Em 2011, a Caixa Econômica Federal, em comemoração aos seus 150 anos de existência, apresentou um comercial colocando Machado de Assis, branco, como um assíduo poupador da instituição. O personagem, com efeito, diz: “Vim fazer o que faço todo mês, um depósito na caderneta de poupança”. No começo do anúncio é enfatizado, com um humor duvidoso, pela voz da narradora Glória Pires, que até os imortais se preocupam com o futuro – informação retirada na versão em que “escurecem” Machado de Assis em função das reclamações que o “embranquecimento” do escritor gerou na primeira versão. Esta nova versão começa com Aílton Graça, conhecido ator negro, como narrador dizendo: “Em respeito à história da Caixa e em respeito ao povo brasileiro, apresentamos Machado de Assis” e, curiosamente, ou sintomaticamente, começa a mesma narrativa do comercial anterior com a voz da antiga narradora, Glória Pires, com um ator negro – muito provavelmente mais escuro do que Machado de Assis, pelo que os registros fotográficos podem indicar.
Certo “nacionalismo” presente que justifica a correção do texto publicitário, “respeito ao povo brasileiro”, e a hipercorreção racial mostram sua contraface na troca da narração de Aílton Graça, na abertura, para a primeira narradora, Glória Pires. Ou a situação toda apresenta certa dinâmica em que estruturas superficiais são mais flexíveis, e “corrigíveis”, enquanto a condução narrativa, ou esse elemento mais estrutural permanece, depois da “finta” inicial, intacto – com o ator negro, é verdade, substituindo o branco representando Machado de Assis e hipercorrigindo o “problema”. Muito provavelmente esse tipo de decisão acontece por critérios relacionados à produção publicitária e, bastante provável, aproveitando os elementos já produzidos anteriormente na nova versão. Mas não deixa de ser sintomático que a equipe envolvida na produção não tenha sentido nenhum desconforto na transição das vozes narrativas, já que muito trabalho e atenção são requeridos em cada frame de anúncios publicitários – a transição de fato acontece com certa artificialidade, com excessiva rigidez. Isso deixando de lado o fato de que o anúncio precisou ser refeito, por apresentar um problema relacionado a essa negociação da representação racial.
Machado de Assis, como demonstra o pesquisador Sidney Chalhoub em seu livro “Machado de Assis, historiador”, foi um homem profundamente enraizado em seu tempo. O escritor trabalhou em uma seção do Ministério da Agricultura encarregada de problemas relacionados à escravidão, ou da aplicação da lei de 28 de setembro de 1971, mais conhecida como a lei do ventre-livre, e, também, ligada à resolução de problemas relacionados à política de terras. Chalhoub defende que essas derrotas cotidianas de Machado provavelmente forneceram os elementos para a transformação na representação artística dessa classe senhorial em seus livros. A relação de Machado de Assis com seu tempo e com a história recente do país foi bem estudada pelo crítico inglês John Gledson. Antes dele, esse assunto já havia sido abordado de maneira extensa por Raimundo Faoro em seu livro “Machado de Assis – a pirâmide e o trapézio”, mas Gledson consegue descrever com considerável precisão em seu livro “Machado de Assis: ficção e história” a maneira como o autor elaborou de fato uma leitura complexa e coerente da História do país e como isso aconteceu, ao que tudo indica, como uma espécie de projeto literário que perpassa seus romances.
Essa História e essa “comédia humana”, como o crítico inglês chama a atenção, que ficou mais clara para ele depois da leitura do livro de Roberto Schwarz “Ao vencedor as batatas”, livro que fornece chaves importantes para a leitura dos romances e dos processos sociais que esses transfiguram. O nexo entre forma artística e sociedade, segundo o crítico, se dá por meio da “nossa mediação quase universal”, ou do favor. Roberto Schwarz, com efeito, apresentou essa chave de leitura do país e de Machado no seu conhecido ensaio “As ideias fora de lugar”, que abre seu livro “Ao vencedor as batatas”, e demonstrou a coerência dessa visão sobre o funcionamento do país, no plano da representação literária, ou nessa mediação entre forma artística e processo social, ao longo de diversos estudos sobre Machado de Assis. Sua investigação, que acontece por meio de uma abordagem metodológica bastante interessante e particular, procura explicar, entre outras coisas, a transformação na construção narrativa que se deu no autor a partir de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, ou, “A viravolta machadiana”, para citar o título de um artigo relativamente recente em que ele volta a essas questões. Neste artigo ele comenta:
Os rearranjos em matéria e forma operados por Machado faziam que um universo ficcional modesto e de segunda mão subisse à complexidade da arte contemporânea mais avançada. Para sublinhar o interesse desse percurso, digamos que ele configura em ato, no plano literário, uma superação das alienações próprias à herança colonial (p. 248, 2012).
Ou, caso a análise do crítico esteja correta, e ao que tudo indica está, Machado de Assis opera, por meio da atenção fina àquele contexto ao qual estava inserido, um rearranjo artístico que acaba por reconfigurar, no plano literário, a relação entre centro e periferia.
O eixo da explicação do crítico passa, como dito, pelas relações de favor, nossa “mediação quase universal”, que acontece por conta da vontade senhorial como um dado que organiza àquela, e em alguma medida esta, conformação histórica. Em “A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista” o historiador Sidney Chalhoub demonstra como a vontade senhorial estabeleceu de fato um traço constitutivo do país, que organizava inclusive o sistema jurídico forçando a disputa pela liberdade ou não dos escravos acontecer muitas vezes em torno da vontade desse senhor que, em muitos casos, havia concedido a liberdade para os africanos após sua morte, dado que era em muitos casos ignorado por seus herdeiros. Ou, em outras palavras, a argumentação jurídica precisava ser estruturada para fazer valer a vontade senhorial, que tinha, de fato, peso de lei.
Essa lógica, que segundo Chalhoub pertencia à experiência imediata de Machado de Assis no seu trabalho no Ministério da agricultura, foi transfigurada pelo escritor em diversos planos da elaboração artística, como na constituição do narrador volúvel de “Memórias póstumas”, caracterizado por Schwarz em seu livro “Um mestre na periferia do capitalismo”. Como, segundo o argumento do crítico, não tivemos os processos que apontaram para uma, talvez, maior autonomia dos indivíduos, decorrente das transformações nas formas de trabalho que ocorreram no século XIX sob o capitalismo liberal, os “confrontos” entre as personagens – e, muito provavelmente, entre as pessoas naquela realidade histórica, como demonstram os processos jurídicos investigados por Chalhoub – se davam, em Machado, muitas vezes de forma lateral ou enviezada, “respeitando” a vontade senhorial. Comentando um diálogo de Estácio com Helena – no romance Helena – Sidney Chalhoub1 mostra como as situações assimétricas, fruto das relações de favor, possibilitam que os privilegiados possam falar o que bem entenderem, com liberdade e habilidade até, sem nunca entrar no mérito das questões que os agregados colocam, pois, para usar os termos do autor, “(…) em nenhum momento as prerrogativas das vontades senhoriais são questionadas”2. Parece que a liberdade que os senhores têm, oriunda do privilégio, permite uma flutuação das idéias que não ganham centros de gravidade, pois nunca precisam entrar em confronto com outras ou elas próprias, já que “o teste de realidade e da coerência não parecia, aqui, decisivo, sem prejuízo de estar sempre presente como exigência reconhecida, evocada ou suspensa conforme a circunstância”3. Schwarz circunscreve o “lugar” do liberalismo no Brasil do século XIX dentro dessa dinâmica:
O liberalismo passa, na falta de outro termo, a penhor intencional duma variedade de prestígios com que nada tem a ver. Ao legitimar o arbítrio por meio de alguma razão “racional”, o favorecido conscientemente engrandece a si e ao seu benfeitor, que por sua vez não vê, nessa era de hegemonia das razões, motivo para desmenti-lo4
Esse ritmo de flutuação das ideias, que Machado refinou ao longo de sua vida como um dispositivo literário, chega até seus romances finais, como demonstra a conhecida frase que o autor colocou na boca do Conselheiro Aires – mas também se muda de roupa sem trocar de pele – sobre o fim da monarquia e o começo da república. Vale reproduzir um trecho mais longo do capítulo de “Esaú e Jacó” sem perder de vista que Machado se manteve um monarquista liberal totalmente descrente em relação à república nascente, que, ao que tudo indica, ele percebia que apontava para a constituição de um trágico federalismo oligárquico, o que o tempo de fato demonstrou:
Que, em meio de tão graves sucessos, Aires tivesse bastante pausa e claridade para imaginar tal descoberta no vizinho, só se pode explicar pela incredulidade com que recebera as notícias. A própria aflição de Custódio não lhe dera fé. Vira nascer e morrer muito boato falso. Uma de suas máximas é que o homem vive para espalhar a primeira invenção de rua, e que tudo se fará crer a cem pessoas juntas ou separadas. Só às duas horas da tarde, quando Santos lhe entrou em casa, acreditou na queda do império. — É verdade, conselheiro, vi descer as tropas pela Rua do Ouvidor, ouvi as aclamações à república. As lojas estão fechadas, os bancos também, e o pior é se se não abrem mais, se vamos cair na desordem pública; é uma calamidade. Aires quis aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regime, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. Comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição (Grifos nossos).
O uso da pele nesse trecho não remete imediatamente à questão racial e a situação dos escravos recém libertos, mas possivelmente indiretamente, como cabe a esse dispositivo literário que o autor desenvolveu. Os dados que o autor, por meio desse narrador, sinaliza como “eterno”, imutável, com contornos míticos, são o comércio e os bancos indispensáveis.
O principal biógrafo de Machado de Assis, o francês Jean Michel Massa, acredita que o autor, que abominava a escravidão, se enxergava provavelmente mais próximo aos brancos naquela sociedade, e defende, apresentando provas robustas, de que houve certo exagero em relação à sua ascendência escrava e a sua condição social. Machado era filho de pais pobres mas alfabetizados, o que, naquela sociedade, o colocava entre uma minoria de privilegiados, já que ler naquele contexto era um privilégio. E usou esses poucos recursos que teve para criar uma trajetória de vida de fato impressionante.
Existe uma crítica, que aos poucos vem sendo desmontada (como no trabalho de Selma Vital), de que o autor virou as costas para a escravidão, ou que ele foi um “mulato de alma branca”, expressão cunhada por Gilberto Freyre em uma comparação que faz do autor com Lima Barreto em um texto de 1956, que entranhou no imaginário nacional. Talvez o fato de Machado não essencializar a questão racial em seus escritos, avesso que era a idealizações, leve a esse equívoco – a escravidão e a condição dos negros, assim como a problematização da vontade senhorial, são dados estruturais em seus textos e não algo de superfície, ou um elemento mais imediato que poderia até alimentar certo pitoresco que alguns escritores com colorações naturalistas, bastante lidos, mais do que o próprio Machado no começo da década de 18805, lançavam mão dentro de uma concepção “científica” em boa medida racista. Entender a viravolta machadiana, ou como se forja esse dispositivo literário que o autor cria, passando inicialmente no “jovem Machado” de, no limite, uma reforma um tanto lacrimosa do paternalismo, para a colocação dessa vontade senhorial em foco, ou para a sua exposição em chave crítica e moderna, ajuda a evitar essas armadilhas e a perceber o papel decisivo da questão racial e o peso da escravidão na literatura do autor.
Provavelmente Machado de Assis teria dado uma boa gargalhada em relação à solução estabelecida no conflito racial do anúncio publicitário da Caixa Econômica Federal, que, mal parafraseando o Conselheiro Aires, mudou de pele sem alterar, de fato, aspectos mais estruturais relacionados ao problema racial que o próprio anúncio colocou em foco. Retomando, a narração de Aílton Graça, que “corrigiria”, junto à hipercorreção racial do ator, o problema anterior, é substituída pela de Glória Pires depois da breve aparição inicial do narrador negro fazendo uma fala apelando ao “respeito ao povo brasileiro”. Isso bem poderia ser um conto de Machado de Assis, escrito, no entanto, para lembrar a muito repetida expressão do autor, com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.
Notas de Rodapé
- CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo, companhia das letras, 2003. p. 31
- Idem. P.63.
- SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Ed. Duas cidades, 2001. p. 19
- Idem. p. 18
- Hélio Seixas Guimarães aponta que “O mulato”, de Aluísio Azevedo, lançado no mesmo ano das “Memórias póstumas”, foi muito mais, ao que tudo indica, lido, discutido e debatido na imprensa do que o famoso livro de Machado. OS LEITORES DE MACHADO DE ASSIS: O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19