No âmbito do Projeto Contracondutas, José de Souza Martins foi convidado a falar sobre a escravidão contemporânea1 ou A Terceira Escravidão. Iniciou dizendo que um telejornal noticiara, na data da palestra2, que uma ONG internacional3 que realiza pesquisas e levantamentos sobre o tema, constatou que há cerca de 46 milhões de escravos no mundo hoje4.
A partir desta informação, Martins retorna a uma ordenação cronologicamente linear, fundada em uma compreensão das diferenças históricas entre as escravidões indígena e negra no Brasil, para então delinear melhor o que seria a Terceira, aquela que no momento presente vivenciamos, e que frequentemente se trata de uma escravidão de peonagem ou escravidão por dívida, com radiantes em várias partes do país. Culminou sua fala com um panorama bastante lamentoso dos desdobramentos e consequências da ausência de políticas públicas que acompanhassem, de alguma forma, a inclusão dos negros e índios na sociedade. Assegurou que o tema da escravidão, tanto a contemporânea quando as outras escravidões, é muito pouco conhecido no Brasil e defendeu que existe uma concepção muito estereotipada do que foi a escravidão e que a nossa historiografia não analisa com afinco os processos, relegando a complexidade do tema à uma perspectiva de vitimização do trabalhador escravizado.
Um dos principais destaque apontados por Martins foi uma espécie de deturpação cultural que deriva de um matriz estigmatizada de entendimento das coisas: nossa cultura escolar é anêmica, a abordagem da própria conceituação da modalidade de trabalho5, sua inserção histórica e a discussão sobre os modo de produção de que tais relações fazem parte não proporcionam uma compreensão da história de forma sensível. A ignorância a respeito da terceira escravidão é consequência disso, e a publicização da questão não é suficiente, visto que as pessoas não se sentem cúmplices nem envolvidas com a temática.
A chegada do trabalho livre, no canto do cisne da história da escravidão no Brasil, teria sido basicamente uma reposição de urgência provocada pela escassez no mercado de escravos, causada pela cessação do tráfico negreiro – quando o preço do escravo se elevou a ponto de se tornar economicamente inviável. Os colonos estrangeiros que chegaram ao Brasil no fim do século XIX, a partir de uma migração subvencionada pelo governo, substituíram em certa medida o trabalho do escravo. Esse trabalho substitutivo que lhes era incumbido, entretanto, tinha características parecidas ao Trabalho escravo, pois, com efeito, o colono perdia a sua liberdade civil morando nas fazendas, visto que praticamente não recebia salário e era responsável por todos seus gastos. Afirmar, portanto, que com o fim da escravidão houve o estabelecimento do trabalho assalariado, segundo o autor, não é verdade. Para Martins, a manutenção das relações arcaicas de trabalho não são necessariamente heranças do século XIX. Existem empresas modernas, algumas inclusive vinculadas a grupos econômicos internacionais, que fazem uso da escravidão por dívida em algumas de suas atividades, sobretudo nas novas fazendas de criação de gado na Amazônia6.
Segundo o professor, nosso sistema de combate à escravidão, apesar de razoavelmente eficiente, não é suficiente, pois a nossa economia – sobretudo em alguns setores – é dependente de uma “acumulação primitiva”7, responsável pela depredação do meio ambiente e, notoriamente, da mão de obra. Os artifícios utilizados para baixar os custos de produção ainda hoje são fundamentalmente violentos, combinam novas formas de vínculos empregatícios a outras arcaicas de exploração das relações de trabalho, que não foram totalmente abolidas ou superadas porque as condições de produção e rendimento tampouco o foram. Nos anos 19708, principalmente na região Amazônica, houve reiteradas denúncias de ocorrência de Trabalho escravo que, para Martins, preconizam uma reflexão crítica a respeito da diversidade das relações de trabalho na sociedade capitalista.
José de Souza Martins, em seu texto A Reprodução do Capital na Frente Pioneira e o Renascimento da Escravidão no Brasil, além de problematizar as leituras sobre a origem da Terceira Escravidão, proporciona o laço impecável entre as discussões propostas por seu seminário e a temática apresentadas pela palestrante Karina Leitão na aula aberta “Impacto de grandes projetos em comunidades atingidas: o caso de Belo Monte“.
Para assistir ao seminário completo clique aqui.
MATERIAIS PARA APROFUNDAMENTO
Autores mencionados por José de Souza Martis durante a palestra:
Florestan Fernandes / Euclides da Cunha/ Ecléa Bosi / Fernando Henrique Cardoso
Livros e textos mencionados por Alencastro durante a palestra:
Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos Martins, José de Souza. Fronteira / O tempo da Fronteira (artigo) / Florestan Fernandes Ciência e política, uma só vocação (artigo) / Cunha, Euclides. À margem da história
Sites sugeridos:
Notas de Rodapé
- Seus estudos sobre a vida rural no Brasil, aquilo que Martins chamou de “sociabilidade do homem simples”, os meios de sub-existência e as relações, portanto, de trabalho no nosso país, levaram-no a se tornar, desde os anos 1990, um dos maiores especialistas acadêmicos a respeito da escravidão contemporânea e do chamado trabalho análogo ao escravo.
- 01 de junho de 2016
- The Walk Free Foundation elaborou um relatório chamado Global Slavery Index que fornece um mapa da persistência estimada de escravidão contemporânea: http://www.globalslaveryindex.org/
- New York Times, Modern Slavery Estimated to Trap 45 Million People Worldwide: http://www.nytimes.com/2016/06/01/world/asia/global-slavery-index.html?_r=0
- Souza Martins, no texto A Reprodução do Capital na Frente Pioneira e o Renascimento da Escravidão no Brasil, esclarece seu ponto de vista em uma nota: “Alguns acadêmicos tem notória e compreensível dificuldade para dar a essa relação de trabalho o nome que lhe é mais apropriado: escravidão. Ainda que se trate, claramente, de uma relação de sujeição, que vai ao ponto de fazer o patrão supor que tem um direito absoluto ao corpo do trabalhador, além do próprio trabalho, como se vê quando este é submetido à humilhação, à tortura, ao castigo e até à morte. Essa dificuldade decorre, no meu modo de ver, de opções teóricas inadequadas ao tratamento do tema.”
- Martins relatou alguns casos que acompanhou quando foi membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário das Nações Unidas contra as Formas Contemporâneas de Escravidão e quando trabalhou para na comissão que elaborou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e do Trabalho Escravo.
- Ou seja, além do lucro do capital, existe o lucro extraordinário da acumulação primitiva.
- A escravidão por dívida nos seringais da Amazônia foi narrado de maneira talentosa por Euclydes da Cunha, na série de ensaios escritos no início do século: CUNHA, Euclydes da. (1946) À margem da história.