Como rios aéreos cruzando o cerrado – que em volume superam em três vezes a vazão do Rio Amazonas –, a rede digital se expande invisível com intenção de inundar o mundo inteiro. Conforme ela se estende, cria-se outro território, um duplo calviniano, que ora coincide com a geografia física, ora a sobrepassa. A rede não é homogênea e a tração de seus fios, por conseqüência, não é regular como se esperaria.
Em uma época em que se almeja tudo digital, acessível, móvel, democrático, são ainda os núcleos duros de infraestrutura que sustentam a rede no ar. Um complexo de gadgets, antenas, cabos continentais submarinos e mainframes do tamanho de pequenas cidades que se articulam a fim de criar a sensação de descontinuidade.
As bordas de um mapa não se encontram em seus limites externos. Esses são sempre muito bem determinados e marcados para assegurar um território. Não! Os verdadeiros buracos de um mapa se encontram em seu interior. Vazios de dados, essas áreas enormes se mantém virtualmente desconectadas desse mar de terabits. Não as vemos, mas, ao se cruzar o limiar dessa outra terra que paira sobre a nossa, torna-se impossível navegarmos, como se do céu virtual sumissem todas as constelações.
Piratas! Contrabandistas! Corsários! Bucaneiros! A contracultura só é possível nesse mar sem estrelas, onde outras relações espaciais precisam ser estabelecidas. Um mundo que submerge por esses ocos no globo terrestre, virado do avesso, e mesmo o terreno familiar tem de ser remapeado, reconfigurado, até o ponto de evidenciar todas as suas fraturas e revelar os meandros onde repousam suas estruturas.
A palestra de quinta-feira não teve microfone. Sentados ao redor de uma mesa, as quatro figuras sussurravam entre si na meia luz do palco. Apesar de diferentes backgrounds, havia ali uma camaradagem que volte e meia permitia que seus interlocutores nos deixassem com silêncios e coisas não ditas.
Daniel Lima havia feito uma longa viagem pelas antigas colônias do mar do caribe. O haitianismo já era coisa enterrada há muito tempo quando o terremoto transformou o país, um dia governado por escravos, em escombros. Ainda assim o medo que a palavra causava nos senhores da terra era tangível o suficiente para mantê-lo ocupado. Retornou para a capital ultramarina lusitana com informações valiosas sobre a maneira como as forças de segurança operavam por lá. Organizadas por verbetes não georreferenciados, mapeavam o diagrama de forças do que viria a ser as Unidades Pacificadoras, utilizadas para manter sob controle as populações e garantirem a instalação dos grandes eventos no Rio de Janeiro. Não satisfeito, participou de intervenções coletivas na cidade, indicadas por explosões em seus mapas.
Menos inclinado a ação direta, a atividade de André Mesquita é metalingüística. Um jogo duplo onde tanto lhe interessam os limites do conhecimento do território pelas estruturas de controle quanto o mapeamento dos vetores ocultos do poder exercido por esses players. Mapas de continentes do além mar feito por grandes potências, mapas de satélites militares, mapas conspiracionistas, mapas de ações de contrainsurgência, mapas das crises geradas por ações desastradas de contrainsurgência, mapas de territórios ausentes, mapas do capitalismo, mapas do capitalismo tardio, mapas da pósmodernidade. Contracartografia de cartografias, Mesquita intersecciona esses instrumentos de poder político e militar, num modus operandi para encontrar brechas possíveis de atuação num mundo cada vez mais sobre controle.
O nome de David Sperling soa como de alguém que assombrava os mares do século XVIII, mas a maneira como se portava e as palavras que proferia o enquadravam como alguém a serviço da corte. Apesar desse leve deslocamento, seu modo de atuar por dentro do sistema a fim de subvertê-lo o colocava entre iguais naquele bando. Organizava seu raciocínio através de palavras chaves que iam se desdobrando em exemplos que levavam a novas palavras e a outros exemplos. Quando o encadeamento chegou a seu desfecho, apresentou algumas leituras feitas por um grupo sobre sua coordenação, onde passaram meses estudando o objeto que deu origem ao Contra Seminário: o Terminal 3 de Guarulhos. Foi inclusive o primeiro a mencionar o nome da construtora envolvida, além de citar algumas empresas próximas sem nenhum alarde nem cerimônia.
A língua espanhola de Pablo Ares era enunciada de forma entusiasmada e um tom mais alto do que a de seus companheiros. Defendia que todos poderíamos ser geógrafos, num viés mais ptolomaico de quem olha as coisas do rés do chão, do que de quem vigia as coisas do alto num constante vôo de pássaro. Suas ações também envolviam grupos de pessoas como o de Sperling, porém não com o rigor acadêmico de um enunciado a ser posto a prova. Seus mapas invertidos tomavam partido da sabedoria de quem vive o espaço e não percebe o quanto o conhece até o colocar em gráficos. Se não fosse seu lugar óbvio entre os outros baderneiros da cartografia, suas estratégias desenhadas para aflorar a memória muscular coletiva caberiam no dia anterior, quebrando a linearidade das apresentações.
Entre amigos o debate continuou sobre o não mapeamento dos oprimidos, possibilitando a continuidade das ações desses grupos por entre as linhas cartesianas, ou de outros mapas que garantissem suas versões e reconhecimento como autores do espaço. Com seu olhar de arquiteto, o diretor da Escola da Cidade ainda comparou a contracartografia com a própria estrutura dos edifícios, onde a espessura do território garantiria a estabilidade para o desenvolvimento de novas ações. Mas, deixando de lado a busca de zonas não controladas e sua contrapolítica, porque ainda fazemos mapas? Segundo esses contracartógrafos é porque ainda estamos perdidos.