Voltamos à segunda pista deixada por Alencastro em sua palestra no primeiro Seminário Contracondutas: o conto de Machado de Assis, “Pai contra mãe”. Alencastro coloca a narrativa como emblemática da fratura social que constitui a sociedade brasileira, instituída pelo escravismo. Em busca de trabalhos sobre o posicionamento de Machado quanto à escravidão, visto que o conto inicia com uma descrição de instrumentos de aprisionamento e tortura dos escravos, me chega que a própria postura de Machado quanto a isso é motivo de discussão por parte da produção teórica literária.
Selma Vital é autora de pesquisa que se propôs a entender como o tema da escravidão se evidencia na obra machadiana. Abro aqui a possibilidade de uma leitura aberta, comum, de seu texto, o capítulo “A herança da escravidão”, do livro “Quase brancos, quase preto: representação étnico-racial no conto machadiano”, fruto de sua tese de doutorado, “Machado de Assis Preto de Alma Branca? Questões étnico-raciais no conto machadiano”.
Personagens e narradores
“O caso da vara” […] e “Pai contra Mãe” […] são os contos geralmente lembrados quando se buscam textos conectando Machado de Assis ao tema da escravidão. […] Mais comumente lidos como crítica e análise do egoísmo humano, um tema recorrente na obra machadiana, os contos em questão testam a conduta ética de seus protagonistas. […] Damião e Candinho […] devem fazer, cada qual, uma escolha delicada e, visando a benefício próprio, os dois acabam prejudicando alguém. Nenhum dos personagens é um clássico vilão ou particularmente mau […]. No entanto, como Dixon observou, ao desestabilizar a imagem do protagonista, Machado parece desafiar a confortável posição do leitor”. pp 97-98.
Vital associa o mérito do deslocamento ideológico obtido por Machado à técnica de espectador (apontada por Antônio Candido), utilizada em função de seu interesse em desenvolver um flagrante objetivo, um ponto de vista mais próximo da crônica, ainda que a partir da exploração da forma do conto. O conto, no entanto, se distanciava da crônica de então por, além de apresentar uma situação específica, buscar no leitor uma reação ou efeito potencializado.
Neste sentido, a apropriação do formato crônica, “mais conveniente aos primeiros anos da república, “cada vez mais acelerado” (Gledson) “que pode mudar de assunto a cada linha”, me parece algo análoga à opção de Debret pela aquarela – ainda que resguardada a enorme diferença entre os processos de criação de ambos e a complexidade das relações entre tais criações e seus respectivos contextos -, no sentido de que tais “técnicas” e soluções formais, tanto na literatura quanto na pintura, parecem em alguma medida conflitar entre si na disputa tanto de campos de especialização quanto de códigos para leitura das obras, ao possibilitarem o domínio de um determinado registro de verdade. Abandonar as formas mais sisudas (termo que Naves usa para descrever a pintura em relação à aquarela de Debret) e apropriar-se de formais mais flexíveis de representação e registro, parece ser pressuposto para que se dê conta das demandas de representação feitas por novas dinâmicas sociais e políticas que se colocam tanto para Debret como para Machado, cada um em seu momento histórico específico.
Mas como esta apropriação ambivalente daria conta de um tema que se coloca anacronicamente, visto que estes contos são publicados após a abolição da escravidão? Justamente:
“Enquanto o leitor médio, contemporâneo de Machado, pode suspirar aliviado, reconfortado pela ideia de que situações como as descritas no conto pertencem ao passado escravista, o leitor machadiano mais experimentado teria de perceber que a correlação de forças representada no conto talvez continuasse existindo, como um elefante na sala de visitas”. p 101.
Tal intercâmbio entre as posições de narrador e personagem – um narrador que se coloca a uma certa distância e um personagem que pode despertar no leitor forte identificação, e que se vê obrigado a tomar posição quanto às contradições em que vive, e das quais participa,- possibilita o manejo de dinâmica complexa que abrange o ver, o presenciar, e o saber. O reconhecer a si mesmo e seu próprio lugar social.
O personagem que deve se posicionar, neste caso, é Candinho, um homem sem posses e sem ofício que se torna caçador de escravos fugidos em busca de recompensa, e que vê seu “negócio” se tornar cada vez mais competitivo, a ponto de, ao ver nascer seu primeiro filho, decidir em conjunto com a esposa (e por pressão da tia que mora com o casal) abandonar a criança à roda dos enjeitados. Mas à caminho da roda, Candinho reconhece Arminda, uma escrava fugida pela qual há uma recompensa alta, e sem hesitar, a captura, ainda que a escrava, ao ser restituída a seu senhor, aborte a criança que carregava. Ela mesma o avisa de sua condição, ao tentar sensibilizar seu captor. No entanto Candinho é incapaz de identificar a situação da escrava como semelhante à sua mesma, e o protagonista encerra sua reflexão sobre o que ocorrera com a justificativa de que “nem todas as crianças vingam”.
Vital rejeita uma moral resultante de uma luta entre iguais, como o título pode sugerir (“Pai contra Mãe):
“Eu argumento que o título, tanto quanto a igualdade do embate, seja enganoso […]. [Trata-se de] uma disputa que não pressupõe igualdade entre os combatentes. Embora seja evidente que a precariedade da situação de Candinho o situa mais próximo de Arminda do que do senhor que a possui, o pai Candinho pode sobrepor-se à mãe Arminda, por que ela é escrava, portanto propriedade de outrem”.
Ainda assim,
“A linha que separa [Candinho] da condição escrava de Arminda é muito tênue. Para, pelo menos no plano imaginário, diferenciar-se dela, ele precisa vincular-se em escala ascendente, aos opressores da multa fugida […]. ”E, “ainda que sua miséria seja comparável à dos escravos, Candinho tem prevalência por que é um homem branco, portanto “livre”.
Este homem juridicamente livre, como reflete Bosi citado por Vital,
“[…] está um degrau, mas um só degrau, acima do escravo. […] O poder do senhor se desdobra em duas frentes: ele não é só dono do cativo, é também dono do pobre livre na medida em que o reduz a policia do escravo”.
É justamente a dificuldade de reconhecer as distâncias entre si e o outro que também fundamentam visões de mundo e crenças, pelos personagens, em seu pertencimento a um lugar social definido. Para que Candinho ratifique seu lugar, ainda que habitante desta linha tênue, é fundamental que veja a si mesmo como um empreendedor, dono de seu negócio, e que a chance de captura da escrava fugida seja vista como chance desafiante de uma capitalização rápida que se justifica pelo mérito do bom aproveitamento de uma oportunidade.
Se Debret em alguma medida exercita competências que podemos aproximar à condição dos escravos de ganho que retrata em suas aquarelas – no sentido de que, como aventei em texto anterior, trabalha na dependência da efetividade da relação de identificação que pode criar com seus compradores -, embora, evidentemente, a distância que o separa destes escravos seja enorme e sua cor e origem o mantenha a salvo de experimentar algo sequer próximo à escravidão, não se coloca em evidência como sua atuação “profissional” se conecta ao funcionamento social que ele mesmo retrata. Talvez esteja esse posicionamento também em discussão quando lemos Machado por este recorte. Debret não teria ocupado também este lugar de refém que enxergamos em Candinho, em ordem contrária aos valores republicanos de sua origem, dada a conexão íntima entre o poder da monarquia e os senhores de escravos e, em continuidade, os proprietários de terra?
De qualquer forma o título do conto, que engana por apresentar de cara uma disputa entre iguais, visto que joga personagens socialmente distantes para o âmbito familiar – condição insuficiente para equalizá-los -, é análoga, estrategicamente, à construção do título da aquarela de Debret pela qual Naves inicia seu ensaio, procedimento que se repete em vários outros títulos desta série. Uma ironia em comum, apesar das distâncias. Estratégia ainda mais irônica de Machado este anacronismo temático, que torna ainda mais evidente o patético da tentativa de apagamento de nosso escravismo, apesar de constituinte de nossa contemporaneidade.
“A escravidão que Machado explora em ambos os contos […], chega a seu leitor não como peça empoeirada, da qual poucos se lembram. Sua presença – embora o narrador se esforce […] por lhe dar um caráter de antiguidade, de passado remoto – é algo que está no cerne dos problemas sociais do pais, sobretudo na capital carioca, e se faz sentir na discriminação diária experimentada por ex-escravos e não brancos e exercida de novas maneiras pela população branca e abastada.”
Cidade e trabalho
Mais além, a costura do texto de Vital aponta a conexão entre esta postura feita ao mesmo tempo de precariedade e segurança, que ideologicamente azeita e dá manutenção ao funcionar social por meio de uma imagem de cidade. Esta imagem funciona como espaço das negociações do comum a ser constantemente remodelado para o incremento das possibilidades de controle dos grupos em tensão pela elite econômica. É uma certa ideia de cidade que deve prevalecer, na modernidade, acima das demandas particulares destes grupos e classes. Corresponde a isso um projeto imposto de cima para baixo, representante do “progresso”, que para ser aceito deve passar por inevitável.
Esta ideia de cidade, quando “Pai contra mãe” era publicado, se colava a uma imagem retirada de Paris enquanto modelo de grande metrópole, e em nome de tal imagem, grandes mudanças na cidade do Rio de Janeiro eram levadas a cabo.
“O ambicioso projeto [o da regeneração do centro da cidade] fez surgir uma cidade modelada na modernidade parisiense. […] A transformação urbana […] expulsou da área central as populações mais pobres […]. Os moradores deslocados, na maioria não brancos, ex-escravos e descendentes de escravos tiveram de refugiar-se em espaços improvisados alugando quartos […] ou ou construindo barracos nos morros vizinhos {…}. p119.
Adendo a este mesmo processo, o texto desenvolve:
“A tentativa de tratar a escravidão como instituição ligada a um passado remoto, tanto quanto de acreditar que era preciso empurrar pobre e indigente para as margens da cidade como uma demanda irrevogável do progresso, era a ordem do dia.”p124.
Uma operação de remodelagem urbana ligada também à necessidade do apagamento de um passado que não representa vantagem para a nova vida que a elite pretende impor a todo custo ao plano geral, – neste caso, fazer “desaparecer o aspecto da velha corte, com suas ruas estreitas e seus casarões coloniais e imperiais” para que se desse lugar às construções que dessem lastro simbólico à república -, se repete ainda hoje.
Também a questão do trabalho como ideologia para contenção social está evidente e parece tornar ainda mais apagada esta linha divisória entre a escrava e o desempregado: uma ameaça identificada pelos legisladores [logo apos a abolição] era de que a nova lei poderia nivelar “todas as classes de um momento para o outro”. Evidente que a fala, vinda dos detentores de privilégio, revela o medo de diluição de seu próprio status social, e não a real possibilidade de ascendência social dos agora ex-escravos. Vital afasta a ideia de que Candinho represente de alguma forma o trabalho abstrato em oposição ao braçal. Próximo que está dos escravos que captura, Candinho deve circular pelos espaços da cidade em que pode encontrá-los, reconhecer suas feições com acuidade, e até lançar de força física, de vez em quando recebendo “socos de parentes” etc. Mas toda esta proximidade só vale para manter a todo custo a máxima distância possível que lhe confere a falsa “liberdade” de sua profissão: “O que se apreende é que a escolha de seu trabalho, à parte o exotismo da coisa, liga-se a um pragmatismo claro: era preciso unir-se a um dos lados [senhor ou escrava] [..] e ele sabia de que lado devia ficar.”
O que fica de repetido quando certas cenas históricas se sobrepõem em nosso espaço comum de representação, resultante das relações de trabalho que pouco se modificam para certos segmentos? A ideia de um apagamento necessário, senão do passado, do que vive ainda dele em um presente que rescinde ainda ao jogo escravocrata. E mais pertinente ainda à otimização das possibilidades de exploração da força de trabalho na cidade. Este apagamento do que permanece, embora necessário simbolicamente para a elite econômica do pais, parece ser mais urgente para a classe que ocupa posição intermediária, preocupada em vestir-se de indicações e comportamentos que a identifiquem com as elites, tanto para outrem como para si mesma.
Ref: VITAL, Selma. Quase brancos, quase preto: representação étnico-racial no conto machadiano. São Paulo: Intermeios, 2012.