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26.06.2017

Terra, trabalho, alimentos e energia renovável

Brian Garvey, Francis Vinicius Portes Virginio, Russell Pepper

Os assentamentos de reforma agrária no Brasil são aqueles nos quais os trabalhadores rurais conseguiram ocupar e obter o direito a trabalhar na terra que eles vivem agora. Sua existência é a prova extraordinária da resiliência dos trabalhadores rurais ou sem-terra no Brasil e sua determinação para que a terra estivesse disponível ‘para aqueles que trabalham nela’. A ausência de apoio político, financeiro e técnico a esses assentamentos, entretanto, significa que a situação dessas pessoas é frequentemente precária e a ambição coletiva de sustentar a produção alimentícia nessas comunidades é frustrada.  O Brasil, assim como muitos outros países, tem um sistema energético centralizado e fortemente dependente de massivos projetos petrolíferos, hidroelétricos e, mais recentemente, bioenergéticos.

Isso significa que, frequentemente, comunidades rurais, em virtude de sua localização ou “invisibilidade” perante às decisões e investimentos governamentais (mais uma vez, um fenômeno global), não estão conectadas às redes elétricas ou estão destinando grande parte de seus recursos financeiros para pagar pela energia elétrica. Dessa forma, os residentes dessas comunidades rurais e em terras ocupadas, tem de, constantemente, queimar madeira para cozinhar e aquecer a água. Algo que coloca pressão ainda maior sob seus recursos escassos ou os torna dependentes de custosos e poluidores geradores de energia (gasolina/diesel). Essas práticas têm oferecido sérias implicações para o meio ambiente local e saúde dessas pessoas. Ainda assim, muitas famílias não conseguem arcar com esses custos e vivem sem acesso apropriado à energia. Além disso, mesmo quando conectadas à rede nacional de energia, as comunidades, dependentes de agricultura em pequena escala, são pressionadas pelos altos custos da energia elétrica. Sendo assim, os gastos financeiros para obtenção de energia é um elemento diferencial entre abastecimento de água para uso doméstico ou para aumento da produção da plantação local.

Deste modo, é interesse comum desses assentamentos e de organizações sociais apoiá-los a produzir ou facilitar o acesso às formas alternativas de energia que sejam menos custosas e originárias de recursos naturais disponíveis localmente a fim de melhorar a segurança energética e, por sua vez, melhorar a capacidade produtiva dos assentamentos.

Tendo este conjunto complexo de questões desafios como disparo, foi desenvolvido estudo piloto do projeto “Terra, trabalho, alimentos e energia renovável”, por um time de pesquisadores em parceria com os assentamentos agrários “2 de janeiro” e “Bela Vista”, no estado de São Paulo e “Maria Cícero das Neves” no estado de Goiás a fim de avaliar potenciais fontes locais de energia e sítios para produção de energia renovável; identificar os desafios em relação à qualidade, utilização, governança e acesso local aos recursos naturais para produção de energia renovável e criar estratégias para geração de energia renovável, trabalho e benefícios econômicos a partir deste potencial identificado.

 

O princípio orientador deste trabalho e seus métodos é a descentralização da produção energética e, assim, a transferência de poder às mãos das comunidades locais. O projeto deve ser acompanhado de práticas decentralizadoras reflexivas sobre como produzimos conhecimento, como planejamos, desenvolvemos e tomamos decisões a respeito desse projeto e outros tantos similares. Deste modo, a pesquisa deve considerar as dinâmicas sociais, culturais, ambientais e econômicas locais.  Entende-se que a autonomia de cada grupo necessita ser respeitada, mas o objetivo (de aumento da democracia sobre o uso dos recursos naturais e da terra bem como de melhoria das condições de vida através da integração energética e produção alimentícia) é algo compartilhado entre todos. É em direção a esse objetivo que o conhecimento compartilhado dos envolvidos nesse projeto é valorizado e entendido como essencial.

A pluralidade do time acadêmico elaborado aqui reflete o reconhecimento que as soluções técnicas não são o único componente necessário para constituir comunidades genuinamente sustentáveis, mas também a ampla compreensão das distintas características sociais, ambientais e culturais desses grupos: Paul Tuohy e Russell Pepper, Escola de Engenharia, Universidade de Strathclyde; Brian Garvey, Paul Stewart e Francis Vinicius Portes Virginio, Escola de Negócios, Universidade de Strathclyde, Mike Danson, Escola de Ciências Sociais, Universidade de Heriot-Watt; Larissa Mies Bombardi, Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, e Catalina Silva Plata (Universidad de los Andes, anteriormente vinculada a Universidade de Strathclyde).

O projeto recebeu apoio da Federação dos Trabalhadores Rurais Assalariados de São Paulo, e os recursos foram disponibilizados pelo EPSRC Global Challenges Research Fund, “Major Tom to Ground control” e Scottish Universities Insight Institute.

O que foi feito

O projeto piloto foi desenvolvido com 40 famílias residentes em três assentamentos rurais, as quais foram aplicados questionários sobre a demografia local, educação, renda, trabalho, plantações, fertilizantes, pesticidas, herbicidas, comércio local, atividade econômica, treinamento, governança e organizações comunitárias, acesso a serviços e suporte técnico, questões ambientais, demanda de energia e conhecimento sobre sistemas de energia renovável. Nove grupos focais e quatro entrevistas com lideranças comunitárias foram conduzidas para melhor compreender as estruturas econômicas e organizacionais locais.  Além disso, foi desenvolvida uma avaliação técnica do potencial de energia renovável local a partir de fontes naturais e resíduos orgânicos. Na parte final deste projeto, são resumidos os elementos considerados prioritários pelos participantes em suas respostas. Os elementos são temas relacionados ao trabalho, à saúde e aos meios de subsistência, ao meio ambiente local e ao uso e potencial de energia. Esses resultados são apresentados aos assentamentos sob a forma de perguntas para que a comunidade possa com os pesquisadores e organizações de apoio refletir sobre essas questões. Essas respostas coletivas constituem a base para a elaboração conjunta e acordada de uma estratégia comunitária.

Abaixo são apresentados os elementos chave para cada comunidade, destacando questões particulares relacionados à disponibilidade de água, custos de energia e estrutura organizacional bem como a ausência de apoio governamental.  A evidente aspiração em relação às energias renováveis também reflete aspirações mais abrangentes de autonomia social e econômica dos assentamentos. Entretanto, a falta de informação prévia sobre as possíveis tecnologias e os custos de compra estão entre os fatores que impedem o engajamento coletivo nesse ponto.  Além disso, preocupações mais imediatas sobre a disponibilidade e qualidade da água nesses assentamentos e os impactos desses na produção demonstram a importância de endereçar os desafios energético junto aos demais elementos vistos como prioritários pelas comunidades.

Comunidade de 2 de janeiro

2 de janeiro é um assentamento de reforma agrária no estado de São Paulo, situado a aproximadamente 20 km a oeste da cidade de São Carlos. Foi estabelecido em 2011 depois da uma ocupação de dois anos e hoje conta com 42 famílias residentes.

Mais de um terço da comunidade respondeu aos questionários aplicados por dois pesquisadores em novembro de 2017.  Para garantir que uma ampla gama de opiniões fosse registrada, esses quatorze questionários foram complementados com entrevistas estruturadas com grupos de adolescentes, mulheres e líderes comunitários.

Dados demográficos

A maioria dos participantes tinha entre 41 e 60 anos, eram casados e tinham crianças entre 2 e 5 anos de idade. Cada residência tinha de 2 a 5 moradores, e todos os participantes estavam vivendo nos assentamentos por período médio de 6-7 anos. A renda média mensal dos moradores variava de R$ 0 a 2500 reais, sendo que a maioria dos moradores não recebia benefícios monetários adicionais. Metade dos participantes teve acesso de 0 a 4 anos de educação formal, outro um terço teve de 5 a 9 anos e um quinto dos participantes teve de 10 a 14 anos de educação; somente um participante teve acesso ao ensino superior.

Aproximadamente um terço dos participantes tinha um segundo trabalho fora dos assentamentos (i.e.  Além do trabalho que já realizavam em seus lotes). Esses trabalhos eram empregos sobre os quais os trabalhadores sentiam que eles não tinham controle: por exemplo, atividades de limpeza ou trabalhos em escritórios na cidade local de Descalvado. Quase todos os participantes disseram gostar ou adorar seu trabalhados nos lotes em contraste às respostas da metade dos participantes do outro grupo, os quais disseram que não gostavam do trabalho que realizavam fora do assentamento.

Agricultura

O assentamento é constituído por 42 lotes, sendo o tamanho médio de cada um cerca de 5-6 hectares, dos quais aproximadamente 3 hectares são usados para agricultura e o restante usado para a moradia, jardins e caminhos para carros etc.

Frutas e demais plantações. A maioria dos participantes cultivava abacaxis, cana de açúcar, eucalipto, limão, mandioca e manga. Alta porcentagem dos participantes também cultivava abacate, abóbora, acerola, amora preta, banana, caju, goiaba, laranja, lichia, maracujá e palmito.

As hortas individuais, com área de aproximadamente 100 a 1000 m², são recursos fundamentais e as únicas áreas que são irrigadas. Entretanto, os poços são comuns e simplesmente não há água suficiente para todos. Os moradores consideram que o aumento na disponibilidade de água poderia aumentar a área de cultivo de vegetais e assim a renda dessas pessoas.

Em sua maioria, as plantações são fertilizadas e os moradores, embora declararam que preferem não usar fertilizantes químicos, pesticidas e herbicidas (por exemplo, o Roundup), estão acostumados a usá-los devido a sua efetividade. Apenas um dos moradores questionados tinha 100% de sua produção orgânica e seu lote necessitava de maior tempo de trabalho que os demais devido a maior dificuldade de combater as pragas.  Apesar disso, foi observado que a maioria dos fertilizantes usados foram de compostos e resíduos orgânicos de animais do assentamento.

Acervo de animais. A maioria dos lotes tinha galinhas e vacas, abelhas, patos, peixes, gansos, cavalos, faisões, coelhos e, ainda, um pequeno número de lotes criava ovelhas. Muitos desses animais não estão alojados. Se estivessem, os residentes poderiam, potencialmente, aumentar a coleta de resíduos dos animais para uso desses como fertilizantes ou mesmo para atuarem como digestores de biogás. Por exemplo, em dois dos lotes participantes haviam mais de 10 porcos alojados. Esse número era o suficiente para produzir biogás a fim de abastecer a necessidade de consumo doméstico no cozimento de alimentos.

Existe um consenso que a ausência de recursos financeiros e de assistência de representantes governamentais, bem como a falta de conhecimento tecnológico, dificulta o aumento da produção da comunidade.

Por exemplo, a disponibilidade de mais recursos significaria que um lote poderia ter seu próprio poço de água e que uma área mais extensa poderia ser irrigada. Ainda, dois lotes participantes tinham fontes autônomas de água e, por isso, registravam maior renda que os demais.

Estrutura da comunidade e acesso à serviços

As respostas sugerem que o assentamento 2 de janeiro possui alto nível de coesão comunitária e orgulho das conquistas da comunidade.  A maioria dos moradores estavam envolvidos na venda da produção para o programa escolar de merendas, de forma que eles se encontravam semanalmente para organizar a venda.  Foram observadas evidencias de sólidas lideranças e quase todos os participantes acreditavam que a cooperativa local representava seus interesses, se sentiam envolvidos nas decisões da comunidade e estavam satisfeitos com o envolvimento e apoio que comunidade teve de especialistas externos no passado.

2 de janeiro está localizado a aproximadamente 20 minutos de carro da cidade de Descalvado, onde pode ser encontrada toda a infraestrutura local: escolas, hospitais, lojas e áreas esportivas.  Foi observado que os entrevistados mais jovens prefeririam permanecer vivendo no assentamento a se mudar para a cidade. Entretanto, a exceção da igreja local, não há centro comunitários no assentamento no qual a comunidade possa se encontrar, praticar esportes ou desenvolver atividade coletivas.

Comércio

A maioria dos moradores usavam suas plantações para consumo pessoal, com eventuais excedentes de produção sendo vendidos dentro do assentamento, em vendas à beira das estradas, porta a porta ou no programa da prefeitura local “Merenda Escolar” – pelo qual as comunidades abasteciam as escolas locais com frutas e vegetais para o almoço. Semanalmente, as comunidades recebiam encomendas e então em uma reunião decidiam quais seriam as residências do assentamento que iram prover os alimentos – algo que constitui substancial percentual da renda de muitos moradores. Foi observado que o sistema de planejamento de entrega para esse programa se beneficiaria de equipamentos tecnológicos. Por exemplo, as encomendas individuais das escolas estavam disponíveis em pedidos separados, mas não havia uma planilha que integrava automaticamente todos os pedidos e cálculo total de itens solicitados. Dessa forma, esses cálculos tinham que ser feitos manualmente.

Além da venda dos produtos agrícolas in natura, mais da metade dos moradores participantes também produzem outros itens para venda. Os produtos mais comuns são doces, geleias e queijos. As vendas são feitas em pequena escala em suas casas. Existe um consenso que a comunidade é limitada em sua habilidade para aumentar a comercialização dos produtos devido à falta de recursos financeiros, falta de autorização das autoridades responsáveis (ausência de licença, certificados sanitários etc.) e falta de contatos. Esses itens poderiam ser produzidos em maior escala se contassem com melhores instalações para essa finalidade e, potencialmente, com suas próprias fontes de energia renovável. Contudo, é evidente a falta de apoio institucional das autoridades para tanto.

Meio ambiente

O abastecimento de água ocorre a partir de um poço comum e é considerado de qualidade muito boa. Entretanto, foi mencionado que vestígios de amônia foram encontrados durante testes realizados no passado, o que é uma preocupação, tendo em vista que os canais subterrâneos de água podem estar poluídos por toxinas químicas derivadas de práticas agrícolas intensivas na região.

O abastecimento de água é o suficiente para o consumo doméstico dos moradores, estando disponível continuamente ao longo do ano. Entretanto, ele não é suficiente para a irrigação das plantações. Aproximadamente metade dos moradores reutilizam a água. Por exemplo, reutilizam a água da máquina de lavar roupas para lavar o quintal ou a água de lavar os pratos para irrigação da plantação. A maior quantidade de água, no entanto, é usada para irrigar as plantações. Dessa forma, uma solução precisa ser encontrada.

O solo é um problema na área, tendo em vista que uma plantação de eucalipto previamente realizada (há cerca de 70 anos) degradou o solo. Isso faz com que o solo precise de cal para correção do pH e tratamento de sua acidez. Além disso, existe a necessidade de contratação de um especialista para essa função e o uso de custosos equipamentos para a remoção dos tocos das árvores remanescentes. Dessa forma, algumas áreas não são utilizadas para agricultura, sendo somente pastagens comuns. Apesar disso, há um consenso de que a qualidade da terra tem melhorado desde que os assentados começaram a viver ali, devido ao trabalho deles e a variedade das plantações. A melhora do solo é uma prioridade coletiva. Esse é o segundo problema ambiental mais importante, logo após a questão da água.

Em geral, os moradores estão satisfeitos com a qualidade do ar, mas existe uma preocupação com a poluição causada pelas usinas da região que utilizam aviões para pulverizar as plantações. Metade dos entrevistados acreditavam que a biodiversidade diminui na região enquanto alguns achavam que aumentou. Entretanto, a visão comum é de que a biodiversidade poderia ser maior a partir do cultivo de plantas e árvores nativas, redução da caça e interrupção das práticas de queima da cana de açúcar e pulverização realizada pelas usinas.  Neste sentido, as entrevistas sugerem que haveria maior proteção da biodiversidade local se o governo considerasse essa região como área de proteção ambiental. Por fim, a melhora da biodiversidade é vista como uma área prioritária e foi considerada a terceira questão ambiental mais importante.

Potencial para energia renovável

Demanda por energia: Foi realizada a leitura dos medidores de eletricidade presentes em cada residência a fim de estimar o consumo diário de cada residência. Além disso, os moradores foram perguntados sobre o tipo e o número de aparelhos elétricos utilizados. Foi observada grande variação nas necessidades de cada residência, variando entre 2kWh/dia até 40kWh/dia. Em relação aos custos, esta variação representava gastos médios entre R$30 e R$200 por mês.

Em geral, cada residência tem suas necessidades básicas atendida por 8 lâmpadas, 2 telefones móveis, uma televisão, um rádio, uma geladeira, um chuveiro e uma máquina de lavar. Qualquer possível futuro sistema de energia renovável deve ser minimamente capaz de atender às demandas de energia desses aparelhos – aproximadamente 10kWh/dia. Entretanto, um sistema ideal seria capaz de fornecer mais energia caso haja aumento das demandas em decorrência de aumento das rendas ou mesmo aumento do número de famílias na comunidade.

Potencialmente, o sistema de energia renovável mais adequado ao meio ambiente seria o uso de painéis solares fotovoltaicos combinados com baterias, sendo o sistema conectado à rede elétrica. A princípio, essa alternativa seria financeiramente a mais viável, considerando o preço atual da geração de energia elétrica e tempo necessário para o retorno do investimento inicial.

Em outras palavras, existe na comunidade o potencial para a criação de um sistema energético com 100% energia renovável. Aproximadamente, a geração de 6 kW por moradia em um sistema solar fotovoltaico necessitaria de uma área de captação de 40m². Entretanto, o sucesso desse sistema depende significativamente das condições financeiras, uma vez que o novo sistema de abastecimento teria de fornecer energia a preços mais baixos que os atualmente praticados pela rede de eletricidade disponível. Dessa forma, a existência de incentivos governamentais ou externos seria necessária para a aquisição do sistema ou posterior venda do excedente de energia gerada pelo sistema à rede elétrica.  Por exemplo, os dados sugerem que o preço médio de atualmente praticado é de R$ 0,50/kWh. Nesse sentido, se a energia gerada pelo sistema alternativo fosse vendida a R$ 0,10/KWh, o sistema solar fotovoltaico sem bateria poderia custar menos de o custo atual de R$ 0,50/kWh, o que o faria a venda ser financeiramente viável.

Dado o caráter coletivo da comunidade, seria possível o desenvolvimento de um número de projetos ou serviços que poderiam se beneficiar do fornecimento de energia renovável. Por exemplo, um centro comunitário ou amplo centro de refrigeração que possa conservar a comida, espremedor de frutas para a comunidade, processador de geleia ou despensa comunitária. Por exemplo, um centro de refrigeração de 8 m² necessitaria de aproximadamente 20 kW do sistema solar fotovoltaico em combinação com baterias para ele seja completamente independente de rede elétrica.

Comunidade de Bela Vista

A Bela Vista fo Chibarro é um assentamento de reforma agrária, menos do 40 km da Araraquara, no estado de São Paulo. Foi fundado em 1989 com 171 famílias após uma ocupação, por trabalhadores rurais, das terras de uma usina da acçucar que entrou em processo de falência.

A comunidade respondeu aos questionários aplicados por dois pesquisadores em novembro de 2017. Para garantir que uma ampla gama de opiniões fosse registrada, esses quatorze questionários foram complementados com entrevistas estruturadas com grupos de mulheres e líderes comunitários.

Dados demográficos

Todos, exceto um participante, tinham idade superior a 41 anos, dentre os quais metade tinha mais de 60 anos de idade.  Quase todos os participantes eram casados e tinham de 1 a 3 filhos. Cada residência tinha em média de 1 a 6 moradores e quase todas dos participantes viviam no assentamento por mais de 26 anos. A renda média mensal dos moradores variava entre 501 e 4000 reais, moradores não recebia benefícios monetários adicionais. Um quarto dos participantes teve acesso de 0 a 4 anos de educação formal, um terço teve de 5 a 9 anos, outro um terço dos participantes teve de 10 a 14 anos de educação; somente um participante teve acesso ao ensino superior.

Um terço dos participantes tinha um segundo trabalho fora dos assentamentos (i.e.  Além do trabalho que já realizavam em seus lotes). O segundo trabalho representava para dois terços desse grupo um quarto de sua renda e era a fonte integral de renda de outro um terço dos participantes.

Esses trabalhos eram empregos sobre os quais os trabalhadores sentiam que eles não tinham controle: por exemplo, guardas de segurança ou trabalhos em escritórios na cidade de Araraquara. Todos os participantes disseram “gostar” ou “adorar” seu trabalhados nos lotes. Metade das pessoas disseram que trabalhavam com desconforto físico em parte de sua jornada de trabalho, enquanto a outra metade disse que o desconforto é permanente e causado em grande parte pelas condições de trabalho.

Agricultura

O assentamento é constituído por 176 lotes, sendo o tamanho médio de cada um em torno de 15 hectares, dos quais aproximadamente 12.5 hectares são usados para agricultura e o restante usado para a moradia, jardins e caminhos para carros etc. Essas hortas individuais, com área de aproximadamente 200 a 1000 m², são as únicas áreas que são irrigadas.

Frutas e demais plantações.  Dois terços dos participantes cultivavam mandioca, milho e bananas. Metade dos participantes cultivava eucalipto, cana de açúcar, café, manga e tinha hortas de vegetais e legumes. Essas hortas individuais, com área de aproximadamente 200 a 1000 m², são as únicas áreas que são irrigadas.

A maioria das plantações são fertilizadas e os moradores, embora declararam que preferem não usar fertilizantes químicos, pesticidas e herbicidas (por exemplo, o Roundup), estão acostumados a usá-los devido a sua efetividade. Apesar disso, foi observado que a maioria dos fertilizantes usados foram de compostos e resíduos orgânicos de animais do assentamento.

Acervo de animais. Em quase todos os lotes os moradores criavam galinhas, em metades deles criavam vacas e em um terço porcos. Além disso, alguns lotes também criavam gansos, perus, patos, porcos da índia, rolinhas, cachorros (para venda), cavalos e mulas.  Os cavalos e as mulas eram usados para auxiliar no trabalho realizado nos lotes. Muitos desses animais não estão alojados. Se estivessem, os residentes poderiam, potencialmente, aumentar a coleta de resíduos dos animais para uso desses como fertilizantes ou mesmo para atuarem como digestores de biogás. Por exemplo, haviam 100 porcos alojados, o que seria uma quantidade suficiente para produzir biogás suficiente para aproximadamente a necessidade de consumo doméstico no cozimento de alimentos de 4 famílias.

Existe um consenso que a ausência de recursos financeiros e de assistência de representantes governamentais, bem como a falta de conhecimento tecnológico, dificulta o aumento da produção da comunidade.  As entrevistas sugerem que a comunidade de sente abandonada pelo governo, em grande parte pelo foco de investimentos na produção de cana de açúcar. Além disso, os programas de assistência técnica foram interrompidos por motivos desconhecidas. Os dados indicam sentimentos mistos dos residentes sobre a utilidade desses programas.

Estrutura da comunidade e acesso à serviços

As respostas sugerem alto nível de envolvimento comunitário, com quase todos os participantes terem declarado um nível alto ou extremamente alto de envolvimento na comunidade. Eles também consideraram ter habilidade média ou alta de influenciar as decisões comunitárias. Entretanto, os dados indicam sentimentos mistos dos residentes sobre o orgulho em relação às conquistas da comunidade e clareza quanto aos planos para o futuro dela. Há evidencias mistas de liderança comunitária, com os moradores estando divididos entre a “Cooperativa” e a “Associação”. Quase todos os participantes tinham conhecimento de que essas organizações representavam seus interesses e de que a comunidade tinha apoio de especialistas externos. Bela vista tem infraestrutura como escolas, centros comunitários, centro médico, campo de futebol, lojas e bares. A comunidade está localizada a aproximadamente 20 minutos de carro da cidade de Araraquara, onde outros estabelecimentos podem ser encontrados.

Comércio

A maioria dos moradores usavam suas plantações para consumo pessoal, com eventuais excedentes de produção sendo vendidos. Aproximadamente um quarto dos participantes vende seus produtos a Cooperativa. Dois terços dos participantes produtores de cana de açúcar vendem sua produção para uma usina da região.  Além da venda das plantações, mais da metade dos moradores participantes também produzem outros itens. Os produtos mais comuns são queijos, manteiga, bebidas, doces e geleia. Entretanto, são produtos para consumo próprio e feitos em pequena escala em suas casas.

Existe um consenso que a comunidade é limitada em sua habilidade para aumentar a comercialização dos produtos devido à falta de recursos financeiros, falta de autorização das autoridades responsáveis (ausência de licença, certificados sanitários etc.) e falta de contatos. Esses itens poderiam ser produzidos em maior escala se contassem com melhores instalações para essa finalidade e, potencialmente, com suas próprias fontes de energia renovável. Contudo, é evidente a falta de apoio institucional das autoridades para tanto.

Meio ambiente

A água é encanada até o assentamento. A comunidade também possui um reservatório comum e tem acesso à um rio que cruza algumas parcelas. Sendo assim, a comunidade tem fontes variadas de água. Em geral, as pessoas usam o reservatório comunitário, o qual é gratuito para todos.   Entretanto, ele pode se esgotar em temporadas de secas, fazendo com que as pessoas busquem fontes alternativas. Neste caso, o uso de água encanada pode ser bastante custoso: um dos respondentes indicou despesas mensais de R$ 200 durante as temporadas de seca. A qualidade da água é considerada boa e tem sido assim desde que os residentes vivem ali. A oferta de água é suficiente e disponível ao longo do ano. Entretanto, alguns participantes disseram que gostariam de ter mais água ou construir um poço a fim de que pudessem ter uma horta ou irrigar mais suas plantações.

Além disso, um participante disse que os poços existentes estavam fornecendo menor quantidade de água. Existe uma suspeita que seja em decorrência do alto consumo das usinas da região.  Não há água suficiente para a irrigação das plantações.  Aproximadamente metade dos moradores reutilizam a água. Por exemplo, eles reutilizam a água da máquina de lavar roupas para lavar o quintal ou a água de lavar os pratos para irrigação da plantação. A água foi considerada o segundo problema mais importante, com a maioria das pessoas indicando que a melhora da água dever uma prioridade.

Em geral, o solo é de excelente qualidade, embora tenha sido indicado que a plantação de cana de açúcar no passado tenha deteriorado a qualidade dele e causado ligeira acidez. Há um consenso de que a melhora da qualidade da terra é uma área prioritária e que os compostos orgânicos podem contribuir com esse objetivo. O solo foi considerado o fator ambiental mais importante, com todos os participantes considerando que seja muito importante sua melhora.

Os moradores estavam satisfeitos com a qualidade do ar, como todos indicando que o ar era “bom ou “muito bom”. Existe, no entanto, preocupação com a poluição causada pelas usinas da região que realizam a pulverização aérea das plantações. Além disso, os participantes se queixaram do odor desagradável, sendo que um quarto dos participantes acreditam que o ar estava poluído por conta disso.

Há uma visão mistura em relação à qualidade da biodiversidade na área. Metade dos participantes acreditam que as plantas e os animais estão morrendo devido à indústria local e usinas, as quais utilizam técnicas de pulverização.  Além disso, embora a situação tenha melhorado desde que a queima da cana de açúcar foi banida, ainda há muitos incêndios nas estações de seca. Participantes sentem que a biodiversidade das plantas tem diminuído enquanto quase todos indicaram que a biodiversidade dos animais diminuiu ou mante-se estável.  Em geral, eles entendem que a biodiversidade diminuiu muito desde que eles começaram a viver no assentamento. Entretanto, a visão comum é de que a biodiversidade poderia ser maior a partir do cultivo de plantas e árvores nativas, redução da caça e aumento de leis para proteção da vida selvagem. Por fim, a melhora da biodiversidade é vista como uma área prioritária e foi considerada a terceira questão ambiental mais importante.

Potencial para energia renovável

Demanda por energia: As contas de eletricidade dos participantes foram coletadas a fim de estimar o consumo diário de cada residência. Além disso, os moradores foram perguntados sobre o tipo e o número de aparelhos elétricos utilizados. Foi observada grande variação nas necessidades de cada residência, variando de 1kWh/dia até 15kWh/dia.  Em relação aos custos, a energia elétrica tem custo médio de 0.41R$/kWh e as entrevistas indicam que individualmente os moradores tinham gasto médio de R$110/mês.  Isso sugere um gasto diário médio de 10kWh.

Em geral, cada residência tem suas necessidades básicas atendida por oito lâmpadas, dois telefones móveis, duas televisões, um rádio, uma geladeira, um ventilador, um chuveiro e uma máquina de lavar.  Aproximadamente, dois terços das residências tinham computadores portáteis.  Qualquer possível futuro sistema de energia renovável deve ser minimamente capaz de atender às demandas de energia desses aparelhos – aproximadamente 10kWh/dia. Entretanto, um sistema ideal seria capaz de fornecer mais energia caso haja aumento das demandas em decorrência de aumento das rendas ou mesmo aumento do número de famílias na comunidade.

Considerando a implementação sistema de energia renovável doméstico, um sistema autônomo (independente da rede elétrica) é tecnicamente viável, sendo que os esquemas do sistema dependem altamente do preço dos componentes (o sistema seria otimizado financeiramente). Dessa forma, os custos locais dos componentes precisam ser explorados antes que as soluções possam ser alcançadas.

Há na comunidade o potencial para a criação de um sistema energético com 100% energia renovável. Aproximadamente, a geração de 6 kW por moradia em um sistema solar fotovoltaico necessitaria de uma área de captação de 40m². Entretanto, o sucesso desse sistema depende significativamente das condições financeiras, uma vez que o novo sistema de abastecimento teria de fornecer energia a preços mais baixos que os atualmente praticados pela rede de eletricidade disponível.  Entretanto, as pesquisas preliminares indicam que esses incentivos estão indisponíveis no Brasil.

O grupo focal com mulheres revelou a interesse na aquisição de uma planta coletiva para o processamento de geleias, já que elas não conseguem fazer isso na escola local. Dado o caráter coletivo da comunidade, seria possível o desenvolvimento de um número de projetos ou serviços que poderiam se beneficiar do fornecimento de energia renovável. Por exemplo, um espremedor de fruta de 1.5Kw funcionando o dia todo das 6h às 18h (o que significaria o processamento de 150 kg/hora), teria o consumo total de 18kWh/dia. Dessa forma, isso seria viável e o consumo seria equivalente ao mesmo de duas residências.

Discussão

Os resultados preliminares da pesquisa demostram que fontes de energia renováveis ​estão potencialmente ​disponíveis para os assentamentos da reforma agrária. No entanto, sem a superação dos problemas econômico locais ou investimento externo nessas tecnologias ainda dispendiosas, sua realização é inviável. Esses resultados, os quais estão sendo discutidos com os assentamentos, destacam a importância de integrar essas tecnologias às prioridades sociais e econômicas correntes das comunidades. Atualmente, os assentamentos enfrentam novas dificuldades em função da redução de 90% nos recursos federais destinados ao plano agrícola para os assentamentos da reforma agrária, o que reduziu significativamente a renda das comunidades. Dessa forma, essas são as questões que colocamos para as comunidades e as quais estamos coletivamente buscando responder.

Como podemos melhorar o volume de água disponível para as residências e atividades agrícolas? Como podemos assegurar que as fontes de água não estão sendo contaminadas? Como podemos reduzir o número de toxinas da nossa atividade agrícola? Existe algum apoio financeiro ou técnico na esfera regional, estadual, nacional ou internacional para o uso de energia solar? Como podemos planejar a longo prazo a produção e a venda de produtos alimentícios, particularmente em relação ao programa de venda às escolas, para que se assegure a geração de renda estável?

Foi Paulo Freire com Myles Horton quem disse uma vez, “O Caminho Se Faz Caminhando”. Nesse sentido, a descentralização da produção de energia renovável com a produção sustentável de alimentos continua sendo um sonho diferido, mas o seu caminho está em construção.

Referências: Paulo Freire e Myles Horton (1986) “O Caminho Se Faz Caminhando”. Vozes, University of Texas, pp. 229.

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