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14.12.2016

Escravo, forro e livre: O antigo regime e o Brasil atual

Rodrigo Bonciani

A história da escravidão também é a história da escrita sobre a escravidão, o que chamamos de historiografia da escravidão. Quando Gilberto Freyre publicou, em 1933, Casa Grande & Senzala aquela foi uma nova forma de falar sobre a escravidão, conectada à produção sociológica moderna, com particular influência da norte-americana, que propunha uma interpretação da formação social brasileira através da análise do escravismo, que adocicava a violência da escravidão, ao mesmo tempo em que valorizava o contributo do negro e da miscigenação à formação da família patriarcal brasileira.

Alguns anos depois surgiu, em A formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, uma nova interpretação do escravismo, baseado na teoria marxista, que destacava o lugar da escravidão no processo de formação do capitalismo. Essa interpretação, predominante a partir dos anos 1960, no processo de institucionalização dos departamentos de ciências humanas nas universidades brasileiras, criticou a ideologia da democracia racial brasileira e viu na escravidão um fator decisivo para o caráter dependente de nossa economia e de exclusão social do negro. A superação dessa dependência viria pela ação de um Estado desenvolvimentista agressivo ou por meio de um processo revolucionário conduzido por uma vanguarda intelectual.

No fim dos anos 70 e início dos 80, uma nova geração de historiadores, dos quais destaco o brasilianista Russell-Wood, passava à crítica do pensamento marxista que, em última instância, acabara por reificar o ser escravo, e mesmo o negro, reafirmando uma caracterização da sociedade brasileira pela dicotomia senhor-escravo. Em contrapartida, a nova historiografia da escravidão propunha, por meio da valorização do trabalho empírico, a recuperação do lugar de escravos, libertos e homens negros ou mulatos livres como sujeitos da história, em uma sociedade que, destarte a construção jurídica da escravidão como instituição, era muito mais complexa do que geralmente se imagina. Como dito em texto anterior, acredito que a sociedade brasileira passa por um momento chave de transformação histórica e com ela a escrita da história também muda. Quero acreditar que, dessa vez, seja possível escrever e fazer história sem desfazer as diferentes contribuições e perspectivas acumuladas pelas artes e ciências humanas. Neste sentido, proponho uma reflexão sobre a escravidão que aproxime os aportes feitos pela história política e pela história social.

Como definem as Siete Partidas, corpo normativo medieval castelhano, que influenciou a elaboração das ordenações portuguesas, os “estatutos humanos” eram divididos em três categorias: escravos, forros e livres. Essa divisão social tripartite põe em causa a ideia de uma divisão dicotômica ou bipolar.

Ademais, havia uma perspectiva hierárquica e de distinção social em cada um desses “estatutos”, particularmente entre as pessoas livres. A liberdade de um senhor de engenho não era da mesma qualidade do que a de um índio. O dicionário de Raphael Bluteau, das primeiras décadas do século XVIII, exemplifica essa perspectiva distinta das relações sociais no verbete “igualdade”:

A Natureza nos fez iguais, mas para a harmonia do mundo moral, a razão, & a política introduziram a desigualdade, para que com boa proporção & ordem, tivessem todos os graus o seu lugar. Na Música o Uníssono é condenado, porque é infrutuoso; não pode a monotonia produzir consonância. Nos diferentes estados da vida, o maior responde ao Grave, o menor ao Agudo; do temperamento do Grave, & do Agudo se forma a melodia das vozes; da união do maior com o menor se originaram os acertos do governo. No igual não tem poder outro igual; É preciso no mundo igualdade desigual, ou semelhança com desigualdade (…) nas Repúblicas bem governadas, há uma desigualdade harmônica, que dando a cada um o que lhe convém, segundo a Geométrica proporção, mantém em todos boa ordem, & paz.

A ideia de “fazer justiça” e de bem governar significava, portanto, dar a cada um o que lhe cabia, segundo um ordenamento social fundamentado em desigualdades naturais ou históricas. O fato de o Brasil ser um dos países mais desiguais do mundo se explica, por um lado, pela persistência de hábitos e valores do Antigo Regime e da sociedade escravista, e por outro, por sua inserção dependente no capitalismo, que reforçou a ideia de que a ascensão social depende do esforço individual.

Parte da historiografia, ou o senso comum, associa a dicotomia liberdade-escravidão à ideia de substituição da mão de obra indígena pela africana, que teria acontecido no fim do século XVI, estabelecendo as categorias “liberdade indígena” e “escravidão africana”. O tráfico de escravos indígenas foi um elemento duradouro da história do Brasil: o “interno”, entre as capitanias e províncias, e o “ultramarino” – para o México, Caribe, bacia do Prata, e até mesmo Angola – estão documentados. Até pelo menos o fim do século XVII, o trabalho indígena superava o africano na “América portuguesa” e se incluirmos aí a “América espanhola”, teremos o predomínio do trabalho indígena até o século XIX.

Além disso, o estatuto preferencialmente “livre” dos ameríndios não contradizia a exploração forçada de seu trabalho. O trabalho no Brasil era fundamentalmente escravo ou análogo ao escravo mas, do ponto de vista político-jurídico, era importante diferenciar essas duas condições.

A explicação político-jurídica para a condição preferencialmente livre dos indígenas e para a normalmente escrava dos africanos é resumida pelo historiador Anthony Pagden da seguinte forma:

A razão da diferença radical na opinião espanhola entre a escravidão dos africanos e a escravidão dos índios americanos não é difícil de encontrar. Os escravos vendidos na Espanha, fossem brancos ou negros, vinham de regiões onde a Coroa espanhola não tinha compromissos políticos. Portanto, os Reis Católicos podiam declinar de qualquer responsabilidade sobre a mercadoria humana que se vendia em seu território. Mas os índios americanos eram outra questão, porque, com muitas poucas exceções, eles estavam obrigados a servir em ilhas que, segundo a coroa espanhola, ocupava com direitos de soberania legítimos, e a cujos povos se havia comprometido a converter ao cristianismo sem infligir-lhes danos ou penalidades. (…) os índios, à diferença dos africanos, eram vassalos da coroa de Castela.

A soberania das Coroas portuguesa e espanhola sobre as Américas dependia do reconhecimento de um estatuto de liberdade dos indígenas. Se os Reis Católicos tivessem aceitado o plano de Cristóvão Colombo de fazer tráfico de escravos índios para concorrer com os da Guiné, ou se a argumentação de Juan Ginés de Sepúlveda sobre os índios serem escravos por natureza tivesse vingado, sua consequência político-jurídica teria sido a alienação da soberania monárquica sobre as Américas: não podia haver autoridade política constituída sobre escravos, sobre estes só existiria o poder despótico de senhores. Esta era a base do argumento de Bartolomeu de Las Casas que, mais que “protetor dos índios”, deveria ter o epíteto de “protetor da soberania régia e da autoridade apostólica”. Na África, até o século XIX, não havia esse problema, porque não havia pretensão de domínio jurisdicional. Las Casas, e outros teólogos e juristas, sugeriam, portanto, a substituição da escravidão indígena pela dos africanos.

Essa problemática estabelece algumas relações lógicas e algumas situações históricas interessantes. Em primeiro lugar, a complementaridade atlântica entre o tráfico de escravos africanos e a colonização das Américas teve uma razão político-jurídica.

A escravidão e a liberdade são os índices fundamentais para qualificação do poder: a escravidão estabelece o poder despótico e a tirania, enquanto a liberdade estabelece o poder político e a autoridade pública. A soberania nas Américas é incompleta porque o poder privado ou senhorial dos colonos sobre os indígenas e africanos enfraquecia a autoridade política. Essa contradição se aprofundava porque o rei construiu sua legitimidade pela legalização, regulação e controle da escravidão e das formas de trabalho forçado. Esse é um elemento estrutural para a confusão entre o público e o privado na história americana.

A escravidão africana foi uma forma de domínio que conviveu com a escravidão indígena, com formas de trabalho forçado indígena e de outros grupos sociais (mestiços, “vagabundos” etc.).

Mesmo as condições jurídica e social de africanos ou de afrodescendentes podiam variar entre a liberdade, a escravidão e a de forro ou de acordo com as características da escravidão em contextos sociais distintos e das posições ocupadas por essas pessoas.

A primeira distinção estabelecida no âmbito das sociedades escravistas era entre os negros “boçais” e os “ladinos”. O boçal era o africano recém-chegado às Américas, que tinha pouco conhecimento das línguas europeias, da cultura e das relações escravistas; “boçal” significava ignorante, ao mesmo tempo em que era uma das peças do arreio de cavalo. “Ladino” era seu antônimo, conhecedor da língua, inteligente, esperto, mas essas espertezas podiam ser perigosas, então, o indivíduo flertava com a astúcia, com as manhas, no limite de se tornar malandro, vagabundo e criminoso. Os mesmos adjetivos eram utilizados para referir-se aos índios. O negro nascido no Brasil era chamado de “crioulo”.

Outra diferenciação importante se dava entre os escravos rurais, os da mineração, os urbanos, os da milícia e os marinheiros. Na plantação, os escravos domésticos podiam ter uma condição melhor dos que trabalhavam na lavoura ou no engenho, além disso havia funções especializadas entre esses últimos, dos feitores – que como sugeria o padre Antonil, deveriam ser mulatos – aos artesãos e mestres de açúcar. Na mineração, Russell-Wood, diferencia a vida dos escravos que trabalhavam nas lavras, sob a vigilância de um feitor, dos faisqueiros e prospectores itinerantes. Em todos esses espaços haviam negros e mestiços, de “nações” ou “raças” incertas, libertos e livres, pequenos proprietários, meeiros, quilombolas, bandoleiros, pequenos comerciantes, artesãos, parteiras etc. Nas vilas e cidades a mobilidade dos escravos era muito maior e as condições sociais eram ainda mais complexas.

Haviam os escravos de aluguel, em que o proprietário negociava diretamente com o locatário, e os escravos de ganho, quando o escravo buscava o trabalho e pagava um percentual ao seu senhor. Rugendas e Debret representaram esses últimos com seus tabuleiros e cestos, carregando cadeirinhas, entregando mensagens, como “barbeiros” ambulantes, artesãos etc. Alguns ultrapassavam os limites da cidade, iam caçar, pescar, dedicar-se às atividades agrícolas ou viajavam como tropeiros ou vaqueiros. Muitos frequentavam os “quilombos” nos fins-de-semana, que ao invés de um refúgio de escravos fugidos podia ser uma periferia rural vinculada às vilas e cidades.

Figura 12 – Jean-Baptiste Debret. Carpinteiro indo para o trabalho. 1821. Aquarela, 18,7 cm x 25,1 cm. MEA 0212 Acervo dos Museus Castro Maya / IBRAM / MinC, Rio de Janeiro. Reprodução de Horst Merkel.

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