do Cerrado no Brasil

Fonte: IBGE (2004)

Embora existam todas essas compreensões, há grande esforço na análise do desenvolvimento econômico e a preservação ambiental, como duas expressões de força imaginária e ideológica, quando o assunto é o Cerrado. Assiste-se a implantação de programas (setores públicos e privados) que intentam promover ações e iniciativas, fortalecendo os discursos de que os elevados índices de produção/produtividade e os avanços econômicos capazes de desenvolver as projeções da balança comercial, bem como a exportação, são fundamentais para incrementar o Produto Interno Bruto (PIB), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e tantos outros índices almejados, intensificando a inserção das áreas cerradeiras ao mercado globalizado.

É a partir dessa conexão mercantil, fortalecida pelas preocupações ambientais e a construção de um discurso ambientalmente correto, que a ideia de sustentabilidade, descrita na Agenda 21, está sendo implantada, segundo os empresários rurais. De acordo com as ideias defendidas pelo empresariado rural, os usos do Cerrado para as atividades econômicas baseadas no agronegócio é o expediente de sustentabilidade.

Mas, ao contrário disso, os territórios do Cerrado goiano são alvos de várias significações, empreendidas por outras visões de mundo. Deve ser observado que, segundo dados estatísticos da Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento do Estado do Goiás (2005), o Cerrado compreende a segunda maior riqueza em diversidade biológica do país, abrigando vários cursos d’água formadores das maiores bacias hidrográficas sul- americanas. Ainda, considera-se a produção social, as práticas socioculturais, ou seja, não se deve deslocar a biodiversidade das múltiplas dimensões sociais e culturais que apontam a existência de identidades cerradeiras, ou seja, as sociobiodiversidades.

Dessa forma, o objetivo deste artigo é analisar os fatores que possibilitaram a alteração de conceito e de importância do Cerrado goiano, bem como a relação destes fatores com as transformações socioespaciais que foram ocorrendo no processo de ocupação e apropriação nas últimas décadas do século XX e início do século XXI. Para isso, entende-se que qualquer estudo e/ou pesquisa que abordar este tema terá que considerar a importância da construção de uma leitura do Cerrado a partir do material e do imaterial, considerando as práticas socioculturais como fundantes no processo de apropriação do espaço e, consequentemente, na produção dos territórios.

Os territórios cerradeiros

Nesses territórios encontram-se, além da rica sociobiodiversidade, os principais aquíferos subterrâneos, o que os torna indispensáveis para a segurança hídrica de milhões de pessoas, garantindo a produção da vida em grande parte da América do Sul. Entretanto, até meados do século XX era considerado um bioma com solos pobres e improdutivos, vegetações deformadas e feias e o lugar dos tempos lentos 1 que deveriam ser transformados conforme as necessidades da modernidade.

A predicação negativa sobre o Cerrado e suas gentes foi construída pelo imaginário economicista, em que este aparecia como um bioma pobre e improdutivo que se caracterizava por uma ocupação onde se desenvolvia, basicamente, pecuária extensiva aliada à agricultura de subsistência 2. Discordamos da ideia de que os camponeses e demais sujeitos da terra subsistem e/ou praticam uma agricultura abaixo das condições de existência, pois produzem alimentos em quantidade, qualidade e diversidade.

Embora seja usual, entre os pesquisadores o conceito de agricultura de subsistência, esse conceito serviu para agregar adjetivos aos camponeses e demais povos que vivem e lutam pela permanência na terra, como atrasados, pouco desenvolvidos, avessos à modernização entre tantos outros estereótipos que tinham o objetivo de desqualificar as gentes oriundas do campo.

Conforme essa concepção os camponeses devem ser substituídos pelo progresso, pelo moderno, evidenciado através das práticas do agrohidronegócio com as monoculturas nas áreas planas (áreas de chapadas com uso intensivo de maquinários, mão de obra temporária e agrotóxicos). Ainda, considera-se os fundos de vales, onde estão os cursos d’água que estão sendo barrados para dar lugar às grandes hidroelétricas, conforme a opção energética brasileira.

Dizer que os camponeses e demais povos da terra praticam uma agricultura de subsistência não é verdadeiro no que tange as sociedades camponesas cerradeiras, pois vivem de forma simples, todavia, apresentam uma economia centrada na produção de alimentos, criação de animais, artesanato, aproveitamento dos frutos e plantas do Cerrado et., permitindo denominá-la de agricultura da abundância e do autoconsumo.
Lamentavelmente, registramos que esses discursos estereotipados prevalecem nas leituras sobre o Cerrado, inclusive nas salas de aulas em todos os níveis de ensino, e a forma com que os pesquisadores e demais sujeitos fazem uso denotam concepções em disputa, não apenas sobre o Cerrado, mas também sobre os Povos Cerradeiros, sobre a necessidade da reforma agrária, enfim sobre a concepção de desenvolvimento.

Esse constructo sociocultural permitiu as condições materiais e imateriais à ocupação moderna, racional e indiscriminada, ocasionando uma degradação social, cultural e ambiental sem precedentes. A acelerada devastação e os problemas socioambientais decorrentes, além de preocuparem alguns cientistas que elegeram o Cerrado como um dos hotspots de sociobiodiversidade do planeta levam a seguinte indagação: quais os efeitos espaciais gerados por esta ocupação modernizadora nos povos que já habitavam as áreas de Cerrado?

Para se alcançar esta compreensão demanda-se a construção de um olhar espacial abrangente, de natureza transdisciplinar e capaz de enxergar além das fronteiras impostas pela fragmentação entre o físico e o humano, ou seja, a natureza e a sociedade. Temos chamado essa perspectiva de Abordagem Integrada do Cerrado. É esse olhar espacial integrado que permite deparar-se com o local e o global, com as contradições entre normas e vidas. São essas teias espaciais urdidas no cotidiano – resultantes da conflitualidade, força motriz das (Re)Existências, compreendidas na relação com os de dentro e com os de fora – que asseguram práticas socioculturais, expressões corporais e estéticas, constituindo novos saberes e fazeres dos Povos Cerradeiros. (MENDONÇA, 2004).

Para nós, Povos Cerradeiros se referem aos sujeitos sociais trabalhadores/produtores que, historicamente, viveram nas áreas de Cerrado e constituíram formas de uso da terra e da água a partir das diferenciações naturais-sociais, experienciando formas materiais e imateriais de trabalho, que denotam relações sociais de produção muito próprias e em acordo com as condições ambientais, resultando em múltiplas práticas socioculturais.

A permanência das práticas socioculturais cerradeiras movidas pela ação política transformadora na luta pelo território da vida (luta pela terra, pela reforma agrária, pela água etc.), permite apontar o conceito de (Re)Existência, enquanto um processo de permanência, modificada por uma ação política que se firma nos elementos econômicos e socioculturais. Significa re-enraizar para continuar enraizado ou poder criar novas raízes e mesclá-las com as já existentes, formatando espacialidades como condição para continuar (Re)Existindo.

Nesse sentido, as (Re)Existências são ações construídas no processo de luta pelos territórios da vida, expressas na luta pela permanência na terra, na luta pela Reforma Agrária, na luta contra a construção desenfreada e injustificada dos empreendimentos hidroelétricos que expulsam milhares de famílias de seus lugares de existências, na luta pela água, na luta pela produção sem veneno, entre outras ações de natureza política que possuem como fundante as relações de pertencimento.

À medida que se organizam forjam uma consciência de classe que se evidencia no fazer-se, conforme Thompson (1987); porém, parcelas desses sujeitos não se engajam nos movimentos sociais e, tampouco, deixam de ser considerados sujeitos políticos. O que ocorre é que não se fazem no processo de construção da ação política coletiva. Entretanto, o que os particulariza, além da perspectiva de se manterem na terra constituindo modos de ser e de viver, é a ação política na defesa da terra de trabalho, da reforma agrária, da água, a partir de diversos elementos, entre eles a cultura, determinante de ações políticas que buscam nas (Re)Existências, frisa-se, as condições necessárias para manter e lutar pelos territórios da vida.

OLHAR INTEGRADO: o olho que olha implica o objeto olhado

Interessante observar que a Abordagem Integrada do Cerrado, quase que uma cosmovisão, aparece de forma elucidativa entre os indígenas e os camponeses que vivenciam outras racionalidades e mantêm uma relação diferenciada com a natureza. Na sociedade capitalista contemporânea, permeada pela velocidade crescente na busca permanente das condições de produção do lucro, a natureza exteriorizada é vista apenas como produtora de mercadorias. Para os sujeitos cerradeiros (Figuras 02 e 03) e aqueles que partilham da perspectiva integrada, a natureza é una, pois não há separação ente o material e o imaterial, mas um permanente e incessante diálogo que assegura a vida plena.

Figura 02 – Camponês Comunidade Sucupira Catalão/Goiás/Brasil

Fonte: Arquivo do GETeM UFG/Catalão/GO/Brasil

Figura 03 – Camponesa em Acampamento de Trabalhadores Sem Terras em São João da Aliança Catalão/Goiás/Brasil

Fonte: Arquivo do TRAPPU UFG/GO/Brasil

A valoração das condições naturais-sociais-culturais torna o território aberto às inovações, ao progresso, que indubitavelmente atinge a todos, seja na rearticulação das classes hegemônicas e das relações de poder, seja enquanto fomentador das mazelas sociais para parcela significativa da população. O capital é portador do progresso que, ao ser ideologizado pelas políticas estatais e os setores que o sustentam, se efetiva enquanto materialidade capitalista.

Por isso deve-se considerar os aspectos negativos desse progresso, uma vez que forja um pacto de alianças entre as classes hegemônicas, não apresentando as contradições que são, inclusive, condição para a operacionalização do “progresso capitalista”. Todavia, evidenciar as contradições não é suficiente. É preciso entranhar o universo dos sujeitos pesquisados e compreendê-los como tramas que grafadas no território asseguram o bem viver.

A compreensão de que o olho que olha implica o objeto olhado nos faz conceber o olhar integrado, considerando que os efeitos dos impactos gerados no processo de ocupação do Cerrado goiano, nas últimas décadas, afetaram as riquezas materiais e imateriais. Parte-se do entendimento de que o Cerrado não é composto apenas de biodiversidade, mas também de sociodiversidade e que, por conseguinte, não foram apenas as suas riquezas naturais e biológicas que sofreram alterações, mas a cultura e a memória dos povos que ali habitam/habitavam. O que era rural transformou-se em agrícola alterando, desta forma, as estruturas socioespaciais em um período histórico denso e curto.

Essas transformações não alteraram apenas o modo de produção e de trabalho, mas o modo de ocupação e de vida de grande parcela da população cerradeira, já que estas, além de migrarem do campo para as cidades, tiveram o seu antigo lugar de moradia – o campo – apropriado, em grande parte por empresas rurais e migrantes de outras paragens.

Vê-se assim uma reconfiguração socioespacial do território goiano em que se alteram não apenas as estruturas materiais – como o modo de produção, as relações de trabalho e de serviços, mas também a estruturas imateriais. É a estrutura do tempo lento se misturando ao tempo rápido, em que tanto os migrantes do campo como os migrantes dos outros estados – além de implementarem e implantarem outra estrutura produtiva e de trabalho – transportam com eles, independentemente do lugar a ser ocupado, as suas práticas socioculturais e simbólicas, as suas memórias e dilemas, saudosismos e os seus modos de vida por meio dos quais nutrem suas visões de mundo.

Por esta via propõe-se pensar e refletir sobre a relação entre as dimensões política, econômica e cultural na constituição dos territórios modernos nas áreas de Cerrado, uma vez que são imprescindíveis à compreensão da reconfiguração socioespacial do Cerrado goiano e, ainda, averiguar o sentido social das disputas territoriais. Desse modo, considera-se que o Cerrado é um mosaico de territórios em permanente disputa onde se produzem as relações sociais que tecem a vida. Dessa forma o Cerrado se transforma em territórios disputados 3 por diversos grupos econômicos transnacionalizados, atores sociais, concepções políticas e visões de mundo.

Esses sujeitos, destacadamente os camponeses e demais sujeitos da terra e trabalhadores em geral, hibridizam suas territorialidades e se hibridizam, constituindo práticas socioculturais, sentidos e significados que se cristalizam no tempo e no espaço. Por conseguinte, é na materialização das territorialidades, produzidas por um longo processo histórico que envolve as mais variadas formas de relações humanas, que desdobra os vários sentidos da disputa do Cerrado. Esses componentes são utilizados pela política territorial da gestão do espaço, sendo precedida de elementos socioculturais.

A partir do conflito em suas múltiplas dimensões, outros modos de vida de diferentes estirpes vão sendo esculpidos nos territórios do Cerrado e, buscando percebê-los através da paisagem, compreendida enquanto um cumulativo de tempos pode-se identificar os lugares e o cotidiano dos sujeitos. Esses princípios – que oferecem elementos para uma Abordagem Integrada do Cerrado e mais próxima das realidades existentes no cotidiano desses espaços – instigam à reflexão sobre as contradições e as disputas existentes no Cerrado Goiano. Essas ações buscam compreender as tramas espaciais a partir da necessidade de uma intervenção qualificada, considerando um aprendizado coletivo com os sujeitos pesquisados. Isso implica considerar os olhares, o gestual, as falas, as expressões como elementos essenciais para a pesquisa. Dessa forma, utiliza-se de Primavesi (2007, p. 05), quando ressalta o papel do equilíbrio natural-social:

[…] na natureza há muitas coisas para as quais não temos respostas e para muitas respostas dizemos: “isso não é científico!” Nesses casos, pode até ser que as nossas ciências ainda não descobriram as respostas, mas a natureza tem tal dinâmica há milhares de anos e vai continuar com esse jeito de trabalhar. Porém, este equilíbrio natural não pode ser mantido pela agricultura química. Quando se usa agrotóxicos, por exemplo, nas folhas de feijão, mata-se o parasita, mas a folha fica doente. O parasita não vem em primeiro grau, o primeiro é a deficiência. Depois é que vem o parasita comer a substância que a deficiência não consegue ou permite formar.

Como exemplo pode-se citar o resgate do cultivo e da cultura de sementes crioulas (Figura 4), uma alternativa socioeconômica e ambientalmente adequada na medida em que implementa práticas de produção e trabalho autônomas e não utilizam agrotóxicos, pois compreende e implementa ações em acordo com as condições sociais e edafoclimáticas de cada região.

Figura 04 - Colheita de sementes crioulas (milho) na Comunidade São Domingos Catalão/Goiás/Brasil.

Fonte: Arquivo do GETeM UFG/Catalão/GO/Brasil

Entretanto, essas lições sequer são propagadas pelos agentes do capital, pois os capitalistas são portadores do progresso que, ao ser ideologizado pelas elites, efetiva-se como verdade absoluta e a única materialidade possível. Por isso, enquanto pesquisadores devemos (des)velar estas ações e expor que existe um pacto de alianças que não apresenta as contradições que são, inclusive, condição para a sua operacionalização; que a insistência em interpretar o Cerrado goiano apenas pela ótica oficial pode aniquilar as trajetórias espaciais e temporais dos Povos Cerradeiros, bem como proporcionar uma verdadeira amnésia socioespacial e histórica sobre parte da memória.

Isso, contudo, não acontece como se o espaço e os seus lugares fossem estáticos. Suas rugosidades, os signos incrustados na memória de seus sujeitos, passados de geração para geração, as comunicações de suas formas e de seus fixos entram nas práticas socioculturais e alçam movimento nas funções, o que gera o matizamento de sua especificidade – e das possibilidades de, em seu seio, produzir a vida. Compreender essa especificidade é fonte primordial para o sujeito que deseja deliberar sobre a sua ação, sobre a sua intervenção no mundo pelo espaço e a representação que faz sobre o outro e sobre si mesmo.

Uma das formas de responder a esta indagação é partir da premissa de que as práticas socioculturais se transformam em práticas espaciais em um movimento constante e dialético, ou seja, as questões materiais incidem diretamente nas questões imateriais e vice- versa. O morar e as práticas alimentares, comumente caracterizados pelo sentimento de pertencimento, bem como as práticas socioculturais são tratados plasticamente nas empresas rurais e, na maioria das vezes, só existem por imposições normativas. Assiste-se assim a reprodução de verdadeiras vilas operárias nas “antigas fazendas” e a construção de alojamentos que reportam a organização militar e ao modelo fordista de produção do início do século XX.

Barthes (2001, p. 208) ao se referir à semântica dos objetos diz que o objeto é o homem agindo sobre o mundo, modificando o mundo, estando no mundo de maneira ativa; o objeto é uma espécie de mediação entre a ação e o homem e, portanto, não é inócuo, sempre fornece sentidos. Nessa perspectiva, percebe-se que, muito mais que um estilo arquitetônico moderno, essas construções (as instalações das empresas rurais) simbolizavam um novo modelo de vida. É a tentativa de normatização da vida por meio dos modelos arquitetônicos. É a sobreposição sociocultural. É a forma moderna tentando se impor e se contrapor aos padrões e valores tradicionais conforme as formas espaciais, materializadas nos novos modelos de moradias, nas práticas alimentares dos cerradeiros, entre outros.

Neste sentido, ao se avaliar as transformações materiais e imateriais de acordo com os trabalhos de campo pode-se afirmar que os territórios em Goiás são ao mesmo tempo ricos e miseráveis, tradicionais e contemporâneos, lentos e rápidos. Enfim, as contradições do capital estão nítidas em suas paisagens e em suas espacialidades. Mas como essas transformações influenciaram o imaterial? Qual a consequência dessas transformações na cultura e na memória dos Povos Cerradeiros? Por que o Cerrado goiano configura-se como territórios em disputa?

Por conta da chegada de migrantes de várias partes, destacando-se aqueles oriundos do Sul do país; da transformação do modo de produção, decorrente da reestruturação produtiva do capital que exige novas matrizes espaciais; da mudança do rural para o agrícola, aliada ao processo de urbanização da contemporaneidade, entre outros fatores, o Cerrado (população e paisagem – objetos e ações) se constitui territórios em disputa. A aparência pode ser moderna e cosmopolita, mas a essência ainda é tradicional. Há, aqui, a fusão de tempos desiguais num mesmo território. É uma encruzilhada de tempos.

Essa encruzilhada de tempos pode ser observada na reinvenção das práticas socioculturais dos camponeses e trabalhadores da terra que, expulsos dela se reterritorializam nas áreas urbanas. É comum nas cidades goianas, principalmente nas áreas periféricas, os festejos de folias de reis, procissões em devoção aos santos, fogueiras e festas juninas, fogões a lenha etc. Usos, costumes, tradições, crenças e modos de vida passando pelo processo de desterritorialização e reterritorialização. Esse processo também acontece com os migrantes e com as populações que já eram consideradas urbanas. Há um movimento constante de trocas, mudanças e enraizamentos. Existe um embate cotidiano entre o local e o global, como também níveis distintos de integração e até a fusão em determinados momentos.

E é por isso que apesar de a modernização dos territórios cerradeiros ter promovido, em nível do discurso, a homogeneização espacial, persistem práticas socioculturais cheias de símbolos: rurais, tradicionais, modernos, que imbricados constituem teias e tramas complexas.

Essa reflexão é fundamental para a Geografia, pois o que está em jogo é a defesa dos territórios (camponês, indígena, quilombola, ribeirinho, seringueiro, cerradeiro etc.). A defesa das condições de vida e de relações adequadas à natureza é possível a partir da garantia da permanência e do acesso a terra a partir de uma reforma agrária regionalizada e sustentável, que efetivamente assegure dignidade aos trabalhadores/camponeses e consiga incorporar os saberes da vida. Assim, deve-se levar em conta as especificidades do solo, do clima, dos recursos hídricos e, principalmente, os saberes/fazeres, as experiências e vivências dos sujeitos cerradeiros.

Considerações finais

O cruzamento dos saberes adquiridos nos estudos e pesquisas com as vivências de campo possibilitaram que este artigo fosse produto dessas atividades simultâneas e integradas. Com efeito, a sua realização nos proporcionou entender que as leituras sobre o Cerrado não podem ser feitas de maneira fragmentada ou parcial. Um olhar integrado que possa contemplar o material e o imaterial é imprescindível para que se entenda a dinâmica socioespacial, pois oferece elementos para uma análise mais próxima das realidades existentes no cotidiano.

A ocupação e apropriação do Cerrado goiano são resultantes das relações humanas que, por conseguinte, espelham as suas histórias de vida, grafando-as nos territórios. E, assim, ora o Cerrado goiano é objeto de exploração, ora é objeto de preservação; ora é tradicional, ora é contemporâneo, demonstrando as contradições entre normas e vidas. Assiste-se claramente a essa transformação. Primeiro explorou-se exaustivamente a terra; agora a água e, mais recentemente, a exploração ocorre também com as práticas socioculturais dos Povos Cerradeiros e como o processo é dialético existem contradições e existem (Re)Existências.

Essa análise leva-nos a sintetizar que o Cerrado goiano encontra-se em uma encruzilhada de tempos e é um mosaico de territórios em disputa, onde se assiste a estratégias diversas dos setores hegemônicos do capital e as (Re)Existências dos cerradeiros na luta pela terra, pela reforma agrária, pela água e contra as barragens, pelos territórios da vida. Estudar o processo de ocupação e apropriação é se deparar com o tradicional e o moderno, com o local e o global, com o valor de uso e o valor de troca, enfim, é perceber que existem divergentes e diversas forças em movimento. Que os conceitos de produtivo ou improdutivo instaurados no seio da sociedade, normalmente estão carregados de símbolos, signos, significados e significantes e, por conseguinte, não nascem do esmo e ao surgirem se disseminam por toda a sociedade como uma verdade absoluta e única.

Temos insistido em elaborar algumas indagações. Mas, afinal, será possível inserir o Cerrado goiano no mercado globalizado e preservar suas riquezas respeitando a cultura e a memória dos Povos Cerradeiros? Será que este modo de produção almejado é compatível com os programas de sustentabilidade? Até que ponto as “preocupações”, tanto dos setores públicos como da iniciativa privada, com a preservação das riquezas territoriais são reais?

Desta forma, é necessário conhecer os diferentes usos e as formas de exploração da terra, contrapondo-se ao discurso hegemônico do agrohidronegócio centrado na incorporação das terras “improdutivas” e na potencialização da produção e da produtividade e que não reconhecem outros usos da terra e da água. Esse discurso precisa ser avaliado e ao fazê-lo é urgente reafirmar a viabilidade social e econômica de políticas públicas que assegurem a produção de alimentos para a população local/regional de forma saudável para os camponeses/trabalhadores e possa assegurar a sustentabilidade.

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Notas de Rodapé

  1. Segundo Santos (2001, p. 47) […] tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônica e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados. A economia pobre trabalha nas áreas onde as velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as firmas hegemônicas.
  2. O conceito de agricultura de subsistência, não expressa o universo dos camponeses, tampouco dos sujeitos da terra, pois estes produzem alimentos, possuem criações de amimais e condições adequadas para sua Existência. Subsistir é estar abaixo das condições de Existência. E os camponeses produzem uma agricultura da fartura, da abundância com grande quantidade e diversidade de alimentos e similares.
  3. Esse conceito de território disputado pode ser entendido a partir de Haesbaert (2004, p. 121), quando afirma que […] o território é o produto de uma relação desigual de forças, envolvendo o domínio ou controle político- econômico do espaço e sua apropriação simbólica, ora conjugados e mutuamente reforçados, ora desconectados e contraditoriamente articulados. Sendo assim, o território seria o resultado do entrecruzamento de múltiplas relações de poder, sejam aquelas mais diretamente ligadas a fatores econômicos-políticos, isto é, de ordem mais material, sejam aquelas relacionadas às questões de caráter mais cultural, com ênfase no poder simbólico. Essa perspectiva, de acordo com Haesbaert (2004), somente é possível a partir da compreensão do espaço como um “[…] híbrido entre natureza e sociedade, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e idealidade, numa complexa interação tempo-espaço” (p. 79) e, portanto, um espaço múltiplo e nunca indiferenciado. Desse modo, essa abordagem relacional do território conforma-se enquanto tal não apenas pela definição deste dentro de um conjunto de relações histórico-sociais, mas também por abarcar uma complexa relação entre processos sociais e espaço material.

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