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Contra
Condutas

Pesquisa sobre trabalho e migração na construção civil

Pesquisa sobre trabalho e migração na construção civil

08.02.2017

Precarização e lucro: trabalho degradante na construção civil e a produção e consumo da cidade neoliberal – Ato I

Sabrina Duran

Os três primeiros textos produzidos para esta série de reportagens do Projeto Contracondutas [1, 2, 3] procuraram apresentar elementos históricos que ajudam a entender a violência estrutural praticada hoje contra trabalhadores da construção civil. Na quarta reportagem, apresentada a seguir, a proposta é abrir algumas frentes de discussão sobre a produção da cidade no contexto do capitalismo neoliberal, que não é apenas uma ideologia e uma política econômica. A racionalidade neoliberal contemporânea “tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação. (…) Essa norma (…) intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa.” 1.

Esta discussão será dividida em três “atos”, publicados separadamente e contemplando, primeiro, o discurso de quem pensa e planeja a cidade neoliberal, e depois, a vida de quem a constrói e as consequências para quem a consome.

PRIMEIRO ATO: O discurso de quem pensa e planeja a cidade neoliberal

A cidade-empresa neoliberal, nas palavras do sociólogo Carlos Vainer, está em constante competição com outras cidades para vender boa localização e atrair investimentos do capital transnacional. O Rio de Janeiro é um dos exemplos máximos dessa lógica. Nos últimos anos, a capital fluminense foi transformada em um grande canteiro de obras a fim de tornar-se sede de alguns dos jogos da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. 2
Os dispositivos de produção desse tipo de cidade colocam por terra a ideia de que o neoliberalismo requer a redução da intervenção do Estado. Pelo contrário. A racionalidade neoliberal, no contexto de produção das cidades, atravessa o Estado e o conforma, fazendo-o atuar na lógica competitiva das empresas, seja investindo em projetos comerciais lucrativos [ainda que estes ignorem ou mesmo violem as dimensões de justiça social que o Estado deveria garantir], seja tomando decisões sem participação pública, seja negociando bens públicos com entes privados. 3

“Revitalização” de áreas centrais, investimento público em infraestrutura de segurança e vigilância, parcerias público-privadas para a criação de equipamentos culturais; benefícios fiscais e estímulos econômicos para a criação de pólos de serviços e de tecnologia são algumas das intervenções feitas por gestores públicos com o objetivo de garantir que suas cidades sejam bem cotadas no “mercado de cidades”. De acordo com o geógrafo inglês David Harvey, a missão fundamental do Estado neoliberal “é criar um ‘clima de bons negócios’ e, assim, otimizar as condições para a acumulação de capital (…).” 4

Para além dos investimentos públicos que conformam a cidade-empresa, há outra dimensão fundamental na efetivação da sua produção: a dimensão do discurso. Gestado pelo poder público, por empresas e setores da sociedade civil – ou por todos, concomitantemente –, o discurso pacifica dissensos para melhor assentar [e justificar] as transformações estruturais, que no contexto neoliberal tendem a priorizar o lucro privado à custa da expropriação de direitos e bens comuns.

Os discursos da industrialização, do progresso, do crescimento econômico e da modernização já foram evocados inúmeras vezes para pavimentar a adesão a mudanças estruturais. Hoje, nas grandes cidades brasileiras, principalmente nas capitais, é o discurso do direito à cidade que compõe o horizonte das transformações. Por direito à cidade entende-se o acesso a cidades mais humanas, sustentáveis, com mobilidade não poluente, com ocupação dos espaços públicos pelos cidadãos e acesso democratizado a bens comuns. Esse discurso não é novo, mas vem sendo “ressignificado” por gestores públicos, empresas e alguns grupos da sociedade civil que, atravessados pela racionalidade neoliberal, transformam em negócio a cidade que tocam.

Direito à cidade e o espírito de 1968

Em 1968, ano de insurgências políticas, sociais e culturais em diversos países, o sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre publicava um livro-manifesto que se tornaria mundialmente famoso: O direito à cidade 5. Nesta obra, Lefebvre, um marxista, critica o modo de produção capitalista industrial das cidades e suas consequências. Para ele, a cidade é o espaço em que o valor de uso se sobrepõe ao valor de troca, em que a obra é superior ao produto, em que deve vigorar a apropriação do espaço, e não sua propriedade. A cidade é o espaço do habitar pleno, e não apenas o espaço do habitat; é o lugar em que o tempo tem primazia sobre o espaço; é o lugar do lúdico e do festivo, entendidos como a possibilidade da surpresa, do imprevisto e da apropriação coletiva.

Ao contrário, a cidade produzida pelo capitalismo industrial é uma ameaça à vida urbana. É uma cidade fragmentada, hierarquizada e homogênea, portanto refratária ao encontro, à diferença, ao lúdico e à festividade; uma cidade em que o social está dissociado do urbano, em que o valor de troca sobrepõe-se ao valor de uso, em que impera a lógica de lugar de consumo e consumo do lugar e que, por isso mesmo, o acesso a ela não está permitido às camadas populares – o que deixa em evidência a estratégia de dominação de classe desse tipo de produção da cidade.

O direito à cidade defendido por Lefebvre, portanto, é o direito de acesso universal à cidade em que a vida urbana é possível. Como, então, acessar esse direito? Lefebvre não diz nem como, nem onde, nem com quais recursos. Sua escrita não é prescritiva. Em O direito à cidade, ele propõe dois exercícios. Primeiro, o de reflexão-indagação: se a cidade é o espaço de produção e reprodução das relações capitalistas, portanto, de relações injustas em sua gênese, como efetivar, neste espaço, o direito à cidade? Da reflexão-indagação, parte-se para o exercício de imaginação: se o direito à cidade não pode contemporizar com a injustiça inerente ao capitalismo, então é preciso vislumbrar um outro horizonte: o direito à cidade é, em essência, anticapitalista, e por isso ele só se efetiva fora do capitalismo.

Apropriar e vender

Nos últimos quatro anos pelo menos, o conceito de direito à cidade tem sido retomado e reafirmado em diversas discussões da sociedade civil e poder público sobre a produção da cidade, agora não mais no contexto do capitalismo industrial em que se inseria Lefebvre, e sim no do capitalismo financeiro neoliberal. Urbanistas, jornalistas, pesquisadores, advogados, integrantes de movimentos sociais e de coletivos urbanos e gestores públicos têm utilizado o conceito lefebvriano para argumentar a favor do direito a uma cidade “mais humana”. A retomada do conceito vem se dando, principalmente, em três aspectos: no do direito ao encontro, com cidades formalmente mais proporcionais à escala humana e livres de restrições físicas, como cercamentos e catracas; no aspecto da festa e do lúdico, com espaços públicos formalmente atraentes à ocupação livre pelas pessoas (espaços abertos, arborizados, com infraestrutura para a permanência agradável etc); e no aspecto da participação democrática da sociedade nas decisões sobre as transformações urbanas.

O curioso dessa retomada do conceito lefebvriano é que o direito à cidade também tem sido reclamado, hoje, por agentes que, historicamente, foram e ainda são responsáveis por grande parte da segregação, hierarquização, homogeneização e pela privatização dos espaços públicos das cidades. São esses agentes as incorporadoras e construtoras.

Desde 2016, por exemplo, a incorporadora e construtora Gafisa vem produzindo uma série de vídeos nos quais apresenta, de forma elogiosa, a ocupação dos espaços públicos pela sociedade civil por meio da realização de festas, da prática de esportes, de atividades sociais e artísticas. Os vídeos, produzidos por um arquiteto e com depoimentos de produtores culturais, DJs, artistas, além de pesquisadores e de outros arquitetos, trazem elementos contidos no conceito lefebvriano.

Outro exemplo vem da Idea!Zarvos, incorporadora, que apresenta-se em seu site fazendo uso do léxico do direito à cidade. “Há quem diga que as cidades são feitas de concreto, de aço, de tijolo, de asfalto. Mas nós sabemos que não. Sabemos que as cidades são feitas de gente, por isso construímos prédios como se fossem gente. Gente tem beleza, mistério, humor, graça, gente gosta de gente, do encontro, do entorno, gente troca ideias, muda de ideia.” 6

Na mesma lógica de apropriação do discurso, a incorporadora Setin anuncia seu empreendimento Setin Downtown Praça da República, no centro histórico da capital paulista, recorrendo ao vocabulário de coletivos de mobilidade ativa que, por sua vez, bebem da fonte de Henri Lefebvre na defesa de suas demandas. “Morar no Centro de São Paulo é estar no centro de tudo. Poder fazer a maioria dos trajetos a pé ou de bicicleta. (…) Ganhar o máximo de tempo possível para poder gastá-lo de forma produtiva, passeando, trabalhando, estudando ou se divertindo.” 7

A incorporadora Mofarrej anuncia seu empreendimento residencial Ibirapuera Boulevard, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo, com o discurso do contato com a natureza e a cultura. “A vida passa depressa, com tantos compromissos e obrigações, que não nos damos conta muitas vezes que estamos repetindo os mesmos caminhos em busca de coisas diferentes. Sempre é bom buscar outros rumos. E é melhor ainda quando um deles nos leva ao lugar da cidade onde natureza, cultura, esporte, artes estão reunidos. Um lugar onde podemos nos divertir com os amigos, fazer ginástica ao ar livre, levar o cachorro pra passear, deixar as crianças correrem (…).” 8

Uma pesquisa sobre a atuação dessas empresas, no entanto, aponta descompassos entre discurso e prática. Em 2014, por exemplo, a Tenda, subsidiária da Gafisa, foi incluída na “lista suja” do Trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) após ser autuada explorando mão de obra análoga à escrava em dois canteiros em Minas Gerais. 9

Também em 2014, a incorporadora Idea!Zarvos inaugurou na Vila Madalena, bairro na zona oeste da capital paulista, um edifício comercial que desagradou moradores e comerciantes da região por seu porte e desenho agressivos. “Bloquearam o céu de boa parte da comunidade da Vila Madalena com um paredão horroroso. (…) Esse caso foi além da descaracterização do bairro”, disse um publicitário em entrevista ao blog Seres Urbanos. 10 O empreendimento fica em um terreno de 2.141 m² entre as ruas Fidalga, Aspicuelta e Fradique Coutinho, tem 29 unidades e 119 vagas de garagem – 4 por unidade, o que contribui para piorar o fluxo de automóveis e ônibus no bairro formado, em sua maioria, por casas pequenas e ruas estreitas.

Há pelo menos três anos, as incorporadoras Setin e Cyrela têm sido o pivô de um conflito que expõe as divergências entre interesses privados e públicos. No lado privado, as duas incorporadoras brigam na justiça para erguer três torres em um terreno de 24 mil m² na rua Augusta, região central de São Paulo, onde há uma das poucas reservas de mata atlântica em solo urbano. Do lado público, grupos da sociedade civil tentam impedir a construção das torres a fim de que a área seja transformada em um parque público. Apesar da disputa, o nó custa a se desatar em função da expectativa de lucro que as incorporadoras têm para seus empreendimentos na região, uma das mais valorizadas da cidade, e que os torna irredutíveis em sua decisão de erguer as torres, mesmo com o clamor da sociedade para que a área seja um parque livre de prédios. 11

Já a incorporadora Mofarrej conseguiu na Justiça impedir que o especialista em desenvolvimento urbano Ricardo Fraga de Oliveira se manifestasse tanto presencialmente quanto online contra o Ibirapuera Boulevard. Oliveira, que mora na região, denunciou irregularidades no empreendimento da Mofarrej e alegou a existência de um córrego no local onde seriam erguidas duas torres residenciais. Em 2011, o especialista criou o movimento “O outro lado do muro – intervenção coletiva” no qual, munido de um banquinho, convidava transeuntes a olharem por cima dos tapumes que cercavam o empreendimento em construção. Na decisão judicial, Oliveira foi proibido de se aproximar a um raio de 1 km do local do canteiro e a fazer qualquer manifestação na página do movimento no Facebook. 12

Um garimpo maior sobre o discurso de marketing de algumas incorporadoras e construtoras reafirmaria a atual apropriação, se não literal, mas em essência, de ideias-chave do conceito de direito à cidade, e a ausência de nexo entre aquilo que dizem e fazem.

O questionamento a ser feito é: se a obra do filósofo Henri Lefebvre aponta para um horizonte anticapitalista, em que momento essas e outras empresas, representantes do grande capital imobiliário, sentiram-se positivamente contempladas por um conceito que afronta o sistema que abraçaram, que alimentam e do qual dependem? Em que momento empresas de setores que hoje, mais do que nunca, planejam e financiam a produção de cidades segregadas, desiguais e para poucos, entendem que um conceito anticapitalista em sua essência pode ajudá-las a vender as soluções urbanas que oferecem?

Em sua obra clássica, Henri Lefebvre diz que “só a classe operária pode se tornar o agente, o portador ou o suporte social dessa realização [do direito à cidade], e que a missão do proletariado é “destruir a sociedade burguesa construindo uma outra sociedade.” O filósofo afirma ainda que é necessária uma revolução econômica, com planificação orientada para as necessidades sociais; e uma revolução política, com controle democrático do aparelho estatal e autogestão generalizada. Trata-se de uma análise e proposição sobre a cidade claramente política, com perspectiva de classe, com crítica ao Estado, ao setor privado e com uma fé indiscutível no potencial revolucionário da classe explorada.

Portanto, voltamos ao questionamento central desse texto: num momento de retomada do conceito de direito à cidade pela sociedade e gestores públicos de grandes cidades, o que favorece a apropriação de uma teoria anticapitalista por setores que são alguns dos mais agressivos do capitalismo neoliberal?

A crise da crítica

Em primeiro lugar, é preciso fazer uma rápida atualização conceitual: é evidente que o proletariado que Henri Lefebvre retrata em seu livro de 1968 não é o mesmo que a massa de trabalhadores dos dias de hoje que vende sua força de trabalho em ocupações alienantes. As mudanças estruturais do capitalismo nas últimas décadas também mudou a configuração da força de trabalho explorada. O que é importante deixar claro é que o proletário mencionado pelo filósofo é, em última análise, o excluído da cidade, aquele a quem os centros urbanos não estavam acessíveis, e a quem se destinavam as periferias destituídas de vida urbana. Pensando a partir desse horizonte, os excluídos urbanos de hoje são as pessoas em situação de rua, os catadores de material reciclável, vendedores ambulantes. Mulheres e homens – em sua maioria negras e negros – de baixo ou baixíssimo poder aquisitivo, que vivem em favelas nas periferias da cidade ou, quando em regiões centrais, conseguem acessar apenas habitações de baixa qualidade, como os cortiços ou ocupações de edifícios abandonados. Essa atualização conceitual não significa que a luta de classes tenha se diluído no tempo. Como vem repetindo a urbanista Ermínia Maricato há alguns anos, a luta de classes, hoje, se dá no chão da fábrica, mas, principalmente, no chão da cidade 13.
No livro O novo espírito do capitalismo, os sociólogos franceses Luc Boltanski e Ève Chiapello defendem que a crise do capitalismo nas últimas décadas, com aumento das desigualdades sociais e precarização das condições de trabalho não é, em essência, uma crise do capitalismo; é, sim, uma crise da crítica ao capitalismo. 14 De acordo com os autores, o capitalismo se modifica ao longo do tempo a partir das respostas que dá às críticas que recebe. Um dos efeitos dessa crítica é que, “opondo-se ao processo capitalista, ela coage aqueles que são seus porta-vozes a justificá-lo em termos do bem comum. E quanto mais virulenta e convincente se mostrar a crítica para um grande número de pessoas, mais as justificações dadas [pelos capitalistas] como troco deverão estar associadas a dispositivos confiáveis, que garantam uma melhoria efetiva em termos de justiça.”

Os autores analisaram textos de gestão empresarial franceses dos anos 60 e 90. Esses textos alimentaram e orientaram o pensamento do patronato daquelas épocas, e indicaram as diretrizes do novo espírito do capitalismo que surgiria. No final dos anos 60, início dos 70, o modo de produção fordista era fortemente criticado por sua rigidez e organização hierarquizada do trabalho. As palavras de ordem da crítica da época pediam por mais liberdade, flexibilização, autonomia e criatividade. Diante dessas demandas, os grandes capitalistas entregaram, nas três décadas seguintes, precarização das condições de trabalho, flexibilização e supressão de leis trabalhistas, de direitos, concorrência generalizada entre trabalhadores e apagamento da fronteira entre trabalho e lazer, transformando toda a vida humana, especialmente a vida criativa, o ócio e o lazer, em matéria-prima a ser explorada para fins de acumulação do capital.

Daí que Boltanski e Chiapello identifiquem uma crise da crítica ao capitalismo naquela época, uma crítica que não conseguiu forçar uma mudança substancial em favor do bem comum, uma vez que concentrou-se mais em questionar os efeitos do capitalismo industrial – a ausência de tempo livre, hierarquização rígida, pouco espaço para autonomia e criatividade, homogeneização das relações e da produção etc – e não suas causas. Quando a crítica não é capaz de atingir os dispositivos de exploração e de reforço das desigualdades que são marca da produção capitalista, os próprios capitalistas incorporam parte dos valores que lhes faltam e pelos quais são criticados. Esses valores assumidos pelos capitalistas, finalizam Boltanski e Chiapello, são colocados a serviço não de uma atuação mais justa, mas sim da pacificação da crítica e da intensificação do próprio processo de acumulação, agora renovado.

Direito à cidade descerebrado

Com uma distância de mais de quatro décadas desde que a cidade segregada, homogênea, dura e impessoal exacerbou insatisfações na França e em outros países da Europa, o Brasil finalmente trouxe à tona essa crítica a respeito de suas cidades, e começou a se apropriar do conceito lefebvriano e a popularizá-lo. Diversos debates, atividades acadêmicas, culturais, de movimentos sociais e coletivos de ocupação urbana vem sendo desenvolvidos nos últimos anos sobre o direito à cidade, orientando, inclusive, a formulação de políticas públicas, como planos diretores estratégicos e leis de uso e ocupação do solo, e estabelecendo uma disputa pela atualização [ou redefinição] do conceito.

Essa disputa, hoje, se dá num campo ainda mais complexo do que o que estava posto em fins dos anos 60. Hoje, o capitalismo financeiro, transnacional, neoliberal e cognitivo tem seu campo de exploração ampliado: do interior da fábrica, foi buscar a reprodução do capital no corpo da cidade, na destruição e reconstrução dos espaços urbanos, no trabalho criativo, social, cultural, no trabalho imaterial, na manifestação dos desejos, dos afetos, nas relações sociais estabelecidas em rede. Sendo assim, a crítica a este novo capitalismo é ainda mais difícil de ser feita de modo a provocar uma alteração substancial nesse sistema. Isso porque, num momento em que quase tudo é capitalizável, mesmo a crítica mais incisiva pode ser capturada e transformada em virtude do capitalista – e em mais capital.

Ao menos na capital paulista, o caminho para essa captura está francamente aberto, já que a discussão sobre o direito à cidade vem sendo feita desacompanhada da radicalidade anticapitalista com que o conceito foi concebido por Henri Lefebvre no fim dos anos 1960.

Em muitas das atividades promovidas por grupos progressistas, é raro ser suscitada a dimensão da luta de classes que estrutura a crítica lefebvriana. Por outro lado, é frequente que o conceito de direito à cidade seja apresentado por esses grupos de forma simplificada, como o direito de participar democraticamente nas decisões do poder público sobre as transformações da cidade. Lefebvre já previa que a participação democrática seria utilizada como ideologia [ideologia aqui entendida no sentido marxista de falseamento da realidade]. “Na prática” – dizia ele – “a ideologia da participação permite obter pelo menor preço a aquiescência das pessoas interessadas e que estão em questão. Após um simulacro mais ou menos desenvolvido de informação e de atividade social, elas voltam para sua passiva tranquilidade, para o seu retiro. É evidente que a participação real e ativa já tem um nome. Chama-se autogestão.”

Também é frequente que o conceito lefebvriano seja apresentado de forma monolítica, como o direito a transformar a cidade num espaço propício ao encontro, mais humano – uma “cidade para pessoas” – e que para isso as estruturas físicas urbanas precisam ser repensadas no sentido de readequação à escala humana. Trata-se, em alguns casos, de um propositivismo irrefletido que não apenas hierarquiza prática e reflexão, como as contrapõe. Sobre isso, Lefebvre também já alertava: “o urbanismo como ideologia formula todos os problemas da sociedade em questões de espaço e transpõe para termos espaciais tudo o que provém da história, da consciência. (…) Médico do espaço, ele [o urbanista] teria a capacidade de conceber um espaço social harmonioso, normal e normalizante.”

Outra interpretação de ângulo único entre alguns grupos, especialmente os que promovem atividades culturais em espaços públicos, é o de que o direito à cidade se realiza por meio da utilização lúdica e festiva desses espaços de modo a reocupá-lo. É importante dizer que, muitas vezes, esses espaços supostamente vazios ou “sem vida” já estão ocupados por camadas populares e por pessoas em situação de vulnerabilidade social. Os pesquisadores franceses Grégory Busquet e Jean-Pierre Garnier dizem que Lefebvre defendia o direito ao “jogo” no espaço urbano e na vida cotidiana, o direito à surpresa, ao imprevisto. 15 Tudo isso para ele remetia à reapropriação coletiva da cidade como modo de superar a alienação mercantil e utilitarista do capitalismo. Afirmam os autores: “isso não tem nada a ver com a multiplicação, desde décadas, de ‘festas urbanas’ organizadas por municipalidades e financiadas por empresas privadas, com o objetivo de fazer com que a população local se esqueça, através de uma mobilização consensual e controlada, em lugares e datas programadas pelas autoridades, da existência repetitiva e enfadonha que lhes é imposta. Alguns comentaristas creem ver nessas festividades normalizadas e normalizantes uma realização do direito à cidade. Contudo, ninguém melhor que Lefebvre pressentiu o caráter fictício e mistificador dessa política quando ela ainda era incipiente: ‘é uma aparência caricaturesca de apropriação que o poder autoriza.’ O filósofo dizia que a apropriação verdadeira, revolucionária, é combatida pelas forças de repressão, que ordenam o silêncio e o esquecimento.”

Não é estranho, portanto, que incorporadoras, construtoras e mesmo administrações públicas comprometidas com o grande capital financeiro e imobiliário ergam a bandeira do direito à cidade lefebvriano – obviamente que sem nada mais de Lefebvre naquilo que dizem. O cenário para apropriação e tergiversação do conceito para estas empresas e administrações é fértil, tanto pela oferta de itens capitalizáveis, quanto pela ausência de uma abordagem anticapitalista do conceito, que poderia [deveria] ser feita pela esquerda.

O discurso “ressignificado” [e descerebrado] do conceito lefebvriano apresenta a ideia de um espaço público em que as diferenças, naturalmente conflitivas, são pacificadas e transformadas em diversidade morna. Sem dúvida é um prato cheio para os produtores da cidade-empresa neoliberal, que caricaturizam minorias [negros e índios, por exemplo] e exotizam realidades conflitivas [favelas e bairros pobres] para neutralizar seu poder de crítica e apresentá-los aos olhos dos consumidores como atrativos turísticos. Um exemplo dessa estratégia são os tours em favelas cariocas; outro é a “revitalização” do Pelourinho, em Salvador, nos anos 1990. O projeto contemplou desde a expulsão em massa de moradores pobres à reforma dos casarios dando a eles uma estética cenográfica, de uma Salvador colorida, antisséptica e sem conflitos. Outro exemplo claro da estratégia de domesticação do dissenso na cidade-empresa neoliberal foi dado por um escritório de arquitetura dinamarquês pago por um banco privado para “requalificar” o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo. Em uma das perspectivas ilustradas do Vale renovado, os dinamarqueses apresentaram pessoas brancas desfrutando do espaço requalificado e pessoas negras jogando capoeira, uma cena típica do imaginário colonial.

“O mercado imobiliário sequestrou a noção de espaço público e a ideia de reforma urbana, que foi uma das coisas mais bonitas que houve na década de 1960 levada pelos movimentos de base. O discurso da reforma urbana era ter a terra como valor de uso, e não como valor de troca; era ter direito à terra no centro, onde há trabalho, transporte coletivo, hospital etc”, diz a professora e pesquisadora de urbanismo Luciana Itikawa. Ela aponta que a estratégia de sequestro de pautas progressistas, como a do direito à cidade, pode revelar-se a partir de políticas públicas aparentemente democratizantes. “Dizem que um dos maiores avanços da gestão Fernando Haddad foi o projeto das ruas abertas, como a avenida Paulista, que se abriu para todos os tipos de público [aos domingos, quando é fechada para carros], ganhou ciclovias e um discurso de mobilidade sustentável. Essas ruas, na verdade, são grandes ruas imobiliárias. O que está em jogo é a valorização dos espaços privados ao longo do espaço público, e não houve nenhum tipo de mecanismo de controle do valor da terra ou para a permanência da população que reside nesses espaços. Um dos únicos instrumentos urbanos previstos para tentar evitar a gentrificação nos corredores imobiliários, a cota de solidariedade não foi regulamentada por lei municipal. Além disso, mesmo se fosse regulamentada da maneira como foi prevista, a cota de solidariedade possui uma distorção na sua própria aplicação: a contrapartida para grandes empreendimentos da exigência de construção de Habitação de Interesse Social (HIS) é o local a ser construído, que pode ser fora do perímetro, ou seja, em outros terrenos. A saída para os empreendedores seria buscar terras mais baratas e, portanto, periféricas”. Meses após a abertura da Paulista para pedestres aos domingos, foi anunciado que no segundo semestre de 2017 serão inaugurados três novos centros culturais na avenida: Japan House, Instituto Moreira Sales e SESC Paulista. 16 Coincidência ou pertinência, um dos vídeos apologéticos da democratização dos espaços públicos produzidos pela Gafisa traz, como tema, a Paulista aberta. Assista abaixo.

Outra política pública citada por Itikawa que usa o discurso do direito à cidade mas que, no fim, beneficia o setor imobiliário, é o adensamento populacional nos eixos de estruturação urbana criados ao longo de corredores de ônibus e ao redor de estações de trem e metrô. Essa diretriz, apresentada no Plano Diretor Estratégico (PDE) aprovado em 2014, tem [ou tinha] como objetivo promover o adensamento por meio da construção, ao longo de vias com transporte coletivo de média e alta capacidade, de edifícios com apartamentos menores e com mais unidades habitacionais e apenas uma vaga de garagem não computável por cada unidade. “A ideia é fazer com que mais pessoas, de diferentes faixas de renda, possam morar em lugares próximos de terminais de ônibus, estações de metrô e trens. É por isso que, nos eixos, o plano [diretor estratégico] afirma que o transporte individual motorizado deve ser desestimulado (art. 23, VII) e que a produção imobiliária de iniciativa privada deve diversificar as formas de implantação das edificações nos lotes e ampliar a produção de Habitação de Interesse Social (HIS) e de mercado popular”, escreveram as advogadas Aline Viotto e Bianca Tavolari. 17

No entanto, em 2016, a nova Lei de Parcelamento Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), em seu artigo 174, passa a permitir que ao longo de três anos essas diretrizes previstas no PDE não sejam cumpridas. Ou seja: a verticalização nos eixos de transporte público poderá ser feita com unidades habitacionais maiores – e portanto mais caras e em menor quantidade por edifício – e com mais vagas de garagem. Haddad, que poderia ter vetado o artigo 174, preferiu não fazê-lo. “Três anos são mais do que suficientes para que projetos com menos unidades e mais vagas de garagem sejam protocolados na prefeitura e garantam aos empreendedores a possibilidade de construir conforme esses novos índices, mesmo que já tenham passado os três anos de vigência previsto no artigo. Isso porque, o chamado ‘direito de protocolo’ garante ao empreendedor o direito de construir conforme os parâmetros em vigor no momento em que o projeto é apresentado à prefeitura, e não os do momento de aprovação da construção”, afirmam Viotto e Tavolari.

Para o urbanista e professor Kazuo Nakano, apesar de toda a discussão sobre democratização do solo urbano estimulada pelo PDE, o artigo 174 da LPUOS aprovada em 2016 veio para viabilizar “produtos imobiliários destinados à demanda solvável que, em tempos de crise econômica, se restringe aos mais endinheirados.” 18

Uma crítica sobre a produção capitalista neoliberal da cidade-empresa que não se atente à instrumentalização do conceito de direito à cidade; que contemporize com esse modo de produção e que não parta das perspectivas de classe, raça e gênero para analisá-la; uma crítica que ignore que mesmo um espaço mais “humano” se dá sobre o espaço de produção e reprodução das injustas relações capitalistas, é uma crítica sem potência emancipadora e, no limite, cúmplice das violências cometidas contra pobres, mulheres, negras e negros que são, historicamente, os mais explorados pela máquina capitalista e os que estão longe de acessar o direito à cidade.

Em projeto urbanístico para o centro de São Paulo feito por dinamarqueses, o lugar dos negros é na roda de capoeira. Imagem: Prefeitura de São Paulo

Notas de Rodapé

  1. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo, 2016.
  2. http://www.viomundo.com.br/denuncias/carlos-vainer-com-pretexto-dos-megaeventos-rio-promove-limpeza-urbana-e-sera-cidade-mais-desigual-em-2016.html
  3. http://privatizacaodarua.reporterbrasil.org.br/
  4. HARVEY, David. Espaços de neoliberalização: em direção a uma teoria do desenvolvimento geográfico desigual.
  5. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Centauro Editora, 2016
  6. http://ideazarvos.com.br/pt/quem-somos
  7. http://www.setin.com.br/residencial/setin-downtown-republica
  8. http://mofarrej.com.br/ibirapuera-boulevard/
  9. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,pdg-e-tenda-entram-no-rol-de-trabalho-analogo-ao-escravo,1523561
  10. http://seresurbanos.blogfolha.uol.com.br/2014/02/25/predio-de-grife-assusta-moradores-da-vila-madalena/
  11. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/01/27/alvo-de-disputa-parque-augusta-e-oasis-de-mata-atlantica-no-centro-de-sp.htm
  12. http://artigo19.org/centro/casos/detail/11
  13. http://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/as-forcas-que-disputam-o-centro/
  14. BOLTANSKI, Luc; ÈVE, Chiapello. O novo espírito do capitalismo. Martins Fontes. 2009.
  15. BUSQUET, Grégory; GARNIER, Jean-Pierre. Un pensamiento urbano todavía contemporáneo. Las vicisitudes de la herencia lefebvriana.
  16. http://saopaulosao.com.br/nossos-encontros/2449-abertura-de-tr%C3%AAs-novos-centros-culturais-em-2017-consagra-a-avenida-paulista-como-principal-eixo-cultural-de-s%C3%A3o-paulo.html
  17. https://observasp.wordpress.com/2016/03/23/por-que-haddad-deveria-ter-vetado-o-artigo-174-da-nova-lei-de-zoneamento/
  18. http://plataformazona.com.br/site/portfolio/cidade-compacta-ou-mercado-ampliado/

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