homescontents
beylikduzu escort istanbul escort bağcılar escort umraniye escort umraniye escort bahceşehir escort sexs hikaye sexs hikaye amator porno travesti escort sexs hikayeleri beylikduzu escort istanbul escort
film izle hd film film

30.11.2016

A formação política por meio do trabalho no canteiro

Ícaro Vilaça

Isadora Guerreiro

A arquiteta e urbanista Isadora Guerreiro foi convidada pela editoria Trabalho e Arquitetura para escrever sobre o trabalho na construção civil como meio para a formação política dos trabalhadores, um dos temas que vêm sendo investigados por ela em sua tese de doutorado. Para tanto, Isadora desenvolve suas reflexões a partir de duas perspectivas contra-hegemônicas distintas: a construção da Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a produção autogestionária realizada pela União dos Movimentos de Moradia (UMM) desde a década de 80.

Arquiteta e urbanista formada na FAU USP, Isadora Guerreiro trabalhou junto a movimentos populares de luta pela moradia em São Paulo desde seu ingresso na graduação. Ingressou na Usina CTAH em 2005, onde desenvolveu atividades de formação política ligada ao urbano como parte dos esforços dos moradores da Favela Jardim Panorama em resistir ao enfrentamento com o Shopping Cidade Jardim, vizinho à comunidade. Entre 2006 e 2012, acompanhou todo o processo de projeto, aprovação e execução de obra da Comuna Urbana Dom Hélder Câmara, primeiro empreendimento urbano do MST em Jandira (SP). Depois disso, fez parte da equipe de projeto para a Associação Piquiá de Baixo, em Açailândia (MA). Integrou a coordenação da Usina CTAH entre 2008 e 2013, primeiro como coordenadora financeira (2008-2011) e depois como coordenadora geral (2012-2013). Afastou-se das atividades cotidianas da assessoria em 2014, para se dedicar ao doutorado e ao ensino.

A editoria Trabalho e Arquitetura , coordenada por Ícaro Vilaça, tem levantado uma série de temas candentes que se iniciaram, acertadamente, pelo apontamento da invisibilidade do trabalho quando o assunto é a arquitetura e o urbanismo. A atitude é eminentemente política, na medida em que retira das sombras o tabu do trabalho, momento crucial de criação de riqueza em nossa sociedade que o discurso dominante quer, justificadamente, deixar oculto sob a apologia ao capital financeiro. Gostaríamos de aproveitar o espaço aberto e o direcionamento dado por Ícaro para apontar elementos históricos que materializaram esta atitude: o caráter de ação política contido na centralidade dada ao trabalho nas práticas de movimentos populares organizados. O tema é vasto. Vamos aqui tratar da especificidade do trabalho na construção civil, em duas perspectivas políticas diferentes. O intuito é elucidar, a título de exemplo, tais diferenças, para mostrar o quão controverso pode ser o tema – que não se esgota nesses casos. Eles são: o trabalho brigadista voluntário realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e a proposta de autogestão da UMM (União dos Movimentos de Moradia).

O trabalho como princípio educativo: em busca da ontologia do ser social

A experiência mais próxima do MST-SP com a construção civil foi a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP)1. Como grande centro nacional de formação política do movimento, ela foi também meio de formação: sua construção foi realizada diretamente por assentados de todo o país, inclusive por grupos de militantes estrangeiros – dentro da mística da concretização de um monumento que expressa o poder popular por meio do trabalho coletivo e voluntário.

O programa arquitetônico envolvia refeitório (1.000m²), alojamentos (1.100m²) e edifício pedagógico (2.100m²), construídos através do trabalho voluntário; além disso, também compunham o projeto auditório (1000m²), administração e museu (350m²), ciranda (100m²) e um ginásio (1.250m²). O desenho foi feito de maneira autoral pela arquiteta Lílian Lubochinski e alude à arquitetura renascentista:

O desafio era de não reproduzir nem a Casa Grande nem a Senzala que marcam a história da injustiça no Brasil. Na ausência de uma linguagem do povo para edificações públicas fui buscar uma referência histórica que ultrapasse a história do capitalismo. Trazer do Renascimento esta linguagem que priorizou uma arquitetura humanista, da escala humana, retomando um outro curso da história a fim de re-elaborar a linguagem arquitetônica e seguir adiante. Os humanistas em busca do novo e de uma nova referência vão a Roma, na arquitetura, na política e no pensamento. A linguagem renascentista sai da vida contemplativa para entrar na vida ativa, da participação criativa. O MST hoje, dentro do contexto histórico brasileiro, é formado por homens que tomam a iniciativa para a vida política. Esta arquitetura tem a função de falar esta linguagem da ação política na tentativa de reagir ao neoliberalismo e seu discurso único do mercado.2

O centro do processo, que coordena todo seu significado e materialidade, foram as brigadas de trabalho: grupos de assentados voluntários, eleitos nas suas regiões para passarem dois meses colaborando com a construção da escola. A coordenação da manufatura se dava por meio da Brigada Permanente (formada por assentados que já haviam participado da construção nas brigadas estaduais e que permaneceram na ENFF), dividida pelos diversos trabalhos concretos que constituíam o canteiro, além dos técnicos que gerenciavam sua totalidade. Este sistema produtivo só foi possível pelo fato de os brigadistas estarem ligados ao trabalho sazonal da lavoura e ainda assim poderem se ausentar do seu lote original na medida em que seus companheiros de assentamento cuidavam temporariamente de sua plantação. Trata-se, portanto, de um trabalho cuja forma é mediada pela especificidade das condições de reprodução da força de trabalho rural, além da organização de um movimento de massa e da objetividade da construção de um espaço coletivo e simbólico.

As brigadas voluntárias eram formadas por 50 a 80 assentados de determinado estado do país, geralmente com pouco tempo no movimento e integrantes dos setores de formação (eram poucos os militantes de base). Ao serem recebidos na ENFF, tinham um primeiro período de formação sobre o MST e o pensador Florestan Fernandes, além da discussão sobre o método de construção da escola e os significados do trabalho coletivo não remunerado. A rotina era composta de trabalho na construção durante o dia e formação política e cultural à noite (inclusive com curso de alfabetização de jovens e adultos), além da participação na organização cotidiana da própria escola com revezamento das atividades (limpeza de louça e espaços). “Portanto, a dimensão educativa do trabalho voluntário na ENFF pode assumir uma determinada importância para a organização do MST, já que abre possibilidades reais para a expansão do trabalho político-organizativo em sua base social”3.

A tecnologia empregada foi a do solo-cimento, em blocos ou paredes monolíticas. Nela, há uma mistura de solo com cimento que permite a fabricação local, dando um caráter autônomo e extremamente artesanal ao canteiro, que emprega grande quantidade de mão de obra. A escolha da técnica fez parte do caráter político e simbólico da construção: “Sem Terra construindo com terra”. Segundo o movimento, tal técnica sintetizava uma série de pontos positivos. O primeiro é econômico-tecnológico: por seu caráter artesanal, permite a apropriação do processo de trabalho (podendo o trabalhador levá-la ao assentamento de origem); utiliza material e mão-de-obra que o processo tem em fartura; propicia autonomia, geração de conhecimento e emprego. Há maior possibilidade de diminuição da divisão social do trabalho, pela proximidade entre o pensar e o fazer. Os arquitetos e engenheiros envolvidos no canteiro, na tentativa de diminuir ainda mais esta diferença, montaram um curso de formação técnica, que envolvia história da arquitetura, a técnica do solo-cimento e paisagismo (ligado aos preceitos da agroecologia).

Na verdade, este curso surge como um experimento capaz de identificar as práticas tradicionais dos trabalhadores com o conhecimento sistematizado da arquitetura. Segundo o depoimento do engenheiro, o processo é rico na troca de aprendizados, possibilitando inclusive o questionamento da formação acadêmica em arquitetura a partir do conhecimento dos trabalhadores acumulado pela vivência prática da construção civil. Ou seja, os trabalhadores acumulam conhecimentos complexos na área da arquitetura sem muitas vezes ter a educação básica ou mesmo um processo sólido de alfabetização. O que se efetiva no cotidiano do canteiro de obras é uma escola viva através de um processo coletivo, onde arquitetos, engenheiros e trabalhadores rompem com uma hierarquia do conhecimento e do fazer próprio da construção civil e vivenciam uma relação pedagógica de forma dialética, aprendendo e ensinando a partir do processo de trabalho.4

O segundo ponto positivo seria o conforto térmico e ambiental: “de baixíssimo consumo de energia não renovável, não gera entulho, o material é reciclável e resulta numa moradia mais saudável para o ser humano do que aquelas que se utilizam materiais sintéticos que não respiram”5. O terceiro seria seu caráter cultural e simbólico, que resgata uma técnica popular anterior aos processos de industrialização perpetrados pelo capitalismo. Segundo a assessoria técnica Usina CTAH: “na autogestão, necessariamente, as técnicas de produção devem ser diferentes, reumanizando o homem ao invés de transformá-lo num autômato”6.

Qual seria então o lugar do trabalho da estratégia política do MST, no caso da construção da ENFF? Em primeiro lugar, é importante identificar qual é a sua crítica ao trabalho no capitalismo. O MST, também por conta da influência da igreja católica na sua história, entende o trabalho como ontologia do ser social: é ele que “humaniza o homem”, o diferenciando dos animais e conformando sua estrutura psíquica e social por meio da relação de transformação da natureza consciente e direcionada a um fim – o atendimento às suas necessidades físicas, psicológicas e culturais. Neste sentido, o trabalho é a mediação necessária com a natureza para a construção do homem como ser criativo e autônomo. Além disso, é por meio do trabalho que o homem se torna um ser social, no compartilhamento das atividades de reprodução da vida e de geração de conhecimento. A origem do movimento reforça ainda mais esta visão, na medida em que sua perspectiva política passa pela construção de determinada subjetividade ligada a valores da ruralidade – seu tempo, sua finalidade, suas formas culturais, etc..

A produção da existência humana e a aquisição da consciência se dão pelo trabalho, pela ação sobre a natureza. O trabalho, neste sentido não é emprego, não é apenas uma forma histórica do trabalho em sociedade, ele é a atividade fundamental pela qual o ser humano se humaniza, se cria, se expande em conhecimento, se aperfeiçoa. O trabalho é a base estruturante de um novo tipo de ser, de uma nova concepção de história. É a consciência moldada por esse agir prático, teórico, poético ou político que vai impulsionar o ser humano em sua luta para modificar a natureza (ou para dominá-la, como se dizia no passado, antes que se tomasse consciência da destruição que o homem vem operando sobre o planeta). Diferente dos animais, a consciência do ser humano é a capacidade de representar os seres de modo ideal, de colocar finalidades às ações, de transformar perguntas em necessidades e de dar respostas a essas necessidades. Os seres humanos agem através de mediações, de recursos materiais e espirituais que eles implementam para alcançar os fins desejados” 7.

A crítica do MST ao trabalho no capitalismo é a reversão operada no seu estatuto ontológico, criando uma forma histórica na qual este, ao invés de emancipar, escraviza o homem por meio de determinantes externas às suas necessidades. O trabalho é transformado num meio de sujeição do homem ao tempo da máquina (uma necessidade de rotação do capital), de separação dele dos seus produtos de trabalho, de divisão social, de espoliação, de alienação, de castração da criatividade, de afastamento do campo espiritual, de embotamento psíquico e de aniquilação, portanto, do trabalhador. A bandeira política de luta pela Reforma Agrária carrega consigo um enfrentamento maior do que o diretamente ligado à propriedade fundiária: ela é a possibilidade de formação do “novo homem”, que retorna ao seu estatuto ontológico. Por isso, não bastaria ao movimento apenas assentar: é necessária a formação desta subjetividade, possível por meio da reinvenção do trabalho na práxis cotidiana. “Um processo educativo emancipatório será aquele que permita ao jovem e ao adulto compreenderem, partindo da leitura crítica das condições e relações de produção de sua existência, a dimensão ontocriativa do trabalho” (FRIGOTTO et.al.: s/d, 8).

O projeto político do MST parte, portanto, do pressuposto do trabalho como princípio educativo. Segundo Frigotto:

Percebe-se a centralidade do trabalho como práxis que possibilita criar e recriar, não apenas no plano econômico, mas no âmbito da arte e da cultura, linguagem e símbolos, o mundo humano como resposta às suas múltiplas e históricas necessidades. Nesta concepção de trabalho, o mesmo se constitui em direito e dever, e engendra um princípio formativo ou educativo. O trabalho como princípio educativo deriva do fato de que todos os seres humanos são seres da natureza e, portanto, têm a necessidade de alimentar-se, proteger-se das intempéries e criar seus meios de vida. É fundamental socializar, desde a infância, o princípio de que a tarefa de prover a subsistência e outras esferas da vida pelo trabalho é comum a todos os seres humanos, evitando-se, desta forma, criar indivíduos ou grupos que explorem e vivam do trabalho de outros, ou se caracterizem como, segundo a afirmação de Gramsci, mamíferos de luxo. O trabalho como princípio educativo não é apenas uma técnica didática ou metodológica no processo de aprendizagem, mas um princípio éticopolítico. Dentro desta perspectiva, o trabalho é, ao mesmo tempo, um dever e um direito. O que é inaceitável e deve ser combatido são as relações sociais de exploração e alienação do trabalho em qualquer circunstância e idade”8.

Neste sentido, a perspectiva política do trabalho voluntário no MST é o rompimento com o capitalismo ao experimentar, por meio da práxis, a desconstrução do trabalho como mercadoria. Ainda que dentro deste modo de produção, a construção da ENFF buscou, na medida do possível (e com as determinantes próprias de um canteiro em área rural, de uma obra de caráter simbólico e educativo, com financiamento autônomo do poder público), se desligar da cadeia da construção civil. Tanto na mão-de-obra quanto nos materiais, a autonomia da produção foi fator fundamental, o que ao mesmo tempo pode ser considerado um fator positivo pelas suas potencialidades experimentais, mas por outro tem limitações políticas bastante claras no que diz respeito ao caráter histórico do trabalho e, portanto, da inserção e enfrentamento na realidade concreta da maioria dos trabalhadores.

Entretanto, o que se destaca dentro do desenvolvimento da história do MST é a criação de novas possibilidades concretas de formação de militantes, como, por exemplo, a experiência de trabalho voluntário na ENFF, onde a transformação está na luta pela mudança qualitativa da categoria trabalho, passando da condição de objetivação alienada para a condição de objetivação social, produzida e apropriada coletivamente e humanamente.9

O Trabalho como transformação do Estado: democracia participativa

De outros pressupostos partiram as cooperativas de moradia uruguaias centralizadas pela Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua (FUCVAM) desde a segunda metade da década de 1960. Seu objeto é o espaço de uso privado (a moradia) e seus participantes são trabalhadores urbanos sindicalizados. Permanece o estatuto do trabalho como meio de emancipação e consolidação de organicidade, porém são outros os elementos em jogo: autogestão, ajuda mútua (mutirão) e propriedade coletiva. Há uma diferença marcante entre os dois modelos: o sujeito político formado no primeiro (as Brigadas Voluntárias do MST) é uma fração abstrata do corpo coletivo, do movimento de massa, dentro do qual nasce sua subjetividade; já no caso uruguaio, este sujeito político forma a coletividade por meio de sua subjetividade (uma dinâmica, portanto, contrária), pois ali a questão da particularidade do indivíduo é a fonte do trabalho comum: há que se resolver a dialética entre o indivíduo e o coletivo, pois se trata fundamentalmente da construção de um espaço de uso privado. A autogestão, portanto, é elemento central na medida em que totaliza o processo produtivo no trabalhador, e não numa entidade abstrata (no caso, o capital, que comanda o processo produtivo): educação para a emancipação, autonomia.

A UMM traz para o Brasil a experiência uruguaia no final da década de 1980 (*ver texto anterior neste editorial). Fundamental para o objetivo aqui proposto é entender o lugar do trabalho na sua estratégia política. Diferentemente da experiência do MST na ENFF – que, por seu estatuto ontológico e autônomo, tem certo descolamento do chão histórico – a proposta da UMM está inserida (não como herdeira, mas como partícipe) no processo de redemocratização brasileiro (*ver texto anterior). Sua perspectiva política passa por outros caminhos, portanto, mais próximos da constituição de um modelo de Estado Democrático específico, estruturante do Partido dos Trabalhadores (PT). O estatuto da política muda aqui: de uma transformação subjetiva por meio do trabalho (objetivando a emancipação do homem, dentro de uma composição de classe), para uma transformação objetiva das estruturas organizativas e de poder (objetivando a emancipação social, conformada por cidadãos). Isso não impede de que muitas práticas, meios e formas sejam próximos – o que muitas vezes dificulta a necessária diferenciação.

Este projeto democrático específico tem como eixo o pressuposto da organização institucional da sociedade por meio do Estado de direito conformado pela participação de cidadãos. Estes só podem interferir de maneira qualificada na Instituição na medida em que passam por um processo de construção de determinada subjetividade coletiva – não se trata, portanto do “homem ontológico”, mas do corpo social e sua base. O trabalho, nestes termos, é entendido como meio fundamental de socialização, organização e geração de conhecimento (conscientização coletiva). O movimento popular seria a organização de massas que capilariza a ação estatal e constrói o sujeito político próprio para lidar com ela. É uma concepção de Estado democrático, portanto, que tem as relações de poder mais horizontais pois baseado na participação de cidadãos que devem, então, ser formados para isso. O trabalho coletivo age como instrumento desta formação. Segundo Evaniza Rodrigues: “(…) O conceito da autogestão não envolve uma construção que se opõe ao Estado, ou que atua em paralelo, mas uma ação voltada para a transformação do Estado, para que não seja mais uma estrutura a serviço do capital e da dominação de classes” (RODRIGUES: 2013, 26).

Nesta concepção há a defesa da atuação política dentro do Estado, pois ele seria entendido como uma estrutura totalizante das forças sociais na medida em que for participativo. O sujeito político atuaria enfrentando os interesses do mercado, dentro do Estado, tendo como base uma formação por meio do trabalho coletivo e como produto social o aprofundamento das políticas públicas, num alargamento da função estatal que é, no limite, a da própria sociedade coletivizada – mas, no caso, ainda centralizada institucionalmente. O trabalho não tem um fim em si – como o caso da ENFF se aproxima mais –, adquirindo um caráter duplo de ser propositivo socialmente e bastião de resistência aos ataques à democracia.

A formação do sujeito político por meio do trabalho é elemento fundamental aqui, pois entende que a crítica ao capitalismo deve ser realizada na esfera da produção, e não apenas na circulação de mercadorias já acabadas – fato que acirraria a alienação própria a este modo de produção. Consegue formar um ponto de vista no qual é possível fazer a crítica à forma como a cidade é produzida e como o Estado interfere nisso (pois também está dentro dele). Constrói a noção de direito como estrutura contratual baseada na apropriação dos produtos de trabalho pelo Estado na figura de fiador e representante social do trabalhador e não, portanto, como meio de acesso ao mercado. É uma crítica à estrutura contratual capitalista na qual o acesso aos bens produzidos coletivamente é negado pela propriedade privada. Alcança esta crítica não por meio da conscientização acadêmica, mas pela experimentação prática com outro modo de produção que desnaturaliza a forma do trabalho capitalista, dando a ela historicidade.

A formação do grupo para a ação coletiva vai trabalhar com a valorização de conceitos, como participação, ajuda mútua, saber popular, solidariedade e utopia, como motivadores da ação. Mais recentemente, se opõe à noção de acesso a direitos como simplesmente acesso ao mercado, bandeira neoliberal que preconiza que, se o trabalhador tiver renda e o mercado imobiliário fornecer o ‘produto’ moradia em escala, não é necessária a ação direta do Estado. Os movimentos populares defendem as políticas públicas e se opõe a essa visão de acesso a direitos por meio apenas da ampliação do consumo, seja de moradia, saúde ou educação privada.10

Esta forma de inserção do trabalho na estratégia política do movimento popular objetiva dois grupos de transformações, que aconteceriam simultaneamente: um interno à classe trabalhadora, e outro na estrutura social. Internamente, promoveria melhora nas capacidades econômicas, técnicas, sociais e políticas dos setores populares. Haveria o desenvolvimento de uma consciência crítica individual, por meio do trabalho, que conformaria maior organização coletiva contra a cultura do imobilismo e individualismo. Isso seria acompanhado pela descentralização da gestão da vida, com avaliação coletiva permanente e responsabilidades compartilhadas.

O segundo grupo de transformações, na estrutura social, trata de contrapor a “cidade-mercadoria” (fruto das relações de trabalho capitalistas, onde o trabalhador é separado dos seus produtos de trabalho e, portanto, da cidade) à chamada “cidade-direito” (centralizada na entidade estatal constituída de forma participativa, na qual os trabalhadores teriam acesso retroativo aos seus produtos de trabalho, a cidade). Esta “cidade-direito” constitui o cerne do movimento de Reforma Urbana originado na década de 1980, como ação propositiva que compunha o ideário de Estado Democrático Popular (protagonizado pelo PT).

Ao experimentar novas formas e meios de produção, surgem novos produtos e, portanto, outra cidade. A moradia, produzida por meio do trabalho não vendido como mercadoria, teria seu valor de uso priorizado, enfrentando a lógica capitalista. E, com este estatuto do produto do trabalho humano reapropriado, seria possível a racionalidade do projeto de arquitetura, a adequação da técnica ao trabalho e ao canteiro de obras. Neste sentido, a potência da relação entre trabalho e arquitetura teria como meta a construção de uma nova ordem, baseada na economia solidária (rompimento com a alienação no trabalho e a apropriação individual dos seus produtos). Aqui, as duas experiências (da UMM e do MST) se encontram novamente na questão ontológica só que, aqui, trata-se da ontologia do habitar: seu lugar cultural na formação do homem social, a qualidade de vida baseada nas necessidades coletivas (e não individuais), na construção da vida comunitária, na geração de outro tecido social e de outra cultura.

Enrique Ortiz apresenta essas experiências e práticas como forma ‘de retirar o hábitat e a habitação da conceituação que os reduzem a meros objetos mercadoria, para tentar recuperar a sua função social, cultural e humana, e esclarecer as muitas interações que os potencializam como fatores de desenvolvimento e organização social, ordenamento territorial, uso do solo, preservação ambiental e fortalecimento da economia social e solidária’.11

Assim, percebem-se aproximações nas duas estratégias políticas baseadas no trabalho no canteiro de obras, principalmente na retomada do estatuto ontológico do trabalho como crítica e resistência ao capitalismo. No entanto, há diferenças fundamentais. Além da relação campo-cidade, da organização do trabalho no canteiro, das técnicas e funções da arquitetura, etc., gostaríamos de frisar que o trabalho coletivo como formador de subjetividade política tem papeis diferentes. Na UMM, trata-se de construir o cidadão de direito, que tem função social vinculada ao Estado, numa perspectiva de constituição da esfera republicana (a auto-organização dos cidadãos na esfera pública). Na ENFF do MST, o Estado e a cidadania não são colocados em questão, mas a construção da organização popular autônoma, inclusive nos seus aspectos culturais. Isso não significa que o MST não se relacione com o Estado (muito pelo contrário, é um movimento reivindicativo). O intuito aqui, no entanto, é buscar onde se encontra, como se dá e quais as consequências e significados políticos do trabalho coletivo no espaço construído na luta pela superação do capitalismo. Para completar o quadro, desenvolveremos ainda (em outro momento) a visão marxista da questão, que vai divergir tanto da primeira experiência (defendendo a historicidade do trabalho em contraponto ao seu estatuto ontológico, entendido como uma forma idealista), quanto da segunda (ao se contrapor à forma Estado e sua consequência, o sujeito de direito, como formas derivadas do capital).

Notas de Rodapé

  1. Em todo este item, baseamo-nos no trabalho SILVA, Roberta Maria Lobo da. A Dialética do Trabalho no MST: A Construção da Escola Nacional Florestan Fernandes. Tese de doutorado. Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.
  2. SILVA, Roberta Maria Lobo da. A Dialética do Trabalho no MST: A Construção da Escola Nacional Florestan Fernandes. Tese de doutorado. Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005. p. 181.
  3. Idem. p. 179.
  4. Idem. p. 183.
  5. Idem. p. 183.
  6. USINA CTAH. Arquitetura, Política e Autogestão: um comentário sobre os mutirões habitacionais. In: Revista Urbânia, v. 3, 2008. p. 58
  7. CIAVATTA, Maria. Trabalho como princípio educativo na sociedade contemporânea. Síntese do texto discutido com os participantes do Seminário Nacional de Formação – MST, realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes em março de 2005. Disponível em: <http://www.forumeja.org.br/files/Programa%205.pdf>. Acesso em 22/10/2016.
  8. FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. O trabalho como princípio educativo no projeto de educação integral de trabalhadores – Excertos. Disponível em: <http://redeescoladegoverno.fdrh.rs.gov.br/upload/1392215839_O%20TRABALHO%20COMO%20PRINC%C3%8DPIO%20EDUCATIVO%20NO%20PROJETO.pdf>. Acesso em 22/10/2016. p. 9.
  9. SILVA, Roberta Maria Lobo da. A Dialética do Trabalho no MST: A Construção da Escola Nacional Florestan Fernandes. Tese de doutorado. Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005. p. 186.
  10. RODRIGUES, Evaniza Lopes. Estratégia Fundiária dos movimentos populares na produção autogestionária da moradia. Dissertação de mestrado. Pragrama de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. Orientação: Raquel Rolnik. p. 29.
  11. RODRIGUES, Evaniza Lopes. Estratégia Fundiária dos movimentos populares na produção autogestionária da moradia. Dissertação de mestrado. Pragrama de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. Orientação: Raquel Rolnik. p. 26.

©2024 KLEO Template a premium and multipurpose theme from Seventh Queen

Fazer login com suas credenciais

Esqueceu sua senha?