Ao se deparar com grupos vulneráveis, o papel dos advogados e defensores públicos deve ir além da questão técnica. A esses profissionais, mais do que apenas assistência jurídica, cabe a contribuição na discussão de políticas públicas, inclusive mobilizando a sociedade civil, dando visibilidade para os casos e trazendo o assunto para a esfera pública.
Fabiana Severo, defensora pública da união, é uma dessas pessoas que enxerga além do direito tradicional. Atua no Estado de São Paulo e é especialista em casos de trabalho análogo ao escravo. Quem fala ao lado de Fabiana é um amigo pessoal. Ronaldo Vasconcelos atua na outra ponta do sistema jurídico, como advogado de defesa das empresas. O embate entre os dois, no entanto, não se reduz a ganhar ou perder o processo, o que pode se arrastar por anos, gerando desgaste para ambas as partes. O interessante é conseguir um acordo mais ágil, ressarcindo as partes lesadas e mudando a cultura da empresa para que a situação não se repita, além de servir como exemplo para outras com práticas semelhantes.
A defensoria pública da união tem como incumbência prevista na constituição prestar auxílio jurídico integral e gratuito aos grupos vulneráveis, com o intuito de construir uma sociedade menos desigual. Nos últimos quatro anos, a defensoria tem desenvolvido projetos ligados aos setores da sociedade mais invisíveis ao Estado. Isso tem levado a instituição a usar recursos de busca ativa, pois tratam-se de pessoas que não vão habitualmente buscar ajuda jurídica. São questões relacionadas a Tráfico de pessoas e Trabalho escravo, pessoas em situação de rua, comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, catadores e grupos LGBT, por exemplo.
A área de atuação de Fabiana Severo é relativamente recente. O primeiro registro de caso de trabalho análogo ao escravo pelo Ministério do Trabalho e Emprego chegou à defensoria em 2009. O combate a essa prática, no entanto, começou um pouco antes. Desde 1995 há registros de resgates de costureiros imigrantes, mas sempre na esfera criminal. Só a partir de 2003 que começou-se a pensar em políticas públicas a respeito do assunto. O Protocolo 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) passou a reconhecer que migração e Tráfico de pessoas estão intimamente ligados às práticas de Trabalho escravo contemporâneo. As pessoas migram por vulnerabilidade e os setores da indústria se aproveitam desse sistema como modelo de negócio, gerando mais lucro.
Há uma necessidade de mudança de cultura dentro das empresas e, de acordo com Ronaldo Vasconcelos, isso só é possível com a atuação forte dos órgãos de controle. Segundo ele, a cultura nesse meio é reativa e funciona na base do dano e da recompensa. Medidas repressivas que afetam a empresa financeiramente, seja de forma direta, como multas, ou indireta, como as listas sujas, são um incentivo para a conscientização de boas práticas e servem como exemplo para as outras empresas. No exterior, a preocupação com a transparência é capitalizada e uma boa reputação é fundamental para a lucratividade da companhia.
Por aqui, a atuação dos órgãos de controle começa na esfera trabalhista. Há uma efetividade maior quando a inspeção dos postos de trabalho é realizada por uma equipe multidisciplinar. Ao verificar alguma irregularidade, é feita a rescisão imediata do contrato do trabalhador lesado. Depois são lavrados os autos de infração e o seguro desemprego é liberado. Por fim, a empresa é incluída na lista suja de Trabalho escravo. Nesse ponto, se o empregador cooperar, pode ser feito um acordo, caso contrário, já se inicia uma ação judicial.
O Trabalho escravo e o Tráfico de pessoas é crime e há um grande esforço para a responsabilização dos sócios em situações como essa. O que acontece atualmente é que a lei atinge a pessoa física e não a jurídica, penalizando criminalmente apenas o empregador direto – enquanto que os demais sócios saem impunes. As sansões para a empresa são de natureza econômica, como a inclusão na lista suja, o que prejudica as relações comerciais, investimentos e reputação. Também pode ser feita expropriação de propriedades, como o confisco de lucros oriundos de trabalho forçado, e medidas que afetam a cadeia produtiva, como a cassação do ICMS.
Além da repressão, Fabiana Severo defende os mecanismos de prevenção como forma de evitar práticas análogas à escravidão. O empoderamento dos grupos vulneráveis é fundamental. Regulamentação migratória, acesso à renda e à propriedade e ampliação do acesso à informação contribuem nesse sentido. Também é necessária uma maior atenção às práticas de recrutamento, que muitas vezes são a raiz do problema. A atividade econômica do recrutador já é regulamentada e deve ser registrada, mas acaba acontecendo de maneira informal, aumentando o risco de práticas abusivas e fraudulentas.
Uma análise mais profunda da cadeia produtiva também é importante e o debate trabalhista deve ter o engajamento de toda a sociedade e não apenas do Estado. A questão da terceirização é um dos pontos chave na discussão. O que é proposto na Câmara dos Deputados é que qualquer atividade possa ser terceirizada e a responsabilidade é tratada de maneira simplista. Isso não significa que a planta industrial tenha que voltar à empresa e que toda a mão-de-obra tenha que ser internalizada, mas deve haver algum tipo de responsabilidade em cadeia para evitar abusos.
A escravidão contemporânea não se baseia apenas no sentimento de liberdade. Além do trabalho forçado e da servidão por dívida, a jornada exaustiva e as condições precárias também caracterizam esse tipo de trabalho – justamente os itens que alguns atores políticos e econômicos querem retirar da conceituação com projetos de lei em tramitação, como o PL4330. A ironia é que muitos dos congressistas que apoiam o projeto já tiveram problemas envolvendo denúncias em suas respectivas fazendas. É bastante sintomático o parecer dos juízes do TRF–5, tribunal com maior número de absolvições em casos de denúncia de escravidão: isso não configura Trabalho escravo porque as condições mencionadas são parte da triste realidade do trabalhador nordestino.