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Contra
Condutas

Pesquisa sobre trabalho e migração na construção civil

Pesquisa sobre trabalho e migração na construção civil

12.09.2016

Trabalho escravo nas obras do aeroporto de Guarulhos

Ilustração: Deborah Salles

Na noite de 12 de agosto de 2013, um ônibus com 38 operários vindos de Petrolândia, no Pernambuco, estacionou em frente ao escritório da construtora responsável por obras de construção civil em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Apesar do cansaço pelas 48 horas de viagem, a promessa de trabalho na expansão do Aeroporto Internacional de São Paulo, uma das maiores obras de infraestrutura em execução no país, motivava os trabalhadores. Passava das 23h30 e os trabalhadores provavelmente ainda não estavam cientes que suas garantias e direitos fundamentais não haviam embarcado com eles em Petrolândia.

Professor
Por volta das 6h do dia seguinte, depois de terem passado a noite no ônibus, ficaram em frente à portaria por mais de uma hora com suas malas, colchonetes, travesseiros e cobertores, até que um funcionário saiu do prédio para falar com eles. Segundo depoimentos de operários à Justiça do Trabalho de São Paulo, este funcionário também nascera em Petrolândia e agora trabalhava no escritório da construtora em Guarulhos. Ele atendia pelo apelido de “Professor” e, assim como outro funcionário da empreiteira, havia prometido as vagas de trabalho mediante pagamento de uma “taxa” de R$ 100 por operário. Antes mesmo da viagem, “Professor” já estava em contato com um dos peões para orientar a contratação. Aos homens enfileirados com seus pertences, informou que dez dos 38 o acompanhariam até o escritório. Eles fariam o cadastro de dados pessoais e receberiam formulários para o exame médico. Os demais teriam as guias de exame entregues ainda naquela semana, durante uma visita do Professor ao alojamento improvisado. Dentro do prédio, os primeiros homens cadastrados pela construtora se deparavam com exigências ilegais para a contratação: o funcionário do RH recusou o comprovante de residência em Petrolândia. Seria necessário um comprovante de residência em Guarulhos, ou nada feito. A empresa evitava custear o alojamento dos trabalhadores. No Relatório de Impacto Ambiental (Rima) que apresentou aos órgãos de fiscalização, a construtora OAS havia declarado que não precisaria contratar trabalhadores de fora da cidade, pois a mão de obra local seria suficiente. No entanto, funcionários da empreiteira ativaram suas redes pessoais e recrutaram operários de quatro estados nordestinos. Se mostrava evidente o desrespeito às normas do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), que obrigam os contratantes a fornecer alojamento para forasteiros. A contratação de moradores do mesmo município é uma das exigências do “Compromisso Nacional para o Aperfeiçoamento das Condições de Trabalho na Indústria da Construção”, do qual a construtora é signatária. O compromisso foi firmado voluntariamente. Por fraudar a origem dos operários e negligenciar o estado nos alojamentos improvisados, meses depois ficariam comprovados os crimes de aliciamento e Trabalho escravo de 111 operários nordestinos.

Aliciamento

Para chegar até Guarulhos, os armadores, carpinteiros, pedreiros e ajudantes de obras já haviam pagado R$ 450 a Luciano dos Santos Aguiar, o operário que organizou a viagem do grupo de 38 trabalhadores. Luciano era conhecido no ramo de construção em Petrolândia, pois frequentemente conseguia emprego para profissionais com diferentes habilidades nas obras em que era contratado. Os grupos que foram a Guarulhos eram primos, cunhados, amigos de longa data, pai e filho. Ao chegar a Guarulhos, o líder do grupo foi orientado pelos funcionários da construtora a alugar uma casa nas redondezas, em seu nome. A casa ficava a aproximadamente 20 minutos de caminhada do escritório. Nas fichas de cadastro da construtora, o mesmo comprovante de residência consta no registro dos 38 trabalhadores.

Enquanto os trabalhadores que chegavam à Guarulhos eram precariamente instalados, o aliciamento continuava em diversos pontos do país. Em Petrolândia, carros de som circulavam nas ruas anunciando as vagas para a ampliação do maior terminal aéreo de passageiros da América Latina. Os alto falantes indicavam a agência de viagens que os interessados deveriam procurar. Acreditando na palavra dos “agenciadores”, outros operários pernambucanos chegariam à cidade nas próximas semanas. Um grupo de 17 operários chegou a Guarulhos no dia 1o de setembro. Eram conhecidos do primeiro grupo e, como não tinham onde ficar, foram convidados a dormir na mesma casa onde estavam os outros 38 trabalhadores. Na primeira noite, cinco homens dividiram quatro colchonetes emprestados, enquanto outros armaram redes e deitaram sobre cobertores que trouxeram de casa. Na noite seguinte, seis homens arrastaram seus colchonetes até o terraço para dormir ao ar livre – não conseguiam ficar dentro da casa, já que o desconforto nos quartos, sala e cozinha superlotados era insuportável.

Nove dos 17 trabalhadores mudaram-se no dia seguinte para outra casa, no mesmo bairro, também sem camas ou qualquer móvel. Estava formado um novo alojamento clandestino de operários do Terminal 3. Ao todo, seriam descobertos mais de dez imóveis nessas condições.

Depois da primeira viagem, os valores cobrados de cada passageiro pelo transporte aumentariam para R$ 500. A promessa de contratação estava sempre embutida no preço. Segundo o relatório de fiscalização elaborado por auditores do Ministério do Trabalho e Previdência Social, os funcionários da construtora receberam R$ 100 de cada operário, para garantir rapidez na admissão.

Em cidades no interior do Maranhão, Sergipe e Bahia, a história se repetia. Os operários que vieram destes estados chegaram a Guarulhos entre os dias 15 e 17 de agosto. Seus relatos são idênticos ao dos pernambucanos. Apesar da promessa de contratação imediata, foram orientados pela empresa a alugar imóveis e então ficaram semanas à espera de um telefonema, esgotando suas economias – para alguns deles o dinheiro fora emprestado por agiotas.

Pankararus

O aliciamento em Petrolândia, a partir da segunda viagem, seria feito por um empresário, dono de uma agência de empregos e turismo na cidade, ele atendia pessoas à procura de trabalho em diferentes setores. Em parceria com empresas de transporte da cidade, o sujeito levava os interessados para diversos cantos do país de forma completamente ilegal: não cobrava dos contratantes o pagamento pelo transporte, contratava transportadoras irregulares para as viagens, não comunicava autoridades competentes como a lei exige, ignorava a existência do Sistema Nacional de Empregos (Sine), que deveria reunir as vagas formais de trabalho no país. Além disso, a viagem de 17 operários a Guarulhos contou com cinco índios da região de Petrolândia, recrutados pessoalmente pelo empresário na aldeia.

A terra indígena Pankararu está integrada a três municípios de Pernambuco. Homologado em 1987, o território tem aproximadamente 14,2 mil hectares, ao pé da Serra Grande, onde moram cerca de 6,5 mil pankararus. Entre eles estão carpinteiros, armadores e pedreiros que já trabalharam em obras em Minas Gerais, Bahia e no próprio estado de Pernambuco.

O empresário, depois de um carpinteiro da aldeia ter lhe telefonado à procura de emprego, reuniu-se na aldeia com aproximadamente 50 pankararus para explicar os termos da contratação. Ele contou aos índios que a expansão do Aeroporto Internacional de São Paulo precisava de mão de obra, e que o pagamento seria vantajoso. Aceitaram também a proposta, pois sabiam que um outro grupo de trabalhadores de Petrolândia já estava em Guarulhos. No dia da viagem, o empresário foi buscá-los pessoalmente.

Os índios se instalaram durante oito dias nos alojamentos clandestinos, assim como outros 12 operários de Petrolândia.

No dia 7 de setembro, um sábado, um funcionário da construtora foi à casa onde estavam nove trabalhadores para dizer que eles não seriam contratados. A essa altura, eles sequer tinham dinheiro para comprar comida. Aos trabalhadores em desespero que lhe perguntavam como voltariam para casa, o funcionário respondeu: “se virem”.

Resgate

Um dia antes, na tarde de 6 de setembro, cinco auditores-fiscais da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) de São Paulo desembarcaram de seus carros oficiais, acompanhados de procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), em frente a uma casa no Jardim Santa Lídia, em Guarulhos. Foi a primeira fiscalização do caso, no alojamento onde estavam espremidos dezenas de trabalhadores.

A denúncia havia chegado até as autoridades por meio do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de Guarulhos (Sincongru). Depois de três semanas marcadas por visitas e reclamações sem resultado no escritório da OAS, os operários foram até a sede do sindicato e denunciaram as condições no alojamento em uma reunião com o presidente, Edmilson Silva. Notificados de que muitos trabalhadores estavam na mesma situação em outros endereços, os diretores e funcionários do sindicato dividiram-se em equipes para procurar todos os alojamentos improvisados. Quando os funcionários do sindicato chegaram aos locais, muitos dos trabalhadores estavam com dengue e tiveram de ser levados a prontos socorros e unidades básicas de saúde. O relatório técnico da SRTE lista diversas irregularidades nas casas, que acabariam caracterizando o trabalho análogo à escravidão por causa das condições degradantes a que os trabalhadores estavam submetidos.

Foram encontrados 11 imóveis nessas condições que funcionavam como alojamentos clandestinos, onde havia um total de 111 operários. A SRTE ainda constatou “diversas situações de humilhação dos trabalhadores que ferem a dignidade humana”.

A SRTE avisou à OAS após a primeira fiscalização que a empresa deveria desocupar imediatamente as casas e hospedar os trabalhadores em hotéis ou alojamentos que atendessem às medidas exigidas pela legislação. Além disso, a construtora foi obrigada a pagar todas os direitos trabalhistas, providenciar a alimentação dos homens e garantir o retorno de quem desejasse voltar para casa.

Ao MTPS e MPT, os advogados da OAS disseram que a empresa não poderia ser responsabilizada, pois os homens não tinham vínculo com a construtora, desconsiderando os documentos de exame médico com a logomarca da empresa que os trabalhadores receberam.

Em novembro de 2013, a OAS firmou um acordo com o Ministério Público do Trabalho, por meio do qual se comprometeu a pagar R$ 15 milhões. A multa inclui R$ 7 milhões destinados a instituições sem fins lucrativos de Guarulhos e projetos de melhoria das condições de trabalho na região. Outros R$ 8 milhões foram reservados para a solução de problemas encontrados na obra, como a falta de alojamentos. Entre as iniciativas beneficiadas está a reforma de bairros degradados no entorno do aeroporto, a reforma de um alojamento da Missão Paz — iniciativa de uma congregação católica que acolhe imigrantes estrangeiros —, a Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (Asbrad) e esta pesquisa sobre o Trabalho escravo na construção civil.

O caso do Terminal 3, que teve ao todo 150 vítimas registradas, representou cerca de 17% dos escravos resgatados no setor em 2013. O episódio, se somado aos resgates de 124 trabalhadores do Shopping Boulevard, aponta para a responsabilidade da OAS por 31,6% dos casos de Trabalho escravo na construção naquele ano – ou seja, aproximadamente 1/3 dos operários flagrados nessa situação trabalhavam para a empresa.

Esse material foi editado a partir do material fornecido pela Papel Social.

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