por: Cristiana Losekann
(Doutora em Ciência Política e Professora da Universidade Federal do Espírito Santo)
O Termo de Ajustamento de Conduta é um instrumento jurídico utilizado, primeiramente, na década de 1980 (Lei nº 7.347/85) e ampliado a partir do Código de Defesa do Consumidor em 1990 (Lei nº 8.078/90). Criado para ser um procedimento extrajudicial que permitiria a negociação de um dano coletivo entre as partes envolvidas, ele vem cada vez mais sendo usado sob a justificativa de se evitar a judicialização dos conflitos que abarrota o judiciário de processos. Essa justificativa encontra fundamentos no real descompasso entre as demandas sociais ao judiciário e sua capacidade burocrático-institucional para responder agilmente às demandas. Desse descompasso decorreria a demora no julgamento dos processos. Um outro argumento comumente utilizado em favor do TAC ampara-se na ideia de que nosso Judiciário, enraizado historicamente nas classes dominantes, tende a favorecer mais aos interesses do establishment do que aos interesses coletivos e sociais que porventura os desafiem.
Ainda que possa existir verdade nas argumentações que fundamentam a preferência pelo uso do TAC é necessário discutir quais as implicações na sua adoção. Obviamente, as implicações podem ser variadas e, assim como a judicialização, acarretar em efeitos negativos e/ou positivos.
A análise de efeitos nunca permite uma transparência total. Não é possível observar todos os aspectos envolvidos, os atores e as circunstâncias que podem estar relacionados a uma determinada ação são sempre mais complexos do que a nossa capacidade de observação. Contudo, a opacidade inerente a esse exercício não deve ser impeditiva de sua execução, em tentativas que buscam problematizar nossas normas e condutas procurando ajustá-las e melhorá-las.
Aqui, escolhemos apresentar uma discussão geral de alguns efeitos da substituição de procedimentos judiciais pelo acordo extrajudicial e uma discussão específica sobre os efeitos simbólicos que diferentes estratégias de reparação de injustiças podem provocar nas emoções dos sujeitos e nos afetos compartilhados na sociedade.
Em uma perspectiva crítica ao uso do TAC, trabalhos recentes que analisam a aplicação desse instrumento em conflitos socioambientais sustentam que há nele uma concepção equivocada subjacente de aposta na possibilidade de consensualidade. O problema central estaria na ideia de que seria possível chegar em uma solução para o conflito na qual todas as partes ganham. Nos conflitos socioambientais onde estão, em geral, envolvidas grandes empresas enquanto réus essa ideia do ganho geral e equilibrado que dissolve o conflito é ilusória, e pode ser, também, perversa ao sustentar uma aparência de que tudo está resolvido, camuflando problemas históricos e estruturais, tais como, a injusta distribuição fundiária e a opressão sobre os povos indígenas, entre outros problemas.
O TAC parece ser um instrumento muito valioso para as empresas. Reduz os gastos com custas judiciais, diminui os índices de envolvimento em disputas judiciais que impactam na credibilidade dos negócios, evita que a empresa carregue o rótulo de “culpada” em caso de decisões desfavoráveis. Ademais, entrando na dimensão simbólica do direito na sociedade, sabemos que ser réu em um processo já é por si só algo que afeta a imagem do acusado, sobretudo, para empresas. Nesse sentido, ao fazer um acordo a empresa pode se mostrar disposta a corrigir sua conduta, ajustar-se ao invés de ser ajustada.
Mas, indo além, há algum tempo os setores de comunicação e responsabilidade corporativa das empresas descobriram que era possível rearticular discursivamente a imagem de culpadas lançando-as como defensoras dos direitos que elas próprias descumprem. Isso tem ocorrido muito através de ações e campanhas produzidas, geralmente, por determinação de TACs. Assim, uma empresa que polui transforma-se em amiga do meio ambiente e aquela que escandalosamente promove o trabalho análogo à escravidão torna-se paladina das causas dos trabalhadores. Esse processo de rearticulação discursiva é feito quando, por exemplo, se permite que a empresa coloque sua logomarca nos materiais (cartilhas, filmes, livros, cartazes, etc.) produzidos no contexto de um TAC. Nesse caso, os produtos das campanhas além de questionarem as condutas desajustadas, revogam a conduta ilegal das empresas promotoras e ainda colocam a empresa como uma amigável promotora das boas causas. Não há, assim, promoção da justiça e o instrumento extrajudicial torna-se uma Tensão Anulada por Contrato, onde elimina-se a insurgência do conflito e sua legítima conquista das atenções da burocracia em nome do bom funcionamento das instituições ou da esperança que se deposita na aplicação generalizada de teorias consensualistas de mediação.
Isso significa dizer que o TAC é ruim?
Não. Como avisamos, não há transparência na análise de efeitos, o analista não tem controle absoluto das variáveis.
Do ponto de vista dos sujeitos injustiçados envolvidos, tais como os trabalhadores escravizados pela OAS, esta pode ter sido uma forma concreta de alcançar alguma dignidade e, assim, o instrumento agir como um concreto Trabalho de Arrancar do Cativeiro. As ações propostas em um TAC podem servir para alertar de forma ampla a sociedade sobre um crime, uma conduta que se pensa extinta, como a escravidão, e que continua a ser praticada pelos poderosos. Além disso, assim como as empresas têm suas formas de rearticular discursivamente os elementos, transformando prejuízos em benefícios; os verdadeiros defensores dos direitos dos trabalhadores também podem operar esses rearranjos evidenciando as raízes profundas que essas práticas empresariais perversas têm.
Ora, esse texto mesmo faz parte de um TAC e está alertando sobre os perigos que podem estar implicados nele.
Os efeitos são amplos e complexos também porque embora seja extrajudicial o TAC não é extrajurídico, é desenvolvido no âmbito das instituições e atores do direito os quais produzem efeitos simbólicos enormes sobre as relações sociais. Como já foi amplamente desenvolvido em teorias para todos os gostos (Foucault, Bourdieu, Derrida, Lacan, Habermas, para citar alguns) a lei, suas instituições de suporte e seus atores são autoridades constitutivas da vida social e se, por um lado, são moldadas pelas provocações de fora são, também, norteadoras das ações e discursos do mundo da vida.
Nesse sentido, a simples conquista da atenção de operadores do direito e oficiais do Estado já implica em uma operação de combate à injustiça em questão, com implicações concretas e simbólicas. O fato de que esta situação chegue aos órgãos competentes, seja denunciada e passe a ser elaborada pelos rituais jurídicos já pode ter provocado, para ficarmos no caso específico da OAS, uma ruptura concreta com as condições de indignidade provocadas pela empresa OAS.
Mas, o terreno das implicações simbólicas e dos afetos não é menos importante. Compreender os efeitos simbólicos do uso de instrumentos jurídicos requer admitir que existem dinâmicas emocionais envolvendo o direito e essas são fundamentais para a dinâmica dos conflitos. Por serem simbólicos, esses efeitos não são menores. É por articulação simbólica que definimos o que é aceitável ou não. É por articulação simbólica que uma empresa pode transformar-se de culpada à insuspeita e vice-versa.
Somos permeados por emoções morais as quais colocam nossos afetos em esquemas valorativos, produzindo sentimentos como vergonha e culpa. As emoções morais são sentimentos em julgamento e o TAC é também um Território de Afetos Construídos onde esses julgamentos se processam
O trabalho análogo ao escravo manipula as urgências corporais, produzindo sentimentos da ordem dos impulsos: fome, exaustão, urgências biológicas, vícios (observar as condições dos alojamentos dos trabalhadores no relatório). A perversidade dessa prática está, também, na articulação com relações sociais que dão falsa sensação de liberdade (o anúncio da oferta de trabalho no jornal, a existência de contrato, o acesso ao comércio e bens de consumo) e criam situações de mútua dependência entre pessoas igualmente frágeis (comerciantes locais e os trabalhadores que se endividaram para saciar a fome). Essa manipulação das emoções morais resulta na emergência da vergonha, culpa e medo, produzindo aí a verdadeira armadilha da situação de indignidade e escravidão. O sujeito se sente responsável pela situação degradante a qual está submetido.
Mas, são, também, mecanismos emocionais que podem afetar os outros e fazê-los perceber a injustiça nessa situação. É a capacidade de exercício da alteridade que permite denunciarmos o Trabalho escravo. A lei que cria esta caracterização não opera por si. É no exercício da interação entre sujeitos que reside a bateria moral capaz de denunciar e eliminar esse tipo de subordinação. A bateria moral, segundo James Jasper, é um par de emoções que interagem em contraste, gerando, como em uma bateria mesmo, uma força que impulsiona a ação.
Portanto, um elemento fundamental para a realização ampla da justiça não está na natureza judicial ou não dos instrumentos usados (ainda que existam relevantes efeitos como mostramos inicialmente), mas, principalmente, na entrada de atores do direito e na interação que se produz entre eles e os trabalhadores. Assim, o instrumento escolhido, seja TAC ou litígio, não encerra em si os efeitos da esfera jurídica no caso da injustiça em questão. É nas interações entre os trabalhadores escravizados e os oficiais do Estado que reside uma grande possibilidade de constituição dos sujeito políticos.
Nessa interação pode se constituir uma bateria moral do encontro entre esses dois sujeitos em situações opostas. Rituais de interação são as principais formas de elaboração das emoções em um conflito, e as arenas jurídicas estão cheias de rituais de interação.Nesse encontro coloca-se em contraste a situação de degradação dos trabalhadores e a postura dos oficiais que, deslocados de seus gabinetes pela causa desses trabalhadores, carregam em si e na formalidade de suas próprias vestimentas todo um pacote de signos típicos do universo do direito que têm como efeito demonstrar adequação e correção de condutas. Importante notar que não se trata de considerar o ator em si, na figura do promotor, defensor etc. uma espécie de herói responsável por reconhecer a situação de injustiça e agir. A interação é entre sujeitos, é um mecanismo que liga uma dimensão interna e externa e que é capaz de provocar a ação.
A foto abaixo nos sugere um olhar de retorno (dos trabalhadores sobre os oficiais) e este pode gerar a força que faz os sujeitos se movimentarem em direção à luta por direitos (Imagem retirada do relatório produzido pelo Ministério Público do Trabalho).
Nesse olhar de retorno do trabalhador sobre esse mundo que agora é descoberto como indigno, também se ativa uma bateria interna, já existente em si mesmo, e só dependente para desencadear-se dessa sustentação do outro investido simbolicamente.
Ao pensarmos na proposta da artista Raquel Garbelotti para o Projeto Contracondutas experienciamos os elementos que podem ter constituído essa bateria interna nos trabalhadores e quiçá em nós enquanto espectadores de seu filme.
A artista realizou um filme sobre a passagem da luz nos alojamentos durante os 40 dias em que os trabalhadores estiveram lá. O trabalho escravizado se constituiu, entre outros fatos, com o exíguo facho de luz existente nos alojamentos, onde a iluminação era inferior a 100 lux, conforme os autos de infração. Eis aqui a concretude das expressões de esperança relacionadas à luz que cunhamos na linguagem, tal como, “luz no fim do túnel”. Essa luz que entrava nos alojamentos, mesmo exígua, mantinha uma ligação dos sujeitos com o imponderável do ambiente e o externo ao cativeiro.
Para o filme foram construídas duas maquetes de dois alojamentos diferentes, um deles é o da foto que apresentamos acima(Imagem retirada do relatório produzido pelo Ministério Público do Trabalho). Nas maquetes houve um esforço para a reconstituição da luz no local dos acontecimentos que foi produzida de acordo com um estudo realizado por um planetarista. Além disso, Garbelotti realizou uma intensa investigação sobre as condições de luz e suas mudanças na interação entre o espaço externo e interno ao cativeiro. Essa pesquisa revelou a ocorrência de um equinócio durante estes 40 dias.
A maquete e a luz planejada em estúdio não garantem um controle documental total do que houve naquele lugar, naquele tempo, mas abrem possibilidades de pensarmos sobre o espaço e o tempo desses trabalhadores nesses alojamentos durante esses dias e da construção hipotética de emoções que podem construir essas baterias morais. Além disso, o trabalho provoca o espectador para uma experiência com esses elementos abrindo o espaço para que cada um reflita sobre a constituição ou não dessas baterias e suas consequências para a produção de outros sentimentos, tais como, indignação, medo, culpa, raiva, encantamento e esperança.
A luz traz o sol, a noite, o tempo passando e as tempestades que podem arrebatar o momento e mudar os desfechos. Assim, essas nuances percebidas modestamente pelo trabalhador podem ser os pólos positivos de uma bateria moral necessária para a manutenção de uma resiliência que garanta internamente alguma esperança de dignidade.
O TAC, portanto, não encerra em si a resposta certeira para as injustiças do Trabalho escravo ou qualquer outra. Mesmo ao propor ações de conscientização e crítica à conduta criminosa e desajustada não há como garantir seus efeitos. É na observação de sua forma de realização, da atuação dos seus protagonistas e das interações por eles produzidas, que poderemos dizer se ele se constituiu em uma Tensão Anulada por Contrato, ou em um Trabalho de Arrancar do Cativeiro. Em qualquer caso, ele sempre implicará em um Território de Afetos em Construção em que a ação mais promissora é aquela a carregar as baterias morais que possam gerar a força e alguma brecha para a insubordinação às opressões.